Poema Cansado de Certos Momentos
Foi-se tudo
como areia fina escoada pelos dedos.
Mãe! aqui me tens,
metade de mim,
sem saber que metade me pertence.
Aqui me tens,
de gestos saqueados,
onde resta a saudade de ti
e do teu mundo de medos.
Meus braços, vê-os, estão gastos
de pedir luz
e de roubar distâncias.
Meus braços
cruzados
em cruz de calvário dos meus degredos.
Ai que isto de correr pela vida,
dissipando a riqueza que me deste,
de levar em cada beijo
a pureza que pariste e embalaste,
ai, mãe, só um louco ou um Messias
estendendo a face de justopara os homens cuspirem o fel das veias,
só um louco, ou um poeta ou um Cristo
poderá beijar as rosas que os espinhos sangram
e, embora rasgado, beber o perfume
e continuar cantando.
Mãe! tu nunca previste
as geadas e os bichos
roendo os campos adubados
e o vizinho largando a fúria dos rebanhos
pela flor menina dos meus prados.
E assim, geraste-me despido
como as ervas,
e não olhaste os pegos nem as cobras,
Passagens sobre Face
328 resultadosO Rock And Roll é a marcha marcial de todos os delinquentes juvenis sobre a face da terra.
Mentir é maldade absoluta. Não é possível mentir pouco ou muito; quem mente, mente. A mentira é a própria face do demônio.
Setentrional
Talvez já te não lembres, triste Helena,
Dos passeios que dávamos sozinhos,
À tardinha, naquela terra amena,
No tempo da colheita dos bons vinhos.Talvez já te não lembres, pesarosa,
Da casinha caiada em que moramos,
Nem do adro da ermida silenciosa,
Onde nós tantas vezes conversamos.Talvez já te esquecesses, ó bonina,
Que viveste no campo só comigo,
Que te osculei a boca purpurina,
E que fui o teu sol e o teu abrigo.Que fugiste comigo da Babel,
Mulher como não há nem na Circássia,
Que bebemos, nós dois, do mesmo fel,
E regamos com prantos uma acácia.Talvez já te não lembres com desgosto
Daquelas brancas noites de mistério,
Em que a Lua sorria no teu rosto
E nas lajes campais do cemitério.Talvez já se apagassem as miragens
Do tempo em que eu vivia nos teus seios,
Quando as aves cantando entre as ramagens
O teu nome diziam nos gorjeios.Quando, à brisa outoniça, como um manto,
Os teus cabelos de âmbar, desmanchados,
Se prendiam nas folhas dum acanto,
Ao se envolver com alguém que expressa na face o que não sente na alma, cuidado: A boca que beija é a mesma que devora!
Verônica
Não a face do Cristo, a macilenta
Face do Cristo, a dolorosa face…
O martírio da Cruz passou fugace
E este Martírio, esta Paixão é lenta.Um vivo sangue a face te ensangüenta,
Mais vivo que se o Deus o derramasse;
Porque esta vã paixão, para que passe,
É mister dos Titãs a luta incruenta.Se tu, Visão da Luz, Visão sagrada
Queres ser a Verônica sonhada,
Consoladora dessa dor sombriaImpressa ficara no teu sudário
Não a face do Cristo do Calvário
Mas a face convulsa da Agonia!
Que Mimoso Prazer!
1
Que mimoso prazer! Teu rosto amado
Me raiou na alma! Oh astro meu luzente!
Desfez-se em continente
O negrume cerrado,
Que me assombrava o coração aflito,
Em saudades tristíssimas sopito.2
Bem, como quando aponta o sol radiante
Pelos ervosos cumes dos outeiros;
Fogem bruscos nevoeiros,
Da roxa luz brilhante;
Assim, mal vi teu rosto, assim fugiam
As Mágoas, que de luto a alma cobriam3
Quem sempre assim de amor nos brandos laços!
Doces queixas de amor absorto ouvira!
Da idade não sentira
O voo. Entre os teus braços
Me corte o fio, com a fouce, a Morte;
Que perco a vida, sem sentir o corte!4
Se a meiga Vénus, se o gentil Cupido
Cede a meus votos, cede à minha Amada:
Se esta união prezada
Não rompe um Nume infido…
Não dou por mais feliz o vil Mineiro
Sobre montes de sórdido dinheiro.5
Não dou por mais feliz o Rei no trono
Lisonjado de Cortesãos astutos.
A Inteligência não é o Fundo do nosso Ser
A inteligência não é o fundo do nosso ser. Pelo contrário. É como uma pele sensível, tentacular que cobre o resto do nosso volume íntimo, o qual por si é sensu stricto ininteligente, irracional. Barrès dizia isto muito bem: L’intelligence, quelle petite chose à la surface de nous. Aí está ela, estendida como um dintorno sobre o nosso ser mais interior, dando uma face às coisas, ao ser – porque o seu papel não é outro senão pensar as coisas, pensar o ser, o seu papel não é ser o ser, mas reflecti-lo, espelhá-lo. Tanto não somos ela que a inteligência é uma mesma em todos, embora uns dela tenham maior porção que outros. Mas a que tiverem é igual em todos: 2 e 2 são para todos 4. Por isso Aristóteles e o averroísmo acreditaram que havia um único noûs ou intelecto no Universo, que todos éramos, enquanto inteligentes, uma só inteligência. O que nos individualiza está por trás dela.
Mas não vamos agora espicaçar uma tão difícil questão. Baste o que foi dito para sugerir que em vão pretenderá a inteligência lutar num match de convicção com as crenças irracionais, habituais. Quando um cientista sustém as suas ideias com uma fé semelhante à fé vital,
Os Quinze Anos De Uma Alma Transparente
Os quinze anos de uma alma transparente,
O cabelo castanho, a face pura,
Uns olhos onde pinta-se a candura
De um coração que dorme, inda inocente…Um seio que estremece de repente
Do mimoso vestido na brancura…
A linda mão na mágica cintura…
E uma voz que inebria docemente…Um sorrir tão angélico, tão santo…
E nos olhos azuis cheios de vida
Lânguido véu de involuntário pranto…É esse o talismã, é essa a Armida,
O condão de meus últimos encantos,
A visão de minh’alma distraída!
Idílio
Sinto que, ás vezes, choras, minha Irmã,
No teu sombrio quarto recolhida…
É que ele vem rompendo a sombra vã
Da Morte, e lhe aparece á luz da vida!E afflicta, como choras, minha Irmã…
Teu chôro é tua voz emudecida,
Ante a imagem do Filho, essa Manhã
Em profunda saudade amanhecida.Silencio! Não palpites, coração;
Nem canto de ave ou mistica oração
Um tal idilio venham perturbar!Deixae o Filho amado e a Mãe saudosa:
O Filho a rir, de face carinhosa,
E a Mãe, tão triste e pálida, a chorar…
Senhora I
No calmo colo pouso meus segredos
Senhora que sabeis minhas fraquezas.
convoco só convosco o que antecedo
na lira ensimesmada da incerteza.Não sei se o vero verso do degredo
vem albergado ou presa de represa
das frias águas íntimas do medo
lavando o frágil lado da tristeza.A depressiva face não mostrada
esplende em vosso espelho que me abriga
lambendo o sal dos olhos da geada.Águas que são do orvalho da fadiga
de recorrentes gotas espalhadas
regando as vossas mãos de amada e amiga
O Interior da Alma
O olho do espírito em parte nenhuma pode encontrar mais deslumbramentos, nem mais trevas, do que no homem, nem fixar-se em coisa nenhuma, que seja mais temível, complicada, misteriosa e infinita. Há um espectáculo mais solene do que o mar, é o céu; e há outro mais solene do que o céu, é o interior da alma.
Fazer o poema da consciência humana, mas que não fosse senão a respeito de um só homem, e ainda nos homens o mais ínfimo, seria fundir todas as epopeias numa epopeia superior e definitiva. A consciência é o caos das quimeras, das ambições e das tentativas, o cadinho dos sonhos, o antro das ideias vergonhosas: é o pandemónio dos sofismas, é o campo de batalha das paixões. Penetrai, a certas horas, através da face lívida de um ser humano, e olhai por trás dela, olhai nessa alma, olhai nessa obscuridade. Há ali, sob a superfície límpida do silêncio exterior, combates de gigante como em Homero, brigas de dragões e hidras, e nuvens de fantasmas, como em Milton, espirais visionárias como em Dante.
