A História do Romance não é «apenas» a história do romance
A discussão sobre um romance é arriscada e limitada quando parte de um canône puramente estético. Porque não é um canône estético a ter em conta: é um canône de vida. Uma obra de arte julga-se em função do que o autor oretende – não do que pretendemos nós. Se queremos pô-la em causa, discutamos a pretensão antes do que ela realizou. Assim é pouco eficaz a discussão do «novo romance» francês antes de nos perguntarmos porque é que tomou tal caminho. Porque tal caminho implica uma negação radical (em alguns escritores, pelo menos) dos valores da inteligibilidade, da coerência, do próprio homem enfim. A história da «personagem», como certos críticos, aliás, já frisaram, tem agora o seu trágico remate na destruição dessa mesma personagem. Mas que a negação de um significado para a presença do homem no mundo que o rodeia é uma negação paradoxal, prova-o não apenas o facto de o romancista ordenar a visão do mundo «nessa» perspectiva (e essa é uma contradição, como o é o cepticismo absoluto) como o prova ainda a obra de certos romancistas (digamos a de um Butor, na anotação de um Merleau-Ponty) para quem o «objecto» se impregna da presença do homem.
Passagens sobre Fatos
900 resultadosSó quem quer brincar com coisas sérias e não sabe do que está a falar é que diz que há censura em Portugal. Não há censura nenhuma em Portugal. Ponha o dedo no ar a primeira pessoa que, de facto, queira dizer alguma coisa e tenha sido proibida de o fazer.
Quando elas nos amam, não é de facto a nós que amam. Mas é bem a nós que, um belo dia, elas deixam de amar.
O Campo da Experiência Nunca nos Satisfaz
Sendo todos os princípios do nosso entendimento apenas aplicáveis a objectos da experiência possível, toma-se evidente que todo raciocínio racional, que se aplica às coisas situadas fora das condições da experiência, ao invés de alcançar a verdade, apenas deve necessariamente chegar a uma aparência e a uma ilusão.
Mas o que caracteriza tal ilusão é que ela é inevitável (…) a tal ponto que, mesmo quando já nos apercebemos da sua falsidade, nos não podemos libertar dela. (…) De facto, o campo da experiência nunca nos satisfaz. (…) A nossa razão, para se satisfazer, deve, pois, necessariamente, tentar ultrapassar os limites da experiência e, por consequência, persuadir-se infalivelmente de que por esse caminho alcançará a extensão e a integralidade dos seus conhecimentos, coisa que ela não pode encontrar no campo dos fenómenos. Mas esta persuasão é uma ilusão completa: estando totalmente para além dos limites da nossa experiência sensível todos os conceitos e princípios do entendimento, e não podendo então ser aplicados a qualquer objecto, a razão ilude-se a si mesma quando atribui um valor objectivo a máximas completamente subjectivas, que, na realidade, apenas admite para sua própria satisfação.
(…) Todos os nossos raciocínios que pretendem sair do campo da experiência são ilusórios e infundamentados.
Pode o homem mudar o seu passado? Sim. Não os factos em si, mas a importância que lhes é atribuída. Toda a harmonia e equilíbrios internos serão diferentes.
O Meu Público
Quando escrevo, o meu único público sou eu. Depois é que me ponho à espera de que sejam também os outros. Não porque antes os menospreze: simplesmente porque não existem. Mas é evidente que me interessa que existam depois como público pelo desejo natural de me confirmarem a existência como escritor. Porque a existência como escritor implica a audiência dos outros. Não escolho porém o público – espero que ele me escolha. Seria duro que me não escolhesse, por todas as implicações que se adivinham. Mas não é impeditivo de continuar – excepto se me convencerem (quem se convence?) que não tinha nada a dizer. E no entanto, se nós exprimirmos o tempo que nos exprime, há um pacto indissolúvel entre o tempo e nós. Assim, o nosso público está aí sempre, ainda que tenhamos que ser nós a despertá-lo.
Esse público não desperta se nós de facto lhe não falarmos, ou seja, se realmente não houve pacto algum com ele. Todas estas questões, porém, são supérfluas para a necessidade de escrever. Cumpre-se um destino de artista como outros o de serem santos ou criminosos…
O resto não é connosco – é com os críticos, os hagiógrafos e os arquivos da polícia.
Ser Injusto é Necessário
Todos os juízos acerca do valor da vida se desenvolveram ilogicamente e são, por isso, injustos. A impureza do juízo encontra-se, em primeiro lugar, na maneira como o material se apresenta, isto é, muito incompleto; em segundo lugar, na maneira como é efectuada a respectiva soma; e, em terceiro lugar, no facto de cada um dos fragmentos do material ser, por seu lado, resultado de um conhecimento impuro e isto, na verdade, de forma absolutamente necessária. Nenhum conhecimento obtido pela experiência acerca, por exemplo, de uma pessoa, por muito perto que esta esteja de nós, pode ser completo, de modo que nós tenhamos um direito lógico a uma avaliação global da mesma. Todas as estimativas são precipitadas e têm de o ser.
