Compreensão Sábia e Activa
A primeira condição para libertar os outros é libertar-se a si próprio; quem apareça manchado de superstição ou de fanatismo ou incapaz de separar e distinguir ou dominado pelos sentimentos e impulsos, não o tomarei eu como guia do povo; antes de tudo uma clara inteligência, eternamente crítica, senhora do mundo e destruidora das esfinges; banirá do seu campo a histeria e a retórica; e substituirá a musa trágica por Platão e os geómetras.
Hei-de vê-lo depois de despido de egoísmo, atente somente aos motivos gerais; o seu bem será sempre o bem alheio; terá como inferior o que se deleita na alegria pessoal e não põe sobre tudo o serviço dos outros; à sua felicidade nada falta senão a felicidade de todos; esquecido de si, batalhará, enquanto lhe restar um alento, para destruir a ignorância e a miséria que impedem os seus irmãos de percorrer a ampla estrada em que ele marcha.
Nenhuma vontade de domínio; mandar é do mundo das aparências, tornar melhor de um sólido universo de verdades; se tiver algum poder somente o veja como um indício de que estão ainda muito baixos os homens que lho dão; incite-o o sentir-se superior a mais nobre e rude esforço para que se esbatam e percam as diferenças;
Textos sobre Superiores
178 resultadosO homem superior agradará mesmo quando discorde; o homem inferior desagradará mesmo quando concorde.
Como Trair o Seu Marido em Imaginação
Proponho-me ensinar-lhes como trair o seu marido em imaginação.
Acreditem-me: só as criaturas ordinárias traem o marido realmente. O pudor é uma condição sine qua non de prazer sexual. O entregar-se a mais de um homem mata o pudor.
Concedo que a inferioridade feminina precisa de macho. Acho que, ao menos se deve limitar a um macho só, fazendo dele, se disso precisar, centro de um círculo de raio crescente de machos imaginados.A melhor ocasião para fazer isso é nos dias que antecedem os da menstruação. Assim:
Imaginam o seu marido mais branco de corpo. Se imaginam bem, senti-lo-ão mais branco sobre si.
Retenham todo o gesto de sensualidade excessiva. Beijem o marido que lhes estiver em cima do corpo e mudem com a imaginação o homem num olhar belo que lhes estiver em cima da alma.
A essência do prazer é o desdobramento. Abram a porta da janela ao Felino em vós.
Como tracasser o marido.
Importa que o marido às vezes se zangue.
O essencial é começar a sentir a atracção pelas coisas que repugnam não perdendo a disciplina exterior.
A maior indisciplina interior junta à máxima disciplina exterior compõe perfeita sensualidade.
Todos Erramos
Apontamos quase sempre o dedo a quem erra… Condenamos os outros com enorme facilidade. Compreendemo-los pouco, perdoamo-los ainda menos. Mas, será que atirar pedras é o mais justo, eficaz e melhor?
Temos uma necessidade quase primária de julgar o comportamento alheio, de o analisar e avaliar ao mais ínfimo detalhe, sempre de um ponto de vista superior, como se o sentido da nossa existência, a nossa missão, passasse por sentenciar todos quantos cruzam a sua vida com a nossa… condenando-os… na firme convicção de que assim estamos a ajudar… a melhorar.
Comete erro em cima de erro quem se dedica a julgar os erros dos outros…
Julgamos de forma absoluta, na maior parte das vezes, generalizando um gesto ou dois, achando que cada pequena ação revela tudo quanto há a saber sobre determinada pessoa… mais, achamos que cada homem ou é bom ou é mau… como se não fossemos todos… de carne e osso… de luz e sombras.
Já a nós não nos julgamos nem nos deixamos julgar. Consideramos que, no caso específico da nossa vida, são tantos os factores que têm de se levar em conta (quase todos atenuantes) que se torna impossível qualquer tipo de veredicto…
Realização e Êxtase
Conviria distinguir bem um do outro o caminho para o êxtase e o próprio êxtase; o primeiro ainda pode ter algum interesse por todas as lutas interiores, por todas as incertezas, por todo o esforço de pensar amplamente a que em geral dá origem; no entanto já nele mesmo poderíamos ver, além de uma preocupação egoísta, uma alternativa de esperança e desespero, um gosto da revelação e dos auxílios sobrenaturais que não poderão talvez classificar-se como superiores.
Do êxtase, porém, não alimentamos grandes desejos; o amor que nele descobrimos não pertence à categoria do amor que mais nos interessa — o que eleva o amado acima de si próprio, o que se esforça por esculpir uma alma com entusiasmo e paciência; é um amor a que se chega como recompensa de tarefa cumprida; não marca as delícias do caminho difícil, apaga-as da memória; faz desaparecer do peito do homem o seu único motivo de alegria, a sua única fonte de verdadeira glória.
Viver interessa mais que ter vivido; e a vida só é vida real quando sentimos fora de nós alguma coisa de diferente; se a diferença se tornar oposição, se o que era caminho diverso se transformar em muro de rocha,
Idiotia e Felicidade
Como pode ser-se idiota e, ao mesmo tempo, feliz, pergunta-me um leitor? Pois explico já. A idiotia e a felicidade são ideias muito vagas, difíceis de cingir em conceitos de circulação universal, digamos. Mas, pensando melhor, acho que certa idiotia é susceptível de conferir ao idiota seu proprietário (ou seu prisioneiro) uma espécie de segurança em si próprio que o levará, em determinados momentos, julgo eu, a uma beatitude muito próxima do que se pode chamar estado de felicidade.Assim sendo, não vejo incompatibilidade entre o ser-se idiota e o ser-se feliz. Bem sei que há várias maneiras de se chegar a idiota. Uma delas foi experimentada comigo. Uma parente minha queria por força reconverter-me ao Catolicismo e, deste modo, passava a vida a dizer-me: «Alexandre, não penses. Se começas a pensar estragas tudo. A crença em Deus, se, em vez de pensares, reaprenderes a rezar, vem por si. É uma graça, sabias? Vá, reza comigo.» E ensinava-me orações que eu, muitas vezes de mãos postas, repetia aplicadamente. Acabei por não me casar com ela.
Não quero dizer, com isto, que não acredite na chamada (creio eu) revelação. Se revelação não existisse, como poderia um poeta do tomo de Paul Claudel entrar um dia em Notre-Dame e sentir-se,
Glória é Vaidade
A glória repousa propriamente sobre aquilo que alguém é em comparação com os outros. Portanto, ela é essencialmente relativa; por isso, só pode ter valor relativo. Desapareceria inteiramente se os outros se tornassem o que o glorioso é. Uma coisa só pode ter valor absoluto se o mantiver sob todas as circunstâncias; aqui, contudo, trata-se daquilo que alguém é imediatamente e por si mesmo. Consequentemente, é nisso que tem de residir o valor e a felicidade do grande coração e do grande espírito. Logo, valiosa não é a glória, mas aquilo que faz com que alguém a mereça, pois isso, por assim dizer, é a substância, e a glória é apenas o acidente. Ela age sobre quem é célebre, sobretudo como um sintoma exterior pelo qual ele adquire a confirmação da opinião elevada de si mesmo. Desse modo, poder-se-ia dizer que, assim como a luz não é visível se não for reflectida por um corpo, toda a excelência só adquire total consciência de si própria pela glória. Mas o sintoma não é sempre infalível, visto que também há glória sem mérito e mérito sem glória. Eis a justificativa para a frase tão distinta de Lessing: Algumas pessoas são famosas, outras merecem sê-lo.
O Pensamento não Domina a Acção
(…) hoje reconheço, naquilo que então aconteceu, o esquema por meio do qual o pensamento e a acção se conjugaram ou divergiram durante toda a minha vida. Penso, chego a um resultado, fixo-o numa conclusão e apercebo-me de que a acção é algo independente, algo que pode seguir a conclusão, mas não necessariamente. Durante a minha vida, fiz muitas coisas que não tinha decidido fazer, e não fiz outras que tinha firmemente decidido fazer. Algo que existe em mim, seja lá o que for, age; algo que me faz ir ter com uma mulher que já não quero voltar a ver, que faz ao superior um reparo que me pode custar o emprego, que continua a fumar embora eu tenha decidido deixae de fumar, e que deixa de fumar quando me resignei a ser um fumador para o resto dos meus dias.
