A Génese de um Povo
A refeição chegou muito tempo depois, fumegante, num alguidar de barro de cujo interior provinham diferentes odores a infância e a flores. A sua chegada, a sala inteira pareceu aquecer-se. Como em criança, José Artur pegou numa fatia do pão doce cortado à sua frente e colocou-a no fundo do prato, derramando sobre ela sucessivas conchas do caldo em que a carne mergulhava. Depois ergueu gravemente um dos pedaços dessa carne e passou-o para o prato também.
Levou o garfo à boca e fechou os olhos, a manteiga e o cravo-da-índia e o toucinho de fumo diluindo-se e recombinando-se numa afluência de sabores que se metamorfoseava. Ganhavam, perdiam e recuperavam cambiantes, à medida que entravam em acção novos ingredientes ainda, o vinho e a pimenta da Jamaica e a cebola e a banha de porco e de novo a carne, magnífica, derretendo-se-lhe na boca e fundindo-se com ela, como se ele tivesse, finalmente, atingido terra firme.
Comeu até ao fim, numa voragem antiga, e depois pegou nos últimos pedacinhos do pão doce e pôs-se a ensopar o resto do molho, comendo-os também.
«Massa sovada», lembrou-se. «Massa sovada!» Sabia-lhe a terramotos e a redenção.
Chegou-se para trás.
Textos sobre Flores
71 resultadosRegressar à Inocência
Seja como as crianças, mantenha os olhos abertos, sem preconceitos escondidos atrás da vista. Se olhar com clareza, pequenas flores, ou pedaços de relva, ou borboletas, ou um pôr do Sol proporcionar-lhe-ão tanta felicidade quanto a que Gautama Buda encontrou na sua iluminação. Isto não depende das coisas, mas sim da sua abertura. O conhecimento fecha-o; transforma-se numa cerca, numa prisão. Mas a inocência abre todas as portas e todas as janelas.
O sol entra e uma brisa fresca flui.
De repente, o perfume das flores faz-lhe uma visita.
E de vez em quando um pássaro virá cantar uma canção e entrar por outra janela.
A inocência é a única religiosidade que existe.
A religiosidade não depende das escrituras sagradas nem do que se sabe sobre o mundo. Só depende de se estar preparado para ser como um espelho límpido, que nada reflecte.
Um total silêncio, inocência, pureza… e toda a existência é transformada para si. Cada momento passa a ser de êxtase. As pequenas coisas, como beber uma chávena de chá, tornam-se orações tão poderosas que nenhuma outra oração se lhes pode comparar. Basta observar uma nuvem a mover-se livremente no céu, e da inocência surge uma sincronicidade.
A Vida em Conformidade com Princípios mais Elevados
Se a pessoa der ouvidos às subtis mas constantes sugestões do seu espírito, sem dúvida autênticas, não vê a que extremos, e até loucura, ele pode levá-la; contudo, por aí envereda o seu caminho à medida que cresce em resolução e fé. A mais leve objecção segura que um homem sadio fizer, com o tempo prevalecerá sobre os argumentos e costumes da humanidade. Nenhum homem jamais seguiu a sua índole a ponto de esta o extraviar. Embora o resultado fosse fraqueza física, ainda assim talvez ninguém pudesse dizer que as consequências eram lamentáveis, já que representariam a vida em conformidade com princípios mais elevados. Se o dia e a noite são de tal natureza que vós os saudais com alegria, se a vida emite uma fragrância de flores e ervas aromáticas e se torna mais elástica, mais cintilante e mais imortal – aí está o vosso êxito.
A natureza inteira é a vossa congratulação e tendes motivos terrenos para bendizer-vos. Os maiores lucros e valores estão ainda mais longe de serem apreciados. Chegamos facilmente a duvidar de que existam. Logo os esquecemos. Constituem, entretanto, a realidade mais elevada.
Talvez os factos mais estarrecedores e verdadeiros nunca sejam comunicados de homem a homem.
