As Mãos do Meu Pai
As tuas mãos têm grossas veias como cordas azuis
sobre um fundo de manchas já cor de terra
— como são belas as tuas mãos —
pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram
na nobre cólera dos justos…Porque há nas tuas mãos, meu velho pai,
essa beleza que se chama simplesmente vida.
E, ao entardecer, quando elas repousam
nos braços da tua cadeira predileta,
uma luz parece vir de dentro delas…Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente,
vieste alimentando na terrível solidão do mundo,
como quem junta uns gravetos e tenta acendê-los contra o vento?
Ah, Como os fizeste arder, fulgir,
com o milagre das tuas mãos.E é, ainda, a vida
que transfigura das tuas mãos nodosas…
essa chama de vida — que transcende a própria vida…
e que os Anjos, um dia, chamarão de alma…
Passagens sobre Luz
1483 resultadosPoema da Profundidade Horizontal
Pintem uma paisagem dentro de outra
porque nisso está a verdade.
Olhem como avançam cautelosamente
pela falésia a pique;
uma curta aprendizagem
na agulha da torre
bastou.
Olho-te como para uma lente de aumentar,
uma luz para mais iluminar,
como se fosses antes de haver luz
uma pedra preciosa,
a causa das guerras:
dorme sobre os joelhos
e sente
revir ao mesmo tempo
automaticamente
os braços superiores laterais
enferrujados,
como a luz do velho farol.
Beija os dez cães que há dentro de um cão vadio,
os cem homens que há dentro de um homem,
de tal maneira que
o ar fique em chamas
e seja a única salvação
a mão do mar eternamente
na nossa fronte.
Venho do fundo das Eras Quando o mundo mal nascia… Sou tão antigo e tão novo Como a luz de cada dia!
Definição do Amor
“Amor é fogo que arde sem se ver
é ferida que doi e não se sente
é um contentamento descontente
é dor que desatina sem doer”
(Camões)Que o poeta de todos os poetas
me conceda boa estrela
que a estrela de todos os astros
me premeie na lapela
prémios de honor
prefiro os muitos
oferecidos pelas mãos do amor
coroando o amor e seus heterónimos
nem vão caber nos JerónimosAmores anónimos não há
e assim foi pela madrugada
mesmo que seja um “assim fosse”
vou nomear-te namorada
ninguém já soube o que é o amor
se o amor é aquilo que ninguém viu
uma cor que fugiu
de um pano leve
e pairou serena e breve
no ar
(Pousa agora, borboleta
na pena deste poeta:)É uma cor que dá na vida
o amor
é uma luz que dá na cor
É uma cor que dá na vida
o amor
é uma luz que dá na cor
mas é uma batalha perdida
que se trava com ardor
é uma cor que dá na vida
o amor
dor que desatina sem doerSe devagar se vai ao longe
devagar te quero perto
mesmo que o que arde nunca cure
vou beijar-te a sol aberto
é já dos livros que o instante
se parece tanto com a eternidade
e que o amor,
Acordando
Em sonho, às vezes, se o sonhar quebranta
Este meu vão sofrer; esta agonia,
Como sobe cantando a cotovia,
Para o céu a minh’alma sobe e canta.Canta a luz, a alvorada, a estrela santa,
Que ao mundo traz piedosa mais um dia…
Canta o enlevo das cousas, a alegria
Que as penetra de amor e as alevanta…Mas, de repente, um vento humido e frio
Sopra sobre o meu sonho: um calafrio
Me acorda. — A noite é negra e muda: a dorCá vela, como d’antes, ao meu lado…
Os meus cantos de luz, anjo adorado,
São sonho só, e sonho o meu amor!
Soneto 510 Malocatário
Soneto é um apertado apartamento
num vasto condomínio de inquilinos.
A mesma planta e vários seus destinos:
um drama urbano em cada pavimento.Dois quartos, pouca luz e muito vento,
que podem ser alcovas ou cassinos,
paróquias parcas, clubes clandestinos,
abrigo do autor brega ou do briguento.Agora virou zona, mas um dia
foi casa de família e regra tinha:
conversa só começa se o pai pia.Além da comezinha escrivaninha,
só tem privada, cama, mesa e pia.
Sem sala, o papo acaba na cozinha.
Preguiça Corporal e Preguiça Espiritual
Há um trabalho servil, que é do corpo e para o corpo, embora a mente ajude, e um trabalho régio, que é da alma e para a alma, e quase ninguém exige às mãos. Há, portanto, uma preguiça corporal e outra espiritual, uma ou outra senhora de todos.
A primeira é dominada – não destruída – pela necessidade e pelo tédio; a outra, reforçada pela arrogância, raramente é vencida. Os homens são indolentes que trabalham contra a vontade com os braços e a inteligência para fugir ao trabalho mais difícil da alma.
As actividade imoderadas de muitos não passam de pretextos da ociosidade espiritual. Em vez de se afadigarem para conseguir a renúncia dos bens materiais, sujeitam-se a um trabalho totalmente exterior que por vezes se converte, devido a inércia ou embriaguez, em frenesim.
Mas reformar a natureza doente e transviada, abandonar a senda da concupiscência e alcançar a liberdade serena dos filhos da luz representa um trabalho incomparavelmente mais duro do que dirigir uma empresa, fábrica ou banco. A maioria, por cáclculo de indolência, prefere o trabalho servil, embora penoso, ao real, mais áspero e duro – torna-se escravo das coisas terrestres para evitar o esforço que o tornaria dono do espírito.
Meu Calvário
Ando sempre a seguir-te… a buscar-te distante
como a visão que anseio e os olhos me seduz,
– e espero te encontrar, sentir de perto a luz
do teu olhar feliz em êxtase constante…Mas tu foges de mim, foges a cada instante,
e eu que a este andar eterno já me predispus,
embora às vezes pare, – sigo logo adiante
sem mesmo perceber que esse amor é uma cruz!Não sei se hás de ser minha! O teu afastamento
cresce à frente de mim, – no entanto, o imaginário
desejo de alcançar-te ergue o meu desalento…E, após tanto sofrer, sentir-me-ei consolado,
– se ao cair no caminho… e ao fim do meu Calvário
for morrer sobre a cruz dos braços teus pregado!
Dedicatória
Se acaso uma alma se fotografasse
de sorte que, nos mesmos negativos,
A mesma luz pusesse em traços vivos
O nosso coração e a nossa face;E os nossos ideais, e os mais cativos
De nossos sonhos… Se a emoção que nasce
Em nós, também nas chapas se gravasