Textos sobre Mãos

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Textos de mãos escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

Controlar a Timidez

Nunca consegui controlar a timidez. Quando tive que enfrentar em carne viva a incumbência que nos deixou o pai errante, aprendi que a timidez é um fantasma invencível. De cada vez que tinha que solicitar um crédito, mesmo dos combinados de antemão em lojas de amigos, demorava horas em redor da casa, reprimindo a vontade de chorar e as contracções da barriga, até que me atrevia por fim, com as mandíbulas tão apertadas que não me saía a voz. Havia sempre algum comerciante sem coração para me atrapalhar ainda mais: «Miúdo parvo, não se pode falar com a boca fechada.» Mais de uma vez regressei a casa com as mãos vazias e uma desculpa inventada por mim. Mas nunca mais tornei a ser tão desgraçado como da primeira vez que quis falar pelo telefone na loja da esquina. O dono ajudou-me com a operadora, pois ainda não existia o serviço automático. Senti o sopro da morte quando me deu o auscultador. Esperava uma voz serviçal e o que ouvi foi o latido de alguém que falava no escuro ao mesmo tempo que eu. Pensei que o meu interlocutor também não me ouvia e levantei a voz tanto quanto pude. O outro,

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A Forma como me Amas, Mãe

Há qualquer coisa de Deus na forma como me amas, mãe.
As pessoas não são tão grandes como tu, as pessoas não aguentam tanto a vida como tu. As pessoas choram, as pessoas sofrem, as pessoas passam pela vida à procura da melhor maneira de viver. Mas tu amas-me, mãe. Tu amas-me assim, sem condições, e parece que quando me amas nem sequer existes. Apenas ficas ali, a ver-me existir, e é assim que descobres e me ensinas que a vida se resume a ver quem amas viver.

Há qualquer coisa de impossível na forma como me amas, mãe.
O possível teria de exigir que parasses quando te dói, que parasses quando o mundo, filho da puta do mundo, te obriga a inventares novas maneiras de me dares tudo o que eu preciso. O possível iria dizer-te que não, que uma só pessoa, tão pequena e tão grande como tu, não pode suportar todo o peso de duas vidas. E tu ainda aí estás, tão forte como só tu, tão impossível como só tu, a sorrir quando me vês de caderno na mão a dizer que sou o melhor aluno da turma. É claro que é bom ser bom aluno,

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O Enigma do Ser Humano

Encontramos uma pessoa que achamos interessante. Tentamos, como se costuma dizer, «situá-la». (Tenho o hábito de fazer isso até com os senhores e as senhoras que lêem as notícias na televisão.) Nas nossas recordações, procuramos rostos parecidos com o que temos agora diante de nós. O movimento lento das pálpebras faz lembrar um orador na Associação de Biologia, as comissuras dos lábios são iguais às de um docente de Química em Uppsala nos anos cinquenta. Em suma, uma entoação que conhecemos ali, uma expressão do rosto que recordamos de outro lado, e imaginamos que ficámos a compreender. Reconstituímos o desconhecido com o auxílio do que conhecemos.
O psicanalista no seu consultório (nem sei se é assim que se diz, nunca fui a nenhum) faz, em princípio, o mesmo: associa experiências, recordações, para encontrar as chaves do novo, do desconhecido, com que se confronta.
Mas as peças que vamos buscar, os factos a que recorremos, esse molho de chaves que são os rostos antes encontrados e que fazemos tilintar na nossa mão, é, também ele, o desconhecido. Explicamos um enigma com outro enigma. É a mesma coisa que comprar um novo exemplar do mesmo jornal para confirmar uma notícia em que não acreditamos.

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De Duas Maneiras Cega a Fortuna

No golfo de uma privança, nunca o perigo é mais certo, que quando a fortuna é mais próspera. De duas maneiras cega a fortuna, porque cega como luz e cega como fouce; com uma mão abraça, e com outra corta; com a que abraça introduz a cegueira, e com a que corta mostra o desengano. Consiste a prudência em que se temam os resplendores da luz, para que se não cegue aos rigores do golpe. Não faz mal à embarcação o penedo que sobressai por cima da água; porque para evitar o perigo sabe o piloto desviar a nau, por ver manifesto o perigo. Nos penedos que as águas escondem, aí naufraga sempre o baixel; porque cobriu com capa de cristal uma ruína de penhasco, e os que, navegando pelo mar, caminham com os olhos nas ondas, facilmente se esvaem, e quanto maior é na cabeça o esvaecimento, vem a ser mais no coração a fraqueza. Não sabe o que navega quanto tem vencido de distância, se do mesmo mar não tira os olhos, e só fazendo balizas na terra sabe o quanto no mar caminham. É um golfo grande o da privança, e a maior prudência consiste em que se divirtam de alguma vez os olhos,

