O Abismo da Agitação
Uma vida demasiado repleta de agitação é uma vida esgotante que continuamente exige estimulantes mais fortes para provocar as emoções que acabam por ser consideradas parte essencial do prazer. Uma pessoa habituada a demasiada agitação é comparável à que tem um desejo mórbido de pimenta e acaba por ser incapaz de lhe apreciar o sabor numa quantidade que sufocaria qualquer outra pessoa. Há sempre um certo aborrecimento quando se evita em demasia a agitação, mas por sua vez a agitação demasiada não só enfraquece a saúde como embota o gosto para toda a espécie de prazeres, substituindo titilações por profundas satisfações orgânicas, habilidade por inteligência e impressões fugidias por beleza. Não pretendo exagerar os perigos da agitação. Uma certa quantidade talvez seja saudável, mas como em quase todas as outras coisas, o problema é de ordem quantitativa. Uma dose demasiado pequena pode gerar desejos mórbidos e o abuso pode produzir o esgotamento. Certa capacidade para suportar o aborrecimento é pois essencial a uma vida feliz e isso era uma das coisas que deviam ser ensinadas aos jovens.
Passagens sobre Ordem
334 resultadosO Sonho Febril da Realidade
A verdade acerca do mundo, disse ele, é que tudo é possível. Não fosse o caso de vocês se terem habituado desde a nascença a ver tudo aquilo que vos rodeia, esvaziando assim as coisas da sua estranheza, e a realidade surgiria aos vossos olhos tal como é, um truque de magia num número de ilusionismo, um sonho febril, um transe povoado de quimeras sem analogia nem precedente imaginável, um carnaval itinerante, um espectáculo de feira migratório cujo derradeiro destino, depois de montar a tenda tantas e tantas vezes em tantos baldios enlameados, é tão indescritível e calamitoso que o espírito humano não consegue sequer concebê-lo.
O universo não é uma coisa limitada e a ordem que o rege não tem peias que, tolhendo-lhe os desígnios, a forcem a repetir noutro lugar qualquer o que já existe num dado lugar. Mesmo neste mundo, existem mais coisas que escapam ao nosso conhecimento do que aquelas que conhecemos e a ordem que os nossos olhos vêem na criação é a ordem que nós lá pusemos, qual fio num labirinto, para não nos perdermos. É que a existência tem a sua própria ordem e essa nenhum espírito humano consegue abarcar, sendo esse espírito apenas mais um facto entre tantos outros.
A Nefasta Hiperdemocracia dos Nossos Tempos
Ninguém, creio eu, deplorará que as pessoas gozem hoje em maior medida e número que antes, já que têm para isso os apetites e os meios. O mal é que esta decisão tomada pelas massas de assumir as actividades próprias das minorias, não se manifesta, nem pode manifestar-se, só na ordem dos prazeres, mas que é uma maneira geral do tempo. Assim (…) creio que as inovações políticas dos mais recentes anos não significam outra coisa senão o império político das massas. A velha democracia vivia temperada por uma dose abundante de liberalismo e de entusiasmo pela lei. Ao servir a estes princípios o indivíduo obrigava-se a sustentar em si mesmo uma disciplina difícil. Ao amparo do princípio liberal e da norma jurídica podiam atuar e viver as minorias. Democracia e Lei, convivência legal, eram sinónimos. Hoje assistimos ao triunfo de uma hiperdemocracia em que a massa actua directamente sem lei, por meio de pressões materiais, impondo suas aspirações e seus gostos.
É falso interpretar as situações novas como se a massa se houvesse cansado da política e encarregasse a pessoas especiais o seu exercício. Pelo contrário. Isso era o que antes acontecia, isso era a democracia liberal. A massa presumia que,
Amor Sem Fruto, Amor Sem Esperança
Amor sem fruto, amor sem esperança
É mais nobre, mais puro,
Que o que, domando a ríspida esquivança,
Jaz dos agrados nas prisões seguro.
Meu leal coração, constante e forte,
Vendo a teu lado acesos,
Flérida ingrata, os ódios, os desprezos,
O rigor, a tristeza, a raiva, a morte,
Forjando contra mim, por ordem tua,
Mil setas venenosas,
Em prémio destas lágrimas saudosas,
Inda assim continua
A abrasar-se em teus olhos… Vis amantes,
Corações inconstantes,
De sórdidas paixões envenenados,
Vós, a cujos ardores,
A cujos desbocados
Infames apetites
A Virtude, a Razão não põe limites,
Suspirai por ilícitos favores,
Cevai-vos em torpíssimos desejos,
Tratai, tratai de louco um amor casto,
Que eu nos grilhões que arrasto;
Tão limpos como o Sol, darei mil beijos.
Peçonhenta aliança,
Vergonhoso prazer, de vós não curo;
De ti, sim, porque és puro,
Amor sem fruto, amor sem esperança.
Ali, tudo é ordem e perfeição. Luxo, calma, e sensação.
O belo é o esplendor da ordem.
Arte e ordem, os parentes que se recusam a se relacionar.
O desprezo pelas leis é o mais seguro presságio da decadência de um governo, pois que a ordem apenas existe quando se executam.
Nenhum homem, digno de nome humano, pode concordar ou colaborar com outro homem, excepto em coisas absolutamente inúteis, como as ordens religiosas, os ministérios, o canto coral, e as fitas cinematográficas.
[A igualdade serve] para agravar e tornar mais amarga a desigualdade real que nunca pode ser eliminada e que a ordem civil estabelece, tanto para benefício dos que têm de viver em uma condição humilde como dos privilegiados.