Não quero dizer que o pensamento e a decisão não tenham alguma influência na acção. Mas a acção não decorre só do que foi pensado e decidido antes. Surge de uma fonte própria, e é tão independente como o meu pensamento e as minhas decisões.
Qual é o Seu Tipo de Sabedoria?
Há dois tipos de sabedoria: a inferior e a superior. A sabedoria inferior é medida por quanto uma pessoa sabe e, a superior, pela consciência que ela tem do que não sabe. Os verdadeiros sábios são os mais convictos da sua ignorância. Desconfiem das pessoas autossuficientes. A arrogância é um atentado contra a lucidez e a inteligência.
A sabedoria superior tolera, a inferior julga; a superior compreende, a inferior culpa; a superior perdoa, a inferior condena. A sabedoria inferior é cheia de diplomas, na superior ninguém se gradua, não há mestres nem doutores, todos são eternos aprendizes.
O Homem Superior
O maior triunfo do homem é quando se convence de que o ridículo é uma cousa sua que existe só para os outros, e, mesmo, sempre que outros queiram. Ele então deixa de importar-se com o ridículo, que, como não está em si, ele não pode matar.
Três cousas tem o homem superior que ensinar-se a esquecer para que possa gozar no perfeito silencio a sua superioridade — o ridiculo, o trabalho e a dedicação.
Como não se dedica a ninguém, também nada exige da dedicação alheia. Sóbrio, casto, frugal, tocando o menos possível na vida, tanto para não se incomodar como para não approximar as cousas de mais, a ponto de destruir nelas a capacidade de serem sonhadas, ele isola-se por conveniência do orgulho e da desillusão. Aprende a sentir tudo sem o sentir directamente; porque sentir directamente é submeter-se — submeter-se à acção da cousa sentida.
Vive nas dores e nas alegrias alheias, Whitman olímpico, Proteu da compreensão, sem partilhar de vivê-las realmente. Pode, a seu talante, embarcar ou ficar nas partidas de navios — e pode ficar e embarcar ao mesmo tempo, porque não embarca nem fica. Esteve com todos em todas as sensações de todas as horas da sua vida.
O Homem Cruel
Quando o rico tira um pertence ao pobre (por exemplo, um príncipe que tira a amante ao plebeu), então gera-se um erro no pobre; este acha que aquele tem de ser absolutamente infame, para lhe tirar o pouco que ele tem. Mas aquele não sente de modo algum tão profundamente o valor de um único pertence, porque está habituado a ter muitos: portanto, não se pode transpor para o espírito do pobre e não comete tal uma injustiça tão grande como este julga. Ambos têm um do outro uma concepção errada. A injustiça do poderoso, a que mais indigna na História, não é assim tão grande como parece. O mero sentimento hereditário de ser um ser superior, com direitos superiores, torna uma pessoa bastante fria e deixa-lhe a consciência tranquila: até todos nós, se a distância entre nós e um outro ente for muito grande, já não sentimos absolutamente nada de injusto e matamos um mosquito, por exemplo, sem qualquer remorso.
Assim, não é sinal de maldade em Xerxes (a quem mesmo todos os Gregos descrevem como eminentemente nobre) quando ele tira a um pai o seu filho e o manda esquartejar, porque este havia manifestado uma inquieta e ominosa desconfiança em relação a toda a expedição militar: neste caso,
Novos Valores para a Sociedade
Se pensarmos na nossa vida e na nossa actuação, em breve notaremos que quase todas as nossas aspirações e acções estão ligadas à existência de outros homens. Reparamos que, em toda a nossa maneira de ser, somos semelhantes aos animais que vivem em comum. Comemos os alimentos produzidos por outros homens, usamos vestuário que outros homens fabricaram e habitamos casas que outros construíram. A maior parte das coisas que sabemos e em que acreditamos foi-nos transmitida por outros homens, por meio duma linguagem que outros criaram. A nossa faculdade mental seria muito pobre e muito semelhante à dos animais superiores se não existisse a linguagem, de modo que teremos de concordar que, aquilo que nos distingue em primeiro lugar dos animais, o devemos à nossa vida na comunidade humana. O homem isolado — entregue a si desde o nascimento — manter-se-ia, na sua maneira de pensar e de sentir, primitivo como um animal, dum modo que dificilmente podemos imaginar. O que cada um é e significa, não o é tão-sòmente como ser isolado, mas como membro duma grande comunidade humana, que determina a sua existência material e espiritual desde o nascimento à morte.