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Inveja Justa e Injusta

Quando a fortuna envia a alguém bens de que ele é verdadeiramente indigno, e a inveja só é excitada em nós porque amando naturalmente a justiça ficamos contrariados que ela não seja observada na distribuição desses bens, trata-se de um zelo que pode ser desculpável; principalmente quando o bem que invejamos de outros é de tal natureza que pode converter-se em mal nas mãos deles, como se for algum cargo ou ofício em cujo exercício eles possam comportar-se mal.
Mesmo quando desejamos para nós o mesmo bem e somos impedidos de tê-lo, porque ouros que são menos merecedores o possuem, isto torna mais violenta tal paixão; e ela não deixa de ser desculpável, contanto que o ódio que contém se relacione somente com a má distribuição do bem que se inveja, e não com as pessoas que o possuem e distribuem.
Mas há poucos que sejam tão justos, e tão generosos a ponto de não ter ódio por aqueles que os precederam na obtenção de um bem que não é comunicável a várias pessoas e que eles haviam desejado para si mesmos, embora os que os obtiveram sejam tanto ou mais merecedores. E o que habitualmente é mais invejado é a glória,

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O Amor na Lama

– Esteban, o homem não poderia fazer grandes obras sem trabalhos pequenos; na maqueta do carpinteiro está todo o edifício do arquiteto, não há profissões grandes e pequenas: alegro-me que tenhas decidido ficar connosco na carpintaria, mas convém que te lembres disso. Não te esqueças de que Deus também se senta numa cadeira e come a uma mesa e dorme numa cama. Como qualquer um. Pode prescindir dos retábulos, das estátuas e dos livros que lhe dedicam, incluindo a Bíblia, mas não da cadeira, da mesa e da cama. — O meu tio esforçava-se muito. Queria que eu me sentisse bem na profissão. Que começasse a gostar dela. Acreditava que eu vivia como um fracasso a decisão de ter abandonado a Escola de Belas–Artes. Intuía certamente que eu precisava de desenvolver a minha autoestima. Mas tudo isso me parecia mera retórica — e era-o —, a verdade é que por essa altura já tinha começado a sair com Leonor e era ela quem eu amava, aprendia a gostar de mim através dela. Descobria o meu corpo em cada palmo do corpo dela, e o meu corpo ganhava valor porque lhe pertencia, era o seu complemento: acreditava que partilhávamos dois corpos que jamais poderiam separar-se e viver cada um por si.

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Escuta, Amor

Quando damos as mãos, somos um barco feito de oceano, a agitar-se sobre as ondas, mas ancorado ao oceano pelo próprio oceano. Pode estar toda a espécie de tempo, o céu pode estar limpo, verão e vozes de crianças, o céu pode segurar nuvens e chumbo, nevoeiro ou madrugada, pode ser de noite, mas, sempre que damos as mãos, transformamo-nos na mesma matéria do mundo. Se preferires uma imagem da terra, somos árvores velhas, os ramos a crescerem muito lentamente, a madeira viva, a seiva. Para as árvores, a terra faz todo o sentido. De certeza que as árvores acreditam que são feitas de terra.

Por isto e por mais do que isto, tu estás aí e eu, aqui, também estou aí. Existimos no mesmo sítio sem esforço. Aquilo que somos mistura-se. Os nossos corpos só podem ser vistos pelos nossos olhos. Os outros olham para os nossos corpos com a mesma falta de verdade com que os espelhos nos reflectem. Tu és aquilo que sei sobre a ternura. Tu és tudo aquilo que sei. Mesmo quando não estavas lá, mesmo quando eu não estava lá, aprendíamos o suficiente para o instante em que nos encontrámos.