Duas coisas ameaçam o mundo: A ordem e a desordem.
A Verdade é Histórica
O viver faz-se sempre a partir de ou sobre certos supostos, que são como o solo em que para viver nos apoiamos ou do qual partimos. E isto em todas as ordens – em ciência como em moral e política, como em arte. Toda a ideia é pensada e todo o quadro é pintado a partir de certas suposições ou convenções tão básicas, tão evidentes para quem pensou a ideia ou pintou o quadro, que nem sequer repara nelas e por isso não as introduz na sua ideia nem no seu quadro, não as achamos ali postas mas precisamente supostas e como deixadas voluntariamente no esquecimento. Por isso, às vezes, não entendemos uma ideia ou um quadro: falta-nos a palavra do enigma, a clave da secreta convenção. E como, repito, cada época – vou ser mais exacto -, cada geração parte de supostos mais ou menos diferentes, quer dizer-se que o sistema das verdades e o dos valores estéticos, morais, políticos, religiosos têm inexoravelmente uma dimensão histórica, são relativos a uma certa cronologia vital humana, valem só para certos homens. A verdade é histórica.
Cabe a cada um de nós não fazer o mesmo que outrem tem de fazer, mas sim o deixar feito o que nenhum outro fez, por muito que tal perturbe a ordem estabelecida. Somos cada um de nós poeta único (…) não aceitando, portanto, que tenhamos outro dever além de o sermos.
Conquista e Governação
Quando os estados que se conquistam têm a tradição de viver segundo as suas leis e em liberdade, para a sua conservação existem três opções: a primeira é a sua destruição; a segunda é ir para lá viver o príncipe conquistador; e a terceira consiste em deixá-los viver de acordo com as suas leis, mas exigindo-lhes um tributo e criando no seu seio uma oligarquia que vos garanta a sua fidelidade. Porque, sendo este novo poder uma criação daquele príncipe, sabem os seus mandatários que não podem sobreviver sem a sua amizade e apoio, tudo havendo de fazer para manter o novo regime. E mais facilmente se conserva uma cidade habituada a viver livre através do consenso dos seus cidadãos do que de qualquer outro modo.
(…) Na verdade, o único modo seguro de conservar uma cidade conquistada é a sua destruição. Quem se torna senhor de uma cidade habituada a viver livre e a não desfaça, pode preparar-se para ser por ela desfeito, porque sempre encontrarão grande receptividade no seio da rebelião a recordação da liberdade e das antigas instituições, as quais nem pela acção do tempo nem pela concessão de benesses se apagarão da sua memória. O que quer que se faça ou se disponha,
Há no mundo uma conjura geral e permanente contra duas coisas, a poesia e a liberdade; as pessoas de gosto encarregam-se de exterminar uma, tal como os agentes da ordem de perseguir a outra.
O Tempo Torna Tudo Irreal
O tempo, propriamente dito, não existe (excepto o presente como limite), e, no entanto, estamos submetidos a ele. É esta a nossa condição. Estamos submetidos ao que não existe. Quer se trate da duração passivamente sofrida – dor física, esperança, desgosto, remorso, medo -, quer do tempo organizado – ordem, método, necessidade -, nos dois casos, aquilo a que estamos submetidos, não existe. Estamos, realmente, presos por correntes irreais. O tempo, irreal, cobre todas as coisas e até nós mesmos, de irrealidade.
A Ambição de Eternidade
Fazer… A memória dos deuses, agora que se nos desfez como forma de um refúgio, de uma justificação, reinventa em nós o sonho do seu poder: criar é afirmar no homem o sonho de divinização. Criar um império, uma obra de arte, um filho, um arranjo de saber, um novo apara-lápis… E à ambição de impor ao mundo uma nova ordem, ao desejo angustiado de nos furtarmos a um domínio universal, de nos afirmarmos únicos, nós juntamos a pequena ambição de sermos eternos.
Como se a nossa vida não fosse irredutível e o objecto que se desprende das nossas mãos, comparticipando da nossa presença, do calor do nosso sangue, comparticipasse também da nossa consciência… Mas a pessoa que somos e sabemos, a presença de nós é em nós que nos morre.
E depois, meu amigo, enquanto temos um instrumento na mão, não sabemos que temos um instrumento na mão… Todo o gesto, enquanto tal, enquanto se executa, limita-se em si mesmo, esquece a sua origem: toda a acção trai a força que a georu, porque ela é em si própria um princípio e um fim.
O caos é impensável, já que a mistura é uma ordem e não há para o espírito do homem, ou no espírito do homem, nada que não seja relação. O que acontece é que chamamos desordem à ordem que nos não agrada, ao conjunto de relações em que não entendemos ou não aceitamos a relação connosco.
A ordem não cria a vida.
A Vida Reparte-se por Ciclos
A vida reparte-se por ciclos, cujas fronteiras são por vezes de uma perturbadora nitidez. O último talvez seja este: o que delimita a fase em que nos resta administrar acauteladamente (em alguns casos, avaramente) uma sabedoria amealhada, ou em que nos preparamos para a desbaratar numa espécie de furiosa imolação.
Parece, no entanto, ilusório que nos caiba escolher. Talvez a opção tenha sido feita desde o princípio, isto é: talvez haja uma ordem íntima que deva ser cumprida através de uma dessas manifestações, mesmo quando a escolhida se nos afigura incoerente.