No fim de contas, a medida, com a qual nós medimos, ou seja, o nosso ser, não é uma grandeza invariável; nós temos estados de espírito e oscilações, e, não obstante, deveríamos conhecer-nos a nós próprios como uma medida fixa para podermos avaliar justamente a relação de qualquer coisa connosco. Talvez se conclua de tudo isto que não se deveria julgar de todo em todo; mas se se pudesse sequer viver sem avaliar, sem ter antipatia nem simpatia!…
Sobre as emoções tenho curiosidade. Sobre os fatos, quaisquer que venham a ser, não tenho curiosidade alguma.
O Problema da Especialização
O domínio dos factos explicáveis pela ciência alargou enormemente, e o conhecimento teórico em todos os campos da ciência tem sido aprofundado, para além do que podia esperar-se. A capacidade de compreensão humana, porém, é e será sempre muito limitada. Assim não podia deixar de acontecer que a actividade do investigador individual tivesse que restringir-se a um sector, cada vez mais limitado, do conhecimento científico geral. Mas o mais grave é que esta especialização faz que a compreensão geral da ciência como um todo — sem a qual o verdadeiro investigador cristaliza forçosamente — tenha de marcar passo com a evolução, o que se torna cada vez mais difícil. Cria-se, assim, uma situação idêntica àquela que, na Bíblia, é simbolicamente representada pela História da torre de Babel. Todo o investigador honesto tem a dolorosa consciência dessa limitação involuntária a um círculo de compreensão cada vez mais apertado, que ameaça roubar as grandes perspectivas ao investigador e o reduz a simples obreiro.
O Conceito de Nós Próprios
Cada homem, desde que sai da nebulose da infância e da adolescência, é em grande parte um produto do seu conceito de si mesmo. Pode dizer-se sem exagero mais que verbal, que temos duas espécies de pais: os nossos pais, propriamente ditos, a quem devemos o ser físico e a base hereditária do nosso temperamento; e, depois, o meio em que vivemos, e o conceito que formamos de nós próprios – mãe e pai, por assim dizer, do nosso ser mental definitivo.
Se um homem criar o hábito de se julgar inteligente, não obterá com isso, é certo, um grau de inteligência que não tem; mas fará mais da inteligência que tem do que se julgar estúpido. E isto, que se dá num caso intelectual, mais marcadamente se dá num caso moral, pois a plasticidade das nossas qualidades morais é muito mais acentuada que a das faculdades da nossa mente.
Ora, ordinariamente, o que é verdade da psicologia individual – abstraindo daqueles fenómenos que são exclusivamente individuais – é também verdade da psicologia colectiva. Uma nação que habitualmente pense mal de si mesma acabará por merecer o conceito de si que anteformou. Envenena-se mentalmente.
O primeiro passo passou para uma regeneração,
Não desesperes, nem sequer pelo facto de não desesperares. Quando já tudo parece ter acabado, novas forças surgem em marcha, e isso significa precisamente que estás vivo. E se não vierem, então acabou tudo por aqui e de uma vez para sempre.
Só o Dinheiro é o Bem Absoluto
Numa espécie tão carente e constituída de necessidades como a humana, não é de admirar que a riqueza, mais do que qualquer outra coisa, seja tão estimada e com tanta sinceridade, chegando a ser venerada; e mesmo o poder é apenas um meio para chegar a ela. Assim, não é surpreendente que, objectivando a aquisição, todo o resto seja colocado de lado ou atirado para um canto. Por exemplo, a filosofia pelos professores de filosofia.
Os homens são amiúde repreendidos porque os seus desejos são direccionados sobretudo para o dinheiro e eles amam-no acima de tudo. Todavia, é natural, e até mesmo inevitável, amar aquilo que, como um Proteu infatigável, está pronto em qualquer instante para se converter no objecto momentâneo dos nossos desejos e das nossas necessidades múltiplas. De facto, qualquer outro bem só pode satisfazer a um desejo, a uma necessidade: os alimentos são bons apenas para os famintos; o vinho, para os de boa saúde; os medicamentos, para os doentes; uma peliça, para o inverno; as mulheres, para os jovens, etc. Todos eles, por conseguinte, são meramente bons para algo, ou seja, apenas relativamente bons. .Arthur Schopenhauer, in ‘Aforismos para a Sabedoria de Vida’
Nunca admiro o ato ou o fato, mas apenas o espírito humano. O ato, o fato, são vestimentas e a história não é mais do que o velho guarda-roupa do espírito humano.