Aquilo que existe dentro de mim e dentro de ti,

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Não Há Amor como o Primeiro

Não há amor como o primeiro. Mais tarde, quando se deixa de crescer, há o equivalente adulto ao primeiro amor — é o primeiro casamento; mas não é igual. O primeiro amor é uma chapada, um sacudir das raízes adormecidas dos cabelos, uma voragem que nos come as entranhas e não nos explica. Electrifica-nos a capacidade de poder amar. Ardem-nos as órbitas dos olhos, do impensável calor de podermos ser amados. Atiramo-nos ao nosso primeiro amor sem pensar onde vamos cair ou de onde saltámos. Saltamos e caímos. Enchemos o peito de ar, seguramos as narinas com os dedos a fazer de mola de roupa, juramos fazer três ou quatro mortais de costas, e estatelamo-nos na água ou no chão, como patos disparados de um obus, com penas a esvoaçar por toda a parte.

Há amores melhores, mas são amores cansados, amores que já levaram na cabeça, amores que sabem dizer “Alto-e-pára-o-baile”, amores que já dão o desconto, amores que já têm medo de se magoarem, amores democráticos, que se discutem e debatem. E todos os amores dão maior prazer que o primeiro. O primeiro amor está para além das categorias normais da dor e do prazer. Não faz sentido sequer.

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O Maior Amor e as Coisas que Se Amam

Tomara poder desempenhar-me, sem hesitações nem ansiedades, deste mandato subjectivo cuja execução por demorada ou imperfeita me tortura e dormir descansadamente, fosse onde fosse, plátano ou cedro que me cobrisse, levando na alma como uma parcela do mundo, entre uma saudade e uma aspiração, a consciência de um dever cumprido.

Mas dia a dia o que vejo em torno meu me aponta novos deveres, novas responsabilidades da minha inteligência para com o meu senso moral. Hora a hora a (…) que escreve as sátiras surge colérica em mim. Hora a hora a expressão me falha. Hora a hora a vontade fraqueja. Hora a hora sinto avançar sobre mim o tempo. Hora a hora me conheço, mãos inúteis e olhar amargurado, levando para a terra fria uma alma que não soube contar, um coração já apodrecido, morto já e na estagnação da aspiração indefinida, inutilizada.

Nem choro. Como chorar? Eu desejaria poder querer (desejar) trabalhar, febrilmente trabalhar para que esta pátria que vós não conheceis fosse grande como o sentimento que eu sinto quando n’ela penso. Nada faço. Nem a mim mesmo ouso dizer: amo a pátria, amo a humanidade. Parece um cinismo supremo. Para comigo mesmo tenho um pudor em dizê-lo.

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O Socorro Contra as Nossas Perdas

O verdadeiro bem — a sabedoria e a virtude — é seguro e eterno; é este bem, aliás, a única coisa imortal que é concedida aos mortais. Estes, porém, são tão falhos, tão esquecidos do caminho que seguem, do termo para que cada dia os vai arrastando que se admiram quando perdem alguma coisa — eles que, mais tarde ou mais cedo, hão-de perder tudo! Tudo aquilo de que és considerado dono está à tua mão, mas sem ser verdadeiramente teu; um ser instável nada possui de estável, um ser efémero nada possui de eterno e indestrutível. Perder é tão inevitável como morrer; se bem a entendermos, esta verdade é uma consolação para nós. Perde, pois, imperturbavelmente: tudo um dia morrerá. Que socorro podemos conseguir contra todas as nossas perdas? Apenas isto: guardemos na memória as coisas que perdemos sem deixar que o proveito que delas tiramos desapareça também com elas. Podemos ser privados de as possuir, nunca de as ter possuído. É extremamente ingrato quem pensa que já nada deve porque perdeu o empréstimo!

