A Utilidade dos Inimigos
A utilidade dos inimigos é um daqueles temas cruciais em que um compilador de lugares-comuns como Plutarco pôde dar a mão a um arguto preceptor de heróis como Gracian y Morales e a um paradoxista como Nietzsche. Os argumentos são sempre esses – e todos o sbaem.
Os inimigos como os únicos verdadeiros; como aqueles que, conservando os olhos sempre voltados para cima, obrigam à circunspecção e ao caminho rectilíneo; como auxiliares de grandeza, porque obrigam a superar as más vontades e os obstáculos; como estímulos do aperfeiçoamento de si e da vigilância; como antagonistas que impelem para a competição, a fecundidade, a superação contínua. Mas são bem vistos, sobretudo, como prova segura da grandeza e da fortuna.
Quem não tem inimigos é um santo – e às vezes os santos têm inimigos – ou uma nulidade ambulante, o último dos últimos. E alguns, por arrogância, imaginam ter mais inimigos do que na realidade têm ou tentam consegui-los, para obter, pelo menos por esse caminho, a certeza da sua superioridade.
Mas todos os registadores utilitários da utilidade de inimigos esquecem que essas vantagens são pagas por um preço elevado e só constituem vantagens enquanto somos, e não sabemos ser,
Passagens sobre Íntimos
283 resultadosMemória
I
Na cristalina, líquida presença,
crescente lua no abismo enquanto
o mar se cala, desconheço a margem
onde me espera no desejo
esguio do poente a deusa branca…À ínfima visão dum lírio encosto
o meu soluço! O espaço é grande…
Não invoco o lugar mas a verdade
surge aquém da espera…Gaivotas sussurrantes, deixo a música
morrer, pegadas frescas, desperdícios
quentes na relva da minha alma…II
Quando se oculta julgando a noite
indefesa enorme, a fugidia
estrela me ilumina e desce!Vem até mim, quebrada a natural
cadência do seu mundo, e cresce… cresce…
Tentáculos de luz me envolvem. Comovido,
aperto em minhas mãos o elanguescente
ardor do seu chegar…III
Reconquisto agora o teu rosto, um horizonte,
silêncio de grito suspenso, labirinto,
mais desfeito
no hálito das nuvens…Me surges tão sem ti
que envolve o dia a espessura deste longe…
E afogo assim na íntima, na única
beleza do teu rasto,
o meu soluço de água…
A Luz que Vem das Pedras
A luz que vem das pedras, do íntimo da pedra,
tu a colhes, mulher, a distribuis
tão generosa e à janela do mundo.
O sal do mar percorre a tua língua;
não são de mais em ti as coisas mais.
Melhor que tudo, o voo dos insectos,
o ritmo nocturno do girar dos bichos,
a chave do momento em que começa o canto
da ave ou da cigarra
— a mão que tal comanda no mesmo gesto fere
a corda do que em ti faz acordar
os olhos densos de cada dia um só.
Quem está salvando nesta respiração
boca a boca real com o universo?
Não é fácil queimarmos documentos íntimos que nos são queridos, é como se confessássemos a nós próprios que já não temos tempo, que vamos morrer amanhã; assim vamos sempre adiando o ato de destruição, e um dia é já tarde demais. Contamos com a imortalidade e esquecemo-nos de contar com a morte.
Linda
Intimamente sinto uma grande vontade
de não mais duvidar do que você me diz,
– de acreditar enfim na sua falsidade
e fingir que me iludo em me julgar feliz…Quero crer… na inconstância e volubilidade
dos seus olhos azuis ou verdes, não sei bem,
e tentar convencer-me da felicidade
de que é meu o seu amor, só meu… de mais ninguém…Quero nessa ilusão – minha íntima esperança
transformar na feliz e invejável certeza
dos que sabem gostar e podem ter confiança…Mas é inútil, bem sei… A dúvida não finda!
E ao sentir seu olhar e ao ver sua beleza
não sei como confiar em quem nasceu tão linda!