Verdade é Coerência
Não há verdade, nem necessidade absoluta. Chamamos verdadeiro a um conceito, que concorda com o sistema geral de todos os nossos conceitos; verdadeira a uma percepção, que não contradiz o sistema das nossas percepções; verdade é coerência. E, no que respeita a todo o sistema, ao conjunto, dado que, fora dele, não existe nada que seja para nós conhecido, não podemos dizer se é ou não verdadeiro. É imaginável que o universo seja, em si, fora de nós, muito diferente daquilo que nos parece, ainda que esta seja uma suposição que carece de todo o sentido racional. E, no que toca à necessidade, há uma necessidade absoluta? Necessário não é senão aquilo que é, e enquanto o é, pois que, noutro sentido mais transcendental, que necessidade absoluta, lógica, independente do facto de que o universo existe, há de que haja universo ou qualquer outra coisa?
O relativismo absoluto, que não é mais nem menos do que o ceptcismo, no sentido mais moderno desta denominação, é o triunfo supremo da razão raciocinante.
Eu acredito em geral em um dualismo entre fatos e as ideias destes fatos nas mentes humanas.
Moral para Psicólogos
Não cultivar uma psicologia de bisbilhoteiro! Nunca observar só por observar! Isso provoca uma óptica falsa, uma perspectiva vesga, algo que resulta forçado e que exagera as coisas. O ter experiências, quando é um querer-ter-experiências, — não resulta bem. Na experiência não é lícito olhar para si mesmo, todo o olhar se converte então num «mau-olhado». Um psicólogo nato guarda-se, por instinto, de ver por ver; o mesmo se pode dizer do pintor nato. Este não trabalha jamais «segundo a natureza», encomenda ao seu instinto, à sua câmara escura o crivar e exprimir o «caso», a «natureza», o «vivido»… Até à sua consciência chega só o universal, a conclusão, o resultado: não conhece esse arbitrário abstrair do caso individual. — Que é que resulta quando se procede de outro modo? Quando se cultiva, por exemplo, uma psicologia de bisbilhoteiro, à maneira dos romanciers parisienses, grandes e pequenos? Essa gente anda, por assim dizê-lo, à espreita da realidade, essa gente leva para casa cada noite um punhado de curiosidades… Porém veja-se o que acaba por sair daí — um montão de borrões, um mosaico no melhor dos casos, e de qualquer forma algo que é o resultado da soma de várias coisas,
Bafo de gato, que nem chegue ao fato.
Eu não conheço piadas, eu apenas presto atenção no Governo e conto os fatos que vi
Não Consigo Viver em Literatura
Por mais que o deseje, não consigo viver em literatura. Felizes os que o conseguem. Viver em literatura é suprimir toda a interferência do que lhe é exterior – desde o peso das pedradas ao das flores da ovação. Suprimir mesmo ou sobretudo a conversa sobre ela, desde a dos jornais à dos amigos. Fazer da literatura um meio enclausurado em que a respiremos até à intoxicação e nada dele transpire para a exterioridade. Viver a arte como uma mística, um transporte de inebriamento, uma iluminação da graça, uma inteira absorção como de um vício inconfessável. Vivê-la na intimidade de uma absoluta solidão em que toda a ameaça de público esteja ausente como numa ilha que a impossibilidade de comunicação tornasse de facto deserta. Os recém-casados isolam-se para defenderem dos outros a mínima parcela da paixão. A vida em arte devia ser uma viagem de núpcias sem retorno. Só então se conheceria tudo o que a arte é para nós e a inteira verdade com que nós somos para ela. Mas não. Há que viver uma vida dúplice entre o estar a sós com ela e o permanente convívio, nem que sejam uns breves instantes à porta com os indiferentes e os maledicentes e os curiosos e mesmo os admiradores de que se necessita na nossa inferioridade moral para nos confirmarem no bom resultado da aposta.
Moral Convencional e Moral Verdadeira
A respeitabilidade, a regularidade, a rotina – toda a disciplina de ferro forjada na moderna sociedade industrial – atrofiaram o impulso artístico e aprisionaram o amor de forma tal que não mais pode ser generoso, livre e criador, tendo de ser ou furtivo ou pedante. Aplicou-se controle às coisas que mais deveriam ser livres, enquanto a inveja, a crueldade e o ódio se espraiam à vontade com as bençãos de quase toda a bisparia. O nosso equipamento instintivo consiste em duas partes – uma que tende a beneficiar a nossa própria vida e a dos nossos descendentes, e outra que tende a atrapalhar a vida dos supostos rivais. Na primeira incluem-se a alegria de viver, o amor e a arte, que psicologicamente é uma consequência do amor. A segunda inclui competição, patriotismo e guerra. A moral convencional tudo faz para suprimir a primeira e incentivar a segunda. A moral verdadeira faria exactamente o contrário.
As nossas relações com os que amamos podem ser perfeitamente confiadas ao instinto; são as nossas relações com aqueles que detestamos que deveriam ser postas sob o controle da razão. No mundo moderno, aqueles que de facto detestamos são grupos distantes, especialmente nações estrangeiras. Concebemo-las no abstracto e engodamo-nos para crer que os nossos actos (na verdade manifestações de ódio) são cometidos por amor à justiça ou outro motivo elevado.