Todo o Presente Espera pelo Passado para nos Comover

Há vária gente que não gosta de evocar o passado. Uns por energia, disciplina prática e arremesso. Outros por ideologia progressista, visto que todo o passado é reaccionário. Outros por superficialidade ou secura de pau. Outros por falta de tempo, que todo ele é preciso para acudir ao presente e o que sobra, ao futuro. Como eu tenho pena deles todos. Porque o passado é a ternura e a legenda, o absoluto e a música, a irrealidade sem nada a acotovelar-nos. E um aceno doce de melancolia a fazer-nos sinais por sobre tudo. Tanta hora tenho gasto na simples evocação. Todo o presente espera pelo passado para nos comover. Há a filtragem do tempo para purificar esse presente até à fluidez impossível, à sublimação do encantamento, à incorruptível verdade que nele se oculta e é a sua única razão de ser. O presente é cheio de urgências mas ele que espere. Ha tanto que ser feliz na impossibilidade de ser feliz. Sobretudo quando ao futuro já se lhe toca com a mão. Há tanto que ter vida ainda, quando já se a não tem…

Homem e Mulher num Corpo Só

Um homem quando casa, se o faz verdadeiramente apaixonado, ao princípio não consegue tocar o corpo da sua mulher sem se perturbar e incendiar em desejo carnal; mas à medida que o tempo passa, acostuma-se, e chega um dia em que é o mesmo para ele tocar com a mão a coxa nua de sua mulher ou a sua própria coxa; mas também se então tivessem de cortar a perna a sua mulher, doer-lhe-ia como se lha cortassem a ele próprio!

A Hipocrisia do Ser

Para que servem esses píncaros elevados da filosofia, em cima dos quais nenhum ser humano se pode colocar, e essas regras que excedem a nossa prática e as nossas forças? Vejo frequentes vezes proporem-nos modelos de vida que nem quem os propõe nem os seus auditores têm alguma esperança de seguir ou, o que é pior, desejo de o fazer. Da mesma folha de papel onde acabou de escrever uma sentença de condenação de um adultério, o juiz rasga um pedaço para enviar um bilhetinho amoroso à mulher de um colega. Aquela com quem acabais de ilicitamente dar uma cambalhota, pouco depois e na vossa própria presença, bradará contra uma similar transgressão de uma sua amiga com mais severidade que o faria Pórcia.
E há quem condene homens à morte por crimes que nem sequer considera transgressões. Quando jovem, vi um gentil-homem apresentar ao povo, com uma mão, versos de notável beleza e licenciosidade, e com outra, a mais belicosa reforma teológica de que o mundo, de há muito àquela parte, teve notícia.
Assim vão os homens. Deixa-se que as leis e os preceitos sigam o seu caminho: nós tomamos outro, não só por desregramento de costumes, mas também frequentemente por termos opiniões e juízos que lhes são contrários.

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O Amor por Matilde e os Versos do Capitão

E vou contar-lhes agora a história deste livro, um dos mais controvertidos daqueles que escrevi. Foi durante muito tempo um segredo, durante muito tempo não ostentou o meu nome na capa, como se o renegasse ou o próprio livro não soubesse quem era o pai. Tal como os filhos naturais, filhos do amor natural, «Los versos del capitán» eram, também, um «libro natural».

Os poemas que contém foram escritos aqui e ali, ao longo do meu desterro na Europa. Foram publicados anonimamente em Nápoles, em 1952. O amor por Matilde, a nostalgia do Chile, as paixões cívicas, recheiam as páginas desse livro, que teve muitas edições sem trazer o nome do autor.

Para a 1ª edição, o pintor Paolo Ricci conseguiu um papel admirável e antigos tipos de imprensa «bodonianos», bem como gravuras extraídas dos vasos de Pompeia. Com fraternal fervor, Paolo elaborou também a lista dos assinantes. Em breve apareceu o belo volume, com tiragem limitada a cinquenta exemplares. Festejámos largamente o acontecimento, com mesa florida, «frutti di mare», vinho transparente como água, filho único das vinhas de Capri. E com a alegria dos amigos que amaram o nosso amor.
Alguns críticos suspicazes atribuíram a motivos políticos a publicação anónima do livro.

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A Tua Alma de Ouro

Meu querido rapaz,

O teu soneto é deveras bonito, e é uma maravilha que esses teus lábios da cor de rosas encarnadas tenham sido feitos tanto para a loucura da música e das canções como para a loucura do beijar. A tua alma de ouro caminha entre a paixão e a poesia. Eu sei que Hyacinthus, que Apollo amou tão perdidamente, eras tu nos tempos Gregos. Porque estás sozinho em Londres, e quando irás para Salisbury? Vai até lá para refrescar as tuas mãos no crepúsculo cinzento das coisas góticas, e vem aqui sempre que quiseres. É um lugar adorável, e falta-lhe apenas a tua pessoa; mais vai primeiro a Salisbury.