Alegria e Tranquilidade
A alegria pode sofrer interrupções no caso de pessoas ainda insuficientemente avançadas, enquanto, no caso do sábio, o bem estar é um tecido contínuo que nenhuma ocorrência, nenhum acidente pode romper; em todo o tempo, em todo o lugar o sábio goza de tranquilidade! Porquê? Porque o sábio não depende de factores externos, não está à espera dos favores da fortuna ou dos outros homens. A sua felicidade está dentro dele; fazê-la vir de fora seria expulsá-la da alma, que é onde, de facto, a felicidade nasce! Pode uma vez por outra surgir qualquer ocorrência que lembre ao sábio a sua condição de mortal, mas ocorrências deste tipo são de somenos importância e não o atingem mais do que à flor da pele. O sábio, insisto, pode ser tocado ao de leve por um ou outro contratempo, mas para ele o sumo bem permanece inalterável. Volto a dizer que lhe podem ocorrer contratempos provindos do exterior, tal como um homem de físico robusto não está livre de um furúnculo ou de uma ferida superficial; em profundidade, porém, não há mal que o atinja.
A diferença existente, insisto ainda outra vez, entre o homem que atingiu a plenitude da sabedoria e aquele que ainda lá não chegou é a mesma que se verifica entre um homem são e um convalescente de doença grave e prolongada.
Gosto das Belas Coisas Claras e Simples
Para quê alcançar os astros?! Para quê?! Para os desfolhar, por exemplo, como grandes flores de luz! Vê-los, vê-os toda a gente. De que serve então ser poeta se se é igual à outra gente toda, ao rebanho?… Eu não peço à Vida nada que ela me não tivesse prometido, e detesto-a e desdenho-a porque não soube cumprir nem uma das suas promessas em que, ingenuamente, acreditei, porque me mentiu, porque me traiu sempre. Mas não choro, não, como os portugueses chorões, não tenho nada de Jeremias, pareço-me antes com Job, revoltado, gritando imprecações no seu monte de estrume. Não gosto de lágrimas, de fados nem de guitarras, gosto das belas coisas claras e simples, das grandes ternuras perfeitas, das doces compreensões silenciosas, gosto de tudo, enfim, onde encontro um pouco de Beleza e de Verdade, de tudo menos do bípede humano, em geral, é claro, porque há ainda no mundo, graças a Deus, almas-astros onde eu gosto de me reflectir, almas de sinceridade e de pureza sobre as quais adoro debruçar a minha.
A Evidência da Morte
Às vezes ponho-me a pensar se a aceitação calma da morte no homem da terra não será o resultado desta íntima comunhão com o ritmo da natureza. No inverno, árvores despidas; na primavera, folhas e flores; no verão, frutos. No inverno seguinte, árvores despidas; na primavera, folhas e flores; no verão, frutos. No inverno a seguir… Eu bem sei que o homem da cidade tem por sua vez mil maneiras de notar este eterno retorno da vida e da morte. Parece-me é que ali a coisa não tem esta nitidez, esta evidência, esta fatalidade.
Os Vários Tipos de Amor
Parece-me que podemos, com maior razão, distinguir o amor em função da estima que temos pelo que amamos, em comparação com nós mesmos. Pois quando estimamos o objecto do nosso amor menos que a nós mesmos, temos por ele apenas uma simples afeição; quando o estimamos tanto quanto a nós mesmos, a isso se chama amizade; e quando o estimamos mais, a paixão que temos pode ser denominada como devoção. Assim, podemos te afeição por uma flor, por um pássaro, por um cavalo; porém, a menos que o nosso espírito seja muito desajustado, apenas por seres humanos podemos ter amizade. E de tal maneira eles são objecto dessa paixão que não há homem tão imperfeito que não possamos ter por ele uma amizade muito perfeita, quando pensamos que somos amados por ele e quando temos a alma verdadeiramente nobre e generosa.
Quanto à devoção, o seu principal objecto é sem dúvida a soberana divindade, da qual não poderíamos deixar de ser devotos quando a conhecemos como se deve conhecer. Mas também podemos ter devoção pelo nosso príncipe, pelo nosso país, pela nossa cidade, e mesmo por um homem particular quando o estimamos muito mais que a nós mesmos. Ora,
Tremo por Ti que És o Meu Único Amigo
António,
Tenho imensas coisas que te dizer e não sei o que hei-de dizer, tão arreliada estou e tão sem cabeça para pensar a coisa mais insignificante deste mundo. Que linda noite, tu vais passar, Amigo querido! E eu? A pensar que a maldade e a estupidez desta vida que no nosso desgraçado país é um horror, me pode fazer o mal maior que a alguém se pode fazer. Tenho medo, tenho medo, meu amor. Este desassossego contínuo põe-me doente e faz-me doida.