Poema de Natal
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos…
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
A Amizade é Indispensável ao Nosso Ser
A amizade é a unica coisa cuja utilidade é unanimemente reconhecida. A própria virtude tem muitos detratores, que a acusam de ostentação e charlatanismo. Muitos desprezam as riquezas e, contentes de pouco, agradam-se da mediocridade. As honras, à procura da qual se matam tanto as pessoas, quantos outros as desdenham até olhá-las como o que há de mais fútil e de mais frívolo? E, assim, quanto ao mais! O que a uns parece admirável, ao juízo doutros nada é. Mas quanto à amizade, toda a gente está de acordo: os que se ocupam dos negócios públicos, os que se apaixonaram pelo estudo e pelas indagações sapientes, e os que, longe do bulício, limitam os seus cuidados aos seus interesses privados: todos enfim, aqueles mesmos que se entregaram todos inteiros aos prazeres, declaram que a vida nada é sem a amizade, por pouco que queiram reservar a sua para algum sentimento honorável.
Ela se insinua, com efeito, não sei como, no coração de todos os homens e não se admite que, sem ela, possa passar nenhuma condição da vida. Bem mais, se é um homem de natureza selvagem, muito feroz para odiar seus semelhantes e fugir do seu contacto, como fazia,
Os Amantes
Amor, é falso o que dizes;
Teu bom rosto é contrafeito;
Busca novos infelizes
Que eu inda trago no peito
Mui frescas as cicatrizes;O teu meu é mel azedo,
Não creio em teu gasalhado,
Mostras-me em vão rosto ledo;
Já estou muito escaldado,
Já d’águas frias hei medo.Teus prémios são pranto e dor;
Choro os mal gastados anos
Em que servi tal senhor,
Mas tirei dos teus enganos
O sair bom pregador.Fartei-te assaz a vontade;
Em vãos suspiros e queixas
Me levaste a mocidade,
E nem ao menos me deixas
Os restos da curta idade?És como os cães esfaimados
Que, comendo os troncos quentes
Por destro negro esfolados,
Levam nos ávidos dentes
Os ossos ensanguentados.Bem vejo a aljava dourada
Os ombros nus adornar-te;
Amigo, muda de estrada,
Põe a mira em outra parte
Que daqui não tiras nada.Busca algum fofo morgado
Que, solto já dos tutores,
Ao domingo penteado,
Vá dizendo à toa amores
Pelas pias encostado;
A face de um velho amigo é como um raio de sol por entre escuras e sombrias nuvens.
XI
Formosa é Daliana; o seu cabelo,
A testa, a sobrancelha é peregrina;
Mas nada tem, que ver coa bela Eulina,
Que é todo o meu amor, o meu desvê-lo:Parece escura a nove em paralelo
Da sua branca face; onde a bonina
As cores misturou na cor mais fina,
Que faz sobressair seu rosto belo.Tanto os seus lindos olhos enamoram,
Que arrebatados, como em doce encanto,
Os que a chegam a ver, todos a adoram.Se alguém disser, que a engrandeço tanto
Veia, para desculpa dos que choram
Veja a Eulina; e então suspenda o pranto.
Prometi-me Possuí-la
Prometi-me possuí-la muito embora
ela me redimisse ou me cegasse.
Busquei-a na catástrofe da aurora,
e na fonte e no muro onde sua face,entre a alucinação e a paz sonora
da água e do musgo, solitária nasce.
Mas sempre que me acerco vai-se embora
como se temesse ou me odiasse.Assim persigo-a, lúcido e demente.
Se por detrás da tarde transparente
seus pés vislumbro, logo nos desvãosdas nuvens fogem, luminosos e ágeis!
Vocabulário e corpo — deuses frágeis —
eu colho a ausência que me queima as mãos.[Poemas Portugueses]
Em face da imprevisibilidade da vida, inventamos Deus, que nos protege da bala perdida.
Saudade
Tu és o cálix;
Eu, o orvalho!
Se me não vales,
Eu o que valho?Eu se em ti caio
E me acolheste
Torno-me um raio
De luz celeste!Tu és o collo
Onde me embalo,
E acho consolo,
Mimo e regalo:A folha curva
Que se aljofara,
Não d’agoa turva,
Mas d’agoa clara!Quando me passa
Essa existencia,
Que é toda graça,
Toda innocencia,Além da raia
D’este horizonte—
Sem uma faia,
Sem uma fonte;O passarinho
Não se consome
Mais no seu ninho
De frio e fome,Se ella se ausenta,
A boa amiga,
Ah! que o sustenta
E que o abriga!Sinto umas magoas
Que se confundem
Com as que as agoas
Do mar infundem!E quem um dia
Passou os mares
É que avalia
Esses pezares!Só quem lá anda
Sem achar onde
Sequer expanda
A dôr que esconde;Longe do berço,