Aquilo que um homem leva para a sua comunidade depende,
O Mal da Cidade
O Homem pensa ter na Cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. Vê, Jacinto! Na Cidade perdeu ele a força e beleza harmoniosa do corpo, e se tornou esse ser ressequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto, de ossos moles como trapos, de nervos trémulos como arames, com cangalhas, com chinós, com dentaduras de chumbo, sem sangue, sem fibra, sem viço, torto, corcunda – esse ser em que Deus, espantado, mal pode reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão! Na cidade findou a sua liberdade moral: cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade o arremessa para uma dependência: pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar; rico e superior como um Jacinto, a Sociedade logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimónias, praxes, ritos, serviços mais disciplinares que os dum cárcere ou dum quartel… A sua tranquilidade (bem tão alto que Deus com ela recompensa os Santos) onde está, meu Jacinto? Sumida para sempre, nessa batalha desesperada pelo pão, ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela fugidia rodela de ouro!
Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar –
Moderar as Expectativas
Ordinário desaire de tudo o que é muito celebrado antes é não chegar depois ao excesso do que foi concebido. Nunca o verdadeiro pôde alcançar o imaginado, porque fingir perfeições é fácil; difícil é consegui-las. Casa-se a imaginação com o desejo e concebe sempre muito mais do que as coisas são. Por maiores que sejam as excelências, não bastam para satisfazer o conceito, e, se o enganam com exorbitante expectação, é mais rápido o desengano que a admiração. A esperança é grande falsificadora da verdade: que a cordura a corrija, fazendo que a fruição seja superior ao desejo. Princípios de crédito servem para despertar a curiosidade, não para empenhar o objecto. Melhor resulta quando a realidade excede o conceito e é mais do que se acreditou. Essa regra faltará no que é mau, pois ajuda-o a própria exageração; desmente-a o aplauso, chegando a parecer tolerável o que se temeu ser ruim ao extremo.
A Inteligência não é o Fundo do nosso Ser
A inteligência não é o fundo do nosso ser. Pelo contrário. É como uma pele sensível, tentacular que cobre o resto do nosso volume íntimo, o qual por si é sensu stricto ininteligente, irracional. Barrès dizia isto muito bem: L’intelligence, quelle petite chose à la surface de nous. Aí está ela, estendida como um dintorno sobre o nosso ser mais interior, dando uma face às coisas, ao ser – porque o seu papel não é outro senão pensar as coisas, pensar o ser, o seu papel não é ser o ser, mas reflecti-lo, espelhá-lo. Tanto não somos ela que a inteligência é uma mesma em todos, embora uns dela tenham maior porção que outros. Mas a que tiverem é igual em todos: 2 e 2 são para todos 4. Por isso Aristóteles e o averroísmo acreditaram que havia um único noûs ou intelecto no Universo, que todos éramos, enquanto inteligentes, uma só inteligência. O que nos individualiza está por trás dela.
Mas não vamos agora espicaçar uma tão difícil questão. Baste o que foi dito para sugerir que em vão pretenderá a inteligência lutar num match de convicção com as crenças irracionais, habituais. Quando um cientista sustém as suas ideias com uma fé semelhante à fé vital,
O Interior da Alma
O olho do espírito em parte nenhuma pode encontrar mais deslumbramentos, nem mais trevas, do que no homem, nem fixar-se em coisa nenhuma, que seja mais temível, complicada, misteriosa e infinita. Há um espectáculo mais solene do que o mar, é o céu; e há outro mais solene do que o céu, é o interior da alma.