Pedra de Canto
Ainda terás alento e pedra de canto,
Mito de Pégaso, patada de sangue da mentira,
Para cantar em sílabas ásperas o canto,
De rima em -anto, o pranto,
O amor, o apego, o sossego, a rima interna
Das almas calmas, isto e aquilo, o canto
Do pranto em pedra aparelhada a corpo e escopro,
O estupro de outrora, a triste vida dela, o canto,
Buraco onde te metes, duplamente: com falo,
Falas, fá-la chorar e ganir, com falo o canto
No buraco de grilo onde anoiteces,
No buraco de falso eremita onde conheces
Teu nada, o dela, o buraco dela, o canto
De pedra, sim, canteiro por cantares e aparelhares
Com ela em rua e cama o falo fá-la cheia,
Canteiro porque o falo a julga flores, o canto
Áspero do canteiro de pedra e sémen que tu és
(No buraco do falo falaste),
Tu, falazão de amor, que a amas e conheces.
Amas a quem? Conheces quem? Pobre Hipocrene,
Apolo de pataco, Camões binocular, poeta de merda,Embora isso em sangue dessa pobre alma em ferida:
A dela,
Um Calculador de Improbabilidades
O poeta é
um calculador de improbabilidades limita
a informação quantitativa fornecendo
reforçada informação estésica.
É uma máquina eta-erótica em que as discrepâncias
são a fulgurância da máquina.
A crueldade elegante da máquina resulta da
competição pirotécnica da circulação íntima
e fulgurante do seu maquinismo erótico.
A psicologia do maquinal sabe que basta
que se crie um pólo positivo para que o pólo
negativo surja
ou vice-versa
e as evoluções telecinéticas pela força
das catástrofes desenvolvem suas faculdades
latentes ou absorvem-nas como a esponja absorve
as águas variáveis dos humores
que transforma em polaridade.
O maquinal eta-erótico está em astrogação
curso hipnótico dos polímeros.
Digo com precisão fenomenológica: o maquinal
circula em sua hiperesfera da maneira mais
excêntrica.
Digo e garanto:
o maquinal absolutamente absorve suas águas
variáveis e isso é o seu amplexo.
O maquinal eta-erótico é tu-eu.
O maquinal tu-eu
cuja tarefa árdua não é
definir a verdade está no meio da profusão
dos objectos
e considera o consumo a verdade deslocada
deslocação de grande tonelagem
laboriosa alfaiataria de eros
constante moribunda
e esse opróbrio dispersivo e vexável
indifere a vida esponjosa.
Abdica e Sê Rei de Ti Mesmo
Frutos, dão-os as árvores que vivem,
Não a iludida mente, que só se orna
Das flores lívidas
Do íntimo abismo.Quantos reinos nos seres e nas cousas
Te não talhaste imaginário! Quantos,
Com a charrua,
Sonhos, cidades!Ah, não consegues contra o adverso muito
Criar mais que propósitos frustrados!
Abdica e sê
Rei de ti mesmo.
O amor é uma tentativa de penetrar no íntimo de outro ser humano, mas só pode ter sucesso se a rendição for mútua.
Preciso de Ti para Ser Eu
Ser quem sou passa por ser capaz de criar ligações ao outro, com o outro e para o outro. Só há pessoas porque há relações. A minha existência é constituída pelos caminhos que sonho, construo e percorro, ao lado de outras pessoas que, como eu, sonham, constroem e percorrem os seus caminhos. Vontades distintas, dinâmica comum. Seguimos, cada um pelos seus princípios, cada um para os seus fins.
O amor leva o ser do seu autor ao ser do que é amado. Amar é ser e ser é amar. Partilhar-se com o outro e com o mundo, num milagre de multiplicação em que quanto mais se dá, mais se tem para dar, mais se é.
Um pequeno erro na base leva a potenciais tragédias nas conclusões. Há quem parta do princípio que o amor é recíproco. Ora, essa ideia simples acaba por ser origem de enormes tragédias pessoais. O amor não é recíproco, é pessoal, nasce no mais íntimo da nossa identidade. Não é metade de nada, é um todo. Precisa do outro como fim, não como princípio.
O amor é bondade generosa. É dar o bem. Dar-se. Conseguir ser fonte de amor é o maior dos bens que se pode alcançar.