Então eu hei-de passar a minha triste vida a tremer por ti? Eu tenho pouca sorte, e quando enfim encontro no meu caminho alguém que gosta de mim, por mim, como se deve gostar, que pensa na minha felicidade, no meu sossego, alguém que se digna ver que eu tenho alma a sentir, quando encontro enfim no mundo o que julgara não encontrar nunca, hei-de andar como o avarento a tremer pelo tesoiro que levou anos, uma vida inteira a conquistar e que lhe podem roubar num momento. Eu tenho pouca sorte! Que Deus tenha piedade de mim.
Quereria dizer-te muitas coisas mas nem sei o que; só tenho vontade de chorar e de gritar desesperadamente,
Resgatar o Prazer de Viver
É possível resgatar o prazer de viver, é possível treinar a emoção para ser jovem, desprendida, livre, feliz.
Primeiro: Contemple o belo nos pequenos eventos da vida.
Tenha sempre atividades programadas fora da sua agenda pelo menos uma vez por semana. Valorize aquilo que o dinheiro não compra e que não dá prestígio.
Treine dez minutos por dia a contemplar a anatomia das flores, a gastar tempo a ver o brilho das estrelas, a experimentar o prazer de penetrar no mundo das pessoas.
Não viva em função de grandes eventos, aprenda a extrair o prazer dos pequenos estímulos da rotina diária.Segundo: Irrigue o palco da mente com pensamentos agradáveis.
Treine trazer diariamente à sua memória aquilo que lhe traz esperança, serenidade e encanto pela vida. Pense em conquistar pessoas e em superar os seus obstáculos. Pense em ser íntimo do Autor da vida e conhecer os mistérios da existência.
Os seus maiores inimigos estão dentro de si. Não se deixe derrotar ou perturbar por pensamentos que lhe roubam a tranquilidade e o prazer de viver.
Treine ver o lado positivo de todas as coisas negativas. Os negativistas veem os raios,
Nós Queimaremos o Mundo, Querida
Diz a Madame de Stael que os primeiros amores não são os mais fortes porque nascem simplesmente da necessidade de amar. Assim é comigo; mas, além dessa, há uma razão capital, e é que tu não te pareces nada com as mulheres vulgares que tenho conhecido. Espírito e coração como o teu são prendas raras; alma tão boa e tão elevada, sensibilidade tão melindrosa, razão tão recta não são bens que a natureza espalhasse às mãos cheias (…). Tu pertences ao pequeno número de mulheres que ainda sabem amar, sentir, e pensar. Como te não amaria eu? Além disso tens para mim um dote que realça os mais: sofreste. É minha ambição dizer à tua grande alma desanimada: «levanta-te, crê e ama: aqui está uma alma que te compreende e te ama também».
A responsabilidade de fazer-te feliz é decerto melindrosa; mas eu aceito-a com alegria, e estou certo que saberei desempenhar este agradável encargo. Olha, querida; também eu tenho pressentimento acerca da minha felicidade; mas que é isto senão o justo receio de quem não foi ainda completamente feliz?
Obrigado pela flor que mandaste; dei-lhe dois beijos como se fosse a ti mesma, pois que apesar de seca e sem perfume,
A Lucidez da Velhice
A mocidade é noivado, como a velhice é viuvez. Um jovem, por mais marido que seja, é noivo ainda; e um velho, embora casado, é já viúvo… um solitário guardando as cinzas duma flor. Mas dessas cinzas o seu espírito se alimenta. Alimenta-se de pureza, pois a cinza é o que resta dum incêndio, essa purificação suprema. Por isso, a consciência é um atributo da velhice, e também a ciência. A consciência é a ciência connosco, a ciência identificada ao nosso ser, que entra no pleno conhecimento de si mesmo, e do seu poder representativo do Universo. A velhice é uma noite maravilhosa em que brilham as nossas ideias, uma atmosfera límpida ou varrida pelo zéfiro da morte, a única Deusa verdadeira.