Fazer o poema da consciência humana, mas que não fosse senão a respeito de um só homem, e ainda nos homens o mais ínfimo, seria fundir todas as epopeias numa epopeia superior e definitiva. A consciência é o caos das quimeras, das ambições e das tentativas, o cadinho dos sonhos, o antro das ideias vergonhosas: é o pandemónio dos sofismas, é o campo de batalha das paixões. Penetrai, a certas horas, através da face lívida de um ser humano, e olhai por trás dela, olhai nessa alma, olhai nessa obscuridade. Há ali, sob a superfície límpida do silêncio exterior, combates de gigante como em Homero, brigas de dragões e hidras, e nuvens de fantasmas, como em Milton, espirais visionárias como em Dante.
A Monstruosa Amálgama da Identidade Europeia
O mal do totalitarismo é ser uniformizador e impositivo. Há sempre um modelo de perfeição, que os povos mais atrasados terão de seguir e com o qual terão de se comparar. Há sempre uma identidade superior, uma ideologia acima da realidade, um futuro comum aos mais diversos interesses. O totalitarismo é o grande inimigo da diferença e a própria democracia liberal, ao impor e exigir certas igualdades menos naturais, tem aspectos totalitários.
É com horror que assisto à construção da chamada «identidade» europeia, uma monstruosa amálgama beneluxiana que reduz todos os ingredientes nacionais a uma pasta amorfa de argamassa processada. Quando temo pela resistência da nossa diferença à uniformização europeia, não temo a nossa dominação de todas as nacionalidades — temo é a dominação de todas as nacionalidades por um euro-híbrido que não seja escolhido ou amado por nenhuma delas. A verdade é que a Itália está menos italiana, a Alemanha está menos alemã, a Inglaterra está menos inglesa e Portugal está menos português. E nem por isso estão mais parecidos com outra nacionalidade qualquer. O que perderam em carácter não ganharam em mais nada. As nações europeias estão cada vez mais iguais, mais incaracterísticas, mais chatas. Qualquer dia deixa de ter piada viajar.
A Imoralidade das Biografias
O génio, o crime e a loucura provêm, por igual, de uma anormalidade, representam, de diferentes maneiras, uma inadaptação ao meio. Se repousam, porém, sobre um igual fundo degenerativo, se o génio constitui, de por si, uma espécie nosográfica — são cousas que não sabemos. Manifestação especial de epilepsia larvada, como precipitadamente quis Lombroso, ou manifestação de uma diatese degenerativa, o certo é que o génio é, de sua natureza, uma anormalidade.
Sucede que a imaginação simplista das multidões não destrinça de instinto entre o que na personalidade do homem superior constitui, ou representa, superioridade, e o que nela resulta de concomitante, ou intercorrente, anormalidade psíquica, patentemente tal. No fundo, esta intuição espontânea é justa. Na personalidade tudo se liga, se inter-relaciona. Não podemos “separar”, salvo por um processo analítico conscientemente truncador da realidade, na personalidade de Goethe, por exemplo, a modalidade específica da sua ideação literária e a tendência alucinativa que, como se sabe, obriga à autoscopia externa; nem podemos separar na personalidade de Shakespeare a intuição dramática de, por ex., a inversão sexual.
A Aspiração de Todo o Bom Português
Enquanto a aspiração de todo o bom português for, na frase de um escritor, um casamento rico e um emprego público; enquanto o diploma for o caminho mais seguro e cómodo para uma colocação certa embora pouco rendosa, e nos não disserem como um inglês ilustre a um professor da França que lhe mostrava os numerosos certificados das suas habilitações: «Nós não precisamos de diplomas, Senhor, precisamos de homens»; enquanto for uma inferioridade a vida de trabalho e um sinal de distinção a ociosidade, uma população numerosa e fútil há-de cursar as escolas secundárias e superiores, e tudo o que exige trabalho e rasgada iniciativa será abandonado; a agricultura, o comércio, a indústria, todas as fontes de riqueza nacional ficarão desaproveitadas, desprezadas, a meterem dó, quando podiam ser a honrosa ocupação de tantos e a salvação e a prosperidade de todos nós.
O Erro no Juízo
Porque é que se erra tanto no juízo sobre nós? Porque quando realizamos uma obra damos o máximo que temos. Acima disso é o invisível. E só quando isso se nos torna visível poderemos medir a distância a que fica o que fizemos. Para ajuizar do que é inferior é preciso ser-se superior. É por isso que um imbecil facilmente se julga um génio. À cautela, portanto, o melhor é não nos julgarmos…