Novos Valores para a Sociedade
Se pensarmos na nossa vida e na nossa actuação, em breve notaremos que quase todas as nossas aspirações e acções estão ligadas à existência de outros homens. Reparamos que, em toda a nossa maneira de ser, somos semelhantes aos animais que vivem em comum. Comemos os alimentos produzidos por outros homens, usamos vestuário que outros homens fabricaram e habitamos casas que outros construíram. A maior parte das coisas que sabemos e em que acreditamos foi-nos transmitida por outros homens, por meio duma linguagem que outros criaram. A nossa faculdade mental seria muito pobre e muito semelhante à dos animais superiores se não existisse a linguagem, de modo que teremos de concordar que, aquilo que nos distingue em primeiro lugar dos animais, o devemos à nossa vida na comunidade humana. O homem isolado — entregue a si desde o nascimento — manter-se-ia, na sua maneira de pensar e de sentir, primitivo como um animal, dum modo que dificilmente podemos imaginar. O que cada um é e significa, não o é tão-sòmente como ser isolado, mas como membro duma grande comunidade humana, que determina a sua existência material e espiritual desde o nascimento à morte.
Aquilo que um homem leva para a sua comunidade depende,
Não Tenho Ninguém em Quem Confiar
Estou cansado de confiar em mim próprio, de me lamentar a mim mesmo, de me apiedar, com lágrimas, sobre o meu próprio eu. Acabo de ter uma espécie de cena com a tia Rita acerca de F. Coelho. No fim dela senti de novo um desses sintomas que cada vez se tornam mais claros e sempre mais horríveis em mim: uma vertigem moral. Na vertigem física há um rodopiar do mundo externo em relação a nós: na vertigem moral, um rodopiar do mundo interior. Parece-me perder, por momentos, o sentido da verdadeira relação das coisas, perder a compreensão, cair num abismo de suspensão mental. É uma pavorosa sensação esta de uma pessoa se sentir abalada por um medo desordenado.
Estes sentimentos vão-se tornando comuns, parecem abrir-me o caminho para uma nova vida mental, que acabará na loucura. Na minha família não há compreensão do meu estado mental — não, nenhuma. Riem-se de mim, escarnecem-me, não me acreditam. Dizem que o que eu pretendo é mostrar-me uma pessoa extraordinária. Nada fazem para analisar o desejo que leva uma pessoa a querer ser extraordinária. Não podem compreender que entre ser-se e desejar-se ser extraordinário não há senão a diferença da consciência que é acrescentada ao facto de se querer ser extraordinário.
Somos o Mistério
No fim desta época, como se toda a longa viagem tivesse sido inútil, volto a ficar sozinho nos territórios recém-descobertos. Como na crise do nascimento, como no começo alarmante e alarmado do terror metafísico donde brota o manancial dos meus primeiros versos, como num novo crepúsculo que a minha própria criação provocou, entro numa nova agonia e na segunda solidão. Para onde ir? Para onde regressar, conduzir, calar ou palpitar? Olho para todos os pontos da claridade e da obscuridade e não encontro senão o vazio que as minhas próprias mãos elaboraram com persistência fatal.
Mas o mais próximo, o mais fundamental, o mais extenso, o mais incalculável, não apareceria, afinal, senão neste momento no meu caminho. Tinha pensado em todos os mundos, mas não no homem. Tinha explorado com crueldade e agonia o coração do homem. Sem pensar nos homens, tinha visto cidades, mas cidades vazias. Tinha visto fábricas de trágico aspecto, mas não vira o sofrimento debaixo dos tectos, sobre as ruas, em todas as estações, nas cidades e no campo.
Às primeiras balas que trespassaram as violas de Espanha, quando, em vez de sons, saíram delas borbotões de sangue, a minha poesia deteve-se como um fantasma no meio das ruas da angústia humana e começou a subir por ela uma torrente de raízes e de sangue.