Sempre teu, com amor eterno,

Oscar

Causas e Curas para o Fanatismo

O fanatismo é para a superstição o que o delírio é para a febre, o que é a raiva para a cólera. Aquele que tem êxtases, visões, que considera os sonhos como realidades e as imaginações como profecias é um entusiasta; aquele que alimenta a sua loucura com a morte é um fanático. (…) O mais detestável exemplo de fanatismo é aquele dos burgueses de Paris que correram a assassinar, degolar, atirar pelas janelas, despedaçar, na noite de São Bartolomeu, os seus concidadãos que não iam à missa. Há fanáticos de sangue frio: são os juizes que condenam à morte aqueles cujo único crime é não pensar como eles. Quando uma vez o fanatismo gangrenou um cérebro a doença é quase incurável. Eu vi convulsionários que, falando dos milagres de S. Páris, sem querer se acaloravam cada vez mais; os seus olhos encarniçavam-se, os seus membros tremiam, o furor desfigurava os seus rostos e teriam morto quem quer que os houvesse contrariado.
Não há outro remédio contra essa doença epidémica senão o espírito filosófico que, progressivamente difundido, adoça enfim a índole dos homens, prevenindo os acessos do mal porque, desde que o mal fez alguns progressos, é preciso fugir e esperar que o ar seja purificado.

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O Animal que Mata mais que Todos os Outros

Acima de todas as raças de animais é colocado o homem, cuja mão destruidora não poupa nada do que é vivo: ele mata para se alimentar, mata para se vestir, mata para se enfeitar, mata para atacar, mata para se defender, mata para se divertir, mata para matar: rei soberbo e terrível, precisa de tudo e nada lhe resiste.

. Petersburgo’

A Perenidade das Ideias

Toda a vida se espantara com essa faculdade que as ideias têm de se aglomerarem friamente como cristais, formando estranhas figuras vãs; ou crescerem como tumores devorando a carne que os concebeu; ou assumirem monstruosamente certos contornos da pessoa humana, à maneira dessas massas inertes que algumas mulheres dão à luz e que, em suma, não são mais do que um sonho da matéria. Uma boa parte dos produtos do espírito não passava também de disformes sombras lunares. Outras noções, mais claras e nítidas, como que fabricadas por um mestre artesão, eram, porém, como aqueles objectos que, à distância, iludem; imensamente admiráveis eram os seus ângulos e arestas; e todavia não passavam de grades aonde o entendimento a se mesmo se aprisiona, abstractas ferragens que a ferrugem da falsidade não tardaria a carcomir.
Tremia-se, por momentos, perante a iminente transmutação: um pouco de ouro parecia brotar no crisol do cérebro humano; não se conseguia, contudo, mais do que uma equivalência; da mesma forma que, naquelas experiências grosseiras em que os alquimistas da corte tentam provar aos príncipes seus clientes que algo descobriram, não era o ouro, no fundo da retorta, senão o de um banal ducado que, depois de correr de mão em mão,

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A Minha Mulher, Matilde Urrutia

A minha mulher é provinciana como eu. Nasceu numa cidade do Sul, em Chillán, famosa pela sorte de possuir uma bela cerâmica camponesa e pela infelicidade de sofrer frequentemente terríveis terramotos. Falando para ela, disse-lhe tudo nos meus Cem Sonetos de Amor.
Talvez estes versos definam o que ela significa para mim. A terra e a vida nos juntaram.
Embora isto não interesse a ninguém, somos felizes. Dividimos o nosso tempo comum em longas permanências na solitária costa do Chile. Não no Verão, porque o litoral ressequido pelo sol se mostra amarelo e desértico; antes no Inverno, quando, em estranha floração, a terra se veste com as chuvas e o frio, de verde e amarelo, de azul e de púrpura. Subimos algumas vezes do solitário e selvático oceano para a nervosa cidade de Santiago, na qual sofremos juntamente com a complicada existência dos outros.

Matilde canta com voz poderosa as minhas canções.
Eu dedico-lhe quanto escrevo e quanto tenho. Não é muito, mas ela está contente.
Vejo-a agora a enterrar os sapatos minúsculos na lama do jardim e, em seguida, a enterrar também as suas minúsculas mãos na profundidade da planta.
Da terra,

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