São as Pessoas como Tu
São as pessoas como tu que fazem com que o nada queira dizer-nos algo, as coisas vulgares se tornem coisas importantes e as preocupações maiores sejam de facto mais pequenas. São as pessoas como tu que dão outra dimensão aos dias, transformando a chuva em delirante orvalho e fazendo do inverno uma estação de rosas rubras.
As pessoas como tu possuem não uma, mas todas as vidas. Pessoas que amam e se entregam porque amar é também partilhar as mãos e o corpo. Pessoas que nos escutam e nos beijam e sabem transformar o cansaço numa esperança aliciante, tocando-nos o rosto com dedos de água pura, soltando-nos os cabelos com a leveza do pássaro ou a firmeza da flecha. São as pessoas como tu que nos respiram e nos fazem inspirar com elas o azul que há no dorso das manhãs, e nos estendem os braços e nos apertam até sentirmos o coração transformar o peito numa música infinita. São as pessoas como tu que não nos pedem nada mas têm sempre tudo para dar, e que fazem de nós nem ícaros nem prisioneiros, mas homens e mulheres com a estatura da vida, capazes da beleza e da justiça,
Não Será Tempo de Voltarmos aos Sentidos?
Não somos apenas o nosso corpo, estamos também integrados num corpus social, que solicita, expande e reprime a nossa sensibilidade. Basta ouvir aquele que foi o maior teórico da comunicação do século XX, Marshall McLuhan, para perceber até que ponto isso é aproveitado pela sociedade de comunicação global, para quem o indivíduo passa a ser uma presa. O que diz McLuhan sobre a televisão, por exemplo, é imensamente elucidativo: «Um dos efeitos da televisão é retirar a identidade pessoal. Só por ver televisão, as pessoas tornam-se num grupo coletivo de iguais. Perdem o interesse pela singularidade pessoal.» Se repararmos, os meios que lideram a comunicação humana contemporânea (da televisão ao telefone, do e-mail às redes sociais) interagem apenas com aqueles dos nossos sentidos que captam sinais à distância: fundamentalmente a visão e a audição. Origina-se assim uma descontrolada hipertrofia dos olhos e ouvidos, sobre os quais passa a recair toda a responsabilidade pela participação no real. «Viste aquilo?», «já ouviste a última do…»: os nossos quotidianos são continuamente bombardeados pela pressão do ver e do ouvir. O mesmo se passa com a locomoção: seja a pilotar um avião, a conduzir um automóvel, ou seja o peão a deslocar-se nas artérias das cidades modernas,
É Preciso Repensar a Nossa Vida
É preciso repensar a nossa vida. Repensar a cafeteira do café, de que nos servimos de manhã, e repensar uma grande parte do nosso lugar no universo. Talvez isso tenha a ver com a posição do escritor, que é uma posição universal, no lugar de Deus, acima da condição humana, a nomear as coisas para que elas existam. Para que elas possam existir… Isto tem a ver com o poeta, sobretudo, que é um demiurgo. Ou tem esse lado. Numa forma simples, essa maneira de redimensionar o mundo passa por um aspecto muito profundo, que não tem nada a ver com aquilo que existe à flor da pele. Tem a ver com uma experiência radical do mundo.
Por exemplo, com aquela que eu faço de vez em quando, que é passar três dias como se fosse cego. Por mais atento que se seja, há sempre coisas que nos escapam e que só podemos conhecer de outra maneira, através dos outros sentidos, que estão menos treinados… Reconhecer a casa através de outros sentidos, como o tacto, por exemplo. Isso é outra dimensão, dá outra profundidade. E a casa é sempre o centro e o sentido do mundo. A partir daí,
Não te Queixes
Não te queixes. Recolhe em ti a amargura, não a disperses, não a esbanjes com os outros. Ela é tua, nasceu de ti, da tua miséria, pertence-te como os ossos e as vísceras. Concentra-te nela, absorve-a, faz dela a tua grandeza. Porque só se é grande pelo sofrimento, não pela futilidade do prazer. As pedras não sofrem, Cristo esteve «triste até à morte». Tem desprezo pelos homens felizes, porque dos homens felizes «não reza a história». Só a dor pode medir o teu tamanho de excepção, só ela pode medir o que tu vales. O sofrimento medíocre não dá mais do que a comédia, mas a grandeza da tragédia só pode atribuir-se aos grandes. Não te aconselho a que vás ao encontro da amargura, mas se ela vier ter contigo, acolhe-a com serenidade. Não sucumbas aos seus golpes, aguenta-os até onde puderes. E se és homem de verdade, tu a aguentarás.
Também as grandes alegrias são do destino dos grandes, porque elas são irmãs dos grandes sofrimentos. Só os pequenos e mesquinhos se alegram e sofrem com o que é mesquinho e pequeno. Aquilo que é pequeno é imperceptível a quem o não é. Que juízo fazem de ti,
O Gosto pela Cultura
É mais difícil encontrar um gentleman que um génio. A marca mais distintiva de um homem culto é a possibilidade de aceitar um ponto de vista diferente do seu; pôr-se no lugar de outra pessoa e ver a vida e os seus problemas dessa perspectiva diferente. Estar disposto a experimentar uma ideia nova; poder viver nos limites das divergências intelectuais; examinar sem calor os problemas escaldantes do dia; ter simpatia imaginativa, largueza e flexibilidade de espírito, estabilidade e equilíbrio de sentimentos, calma ponderada para decidir – é ter cultura.
(…) A cultura vem da contemplação da natureza; do estudo da Literatura, Arte e Arquitectura com letras grandes; e do conhecimento pessoal das realidades emocionais da existência. É uma escala de valores, ou méritos, diferente da usada nas esferas dominadas pela ciência e pelo comércio. Vivemos numa cultura onde o sucesso é medido pelos bens materiais. É importante alcançar objectivos materiais, mas ainda é mais importante ser-se cidadão amadurecido, bem equilibrado e culto.A cultura (…) está em nós e não sepultada em estranhas galerias. Significa bondade de espírito e é a base de um bom carácter. A plenitude da vida não vem das coisas exteriores a nós;
Quando Falo com Sinceridade não sei com que Sinceridade Falo
Não sei quem sou, que alma tenho.
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou váriamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros).
Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpétuamente me ponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho.
Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.
A Degradação das Paixões Colectivas
As paixões colectivas são muito pouco numerosas e de qualidade grosseira: o meu Deus é o único Deus; a minha política é a verdade universal; o meu país tem como vocação dominar os outros. Enquanto isto, as paixões individuais são de uma diversidade infinita, de uma tissura imprevisível e sempre surpreendente. Sou pela cultura dessas mil flores diferentes. Não sou favorável a três ou quatro flores carnívoras gigantescas.
A Arte Está em Todo o Lado
Nós não nos damos conta de como a arte nos trespassa de todo o lado. Anotar isso aos que vaticinam a morte da arte. Isto ao nível mais corriqueiro. Dispor os móveis numa sala é fazer arte. Ou olhar uma paisagem, pôr uma flor na lapela, ou num vaso. Escolher uma gravata, uns sapatos. Provar um fato. Pentear-se. Fazer a barba ou apará-la quando comprida. Todas as coisas de cerimónia têm que ver com a arte. E o corte das unhas.
Todo o jogo. Toda a verdade que releva da emoção. Às vezes mesmo a escolha do papel higiénico. Mas mesmo a desordem. Bergson, creio, dizia que se tudo fosse desordenado, nós acabaríamos por ler aí uma ordem. E não é o que fazemos ao inventarmos as constelações? Admitir a morte da arte é admitir a morte do homem, que impõe essa arte a tudo o que vê. Mas tenho de ir à casa de banho. A ver se invento arte mesmo aí. (Mas quando disse «casa de banho» e não «retrete», já a inventei.)
A Alma Dominada pela Solidão
Se protegerdes com demasiada devoção o jardin secret da tua alma, ele pode facilmente começar a florescer de um modo excessivamente luxuriante, transbordar para além do espaço que lhe estava reservado e tomar mesmo pouco a pouco posse da tua alma de domínios que não estavam destinados a permanecer secretos. E é possível que toda a tua alma acabe por se tornar um jardim bem fechado, e que no meio de todas as suas flores e dos seus perfumes ela sucumba à sua solidão.