Estes Homens
estes homens
abrem as portas
do sol nascenteconhecem os íntimos latejos
da cal as soltas águas
os fermentos as uvas
os cílios discretos do pãoamam as urzes e as fontes
o suor dos fenos
a febre moira de um corpo
de mulherestes homens
partem a pedra
com martelos de solidão
(os olhos abismados
nos goivos
da lonjura)erguem as paredes
as janelas crepusculares
as asfaimadas antenas das cidades:
céu de cimento; baba remota
do cansaçoestes homens
tamisam cores: viajam nos navios
pescam no cisco das pérolas
do vidro
são garimpeiros
de uma esponja
de coralmoldam nas forjas
as sílabas secretas
do ferro
afeiçoam os seixos e o linho
o bafo marítimo
das palavrasestes homens
dizem casa com dezembro
nas veias
ternura com a sede de uma seara
grávida
assobiam comovidos contra as sombras
trazem na algibeira
o trevo rugoso das cantigasestes homens:
guardadores de cabras
e de mágoas
de espantos e revoltas
servos emigrantes
contrabandistas
soldados andarilhos do mar
carabineiros da má sorte
trepadores das sete colinas
operários
azeitoneiros
ratinhos
levantam por maio
os cantis do lume: voz de musgo
concha entreaberta
estes homens
(pátria viva;
A Inteligência não é o Fundo do nosso Ser
A inteligência não é o fundo do nosso ser. Pelo contrário. É como uma pele sensível, tentacular que cobre o resto do nosso volume íntimo, o qual por si é sensu stricto ininteligente, irracional. Barrès dizia isto muito bem: L’intelligence, quelle petite chose à la surface de nous. Aí está ela, estendida como um dintorno sobre o nosso ser mais interior, dando uma face às coisas, ao ser – porque o seu papel não é outro senão pensar as coisas, pensar o ser, o seu papel não é ser o ser, mas reflecti-lo, espelhá-lo. Tanto não somos ela que a inteligência é uma mesma em todos, embora uns dela tenham maior porção que outros. Mas a que tiverem é igual em todos: 2 e 2 são para todos 4. Por isso Aristóteles e o averroísmo acreditaram que havia um único noûs ou intelecto no Universo, que todos éramos, enquanto inteligentes, uma só inteligência. O que nos individualiza está por trás dela.
Mas não vamos agora espicaçar uma tão difícil questão. Baste o que foi dito para sugerir que em vão pretenderá a inteligência lutar num match de convicção com as crenças irracionais, habituais. Quando um cientista sustém as suas ideias com uma fé semelhante à fé vital,
Chegará um dia no qual os homens conhecerão o íntimo dos animais; e nesse dia, um crime contra um animal será considerado crime contra a humanidade.
Senhora I
No calmo colo pouso meus segredos
Senhora que sabeis minhas fraquezas.
convoco só convosco o que antecedo
na lira ensimesmada da incerteza.Não sei se o vero verso do degredo
vem albergado ou presa de represa
das frias águas íntimas do medo
lavando o frágil lado da tristeza.A depressiva face não mostrada
esplende em vosso espelho que me abriga
lambendo o sal dos olhos da geada.Águas que são do orvalho da fadiga
de recorrentes gotas espalhadas
regando as vossas mãos de amada e amiga
A indiscrição é íntima da candura.
pensar é uma palavra
pensar é uma palavra
primogénita
onde o ardor decanta das insígnias
os íntimos sinais
e o olhar é um silêncio enorme
e rumorosoo delicado musgo
da memória
é a matéria-prima
do teu rosto
Cada Homem Só se Pode Salvar ou Perder Sozinho
Também eu acredito que a existência precede a essência. Que tudo começa quando o coração pulsa pela primeira vez, e tudo acaba quando ele desiste de lutar. Que todas as paisagens são cenários do nosso drama pessoal, comentários decorativos da nossa aventura íntima e profunda. E que, por isso, cada homem só se pode salvar ou perder sozinho, e que só ele é o responsável pelos seus passos, que só as suas próprias raízes são raízes, e que está nas suas mãos a grandeza ou a pequenez do seu destino. Companheiro doutros homens, será belo tudo quanto de acordo com o semelhante fizer, todas as suas fraternidades necessárias e louváveis. Mas que será do tamanho e da qualidade da sua realização singular, da força da sua unidade, da posição que escolheu e da obra que realizou, que a consciência lhe perguntará dia a dia, minuto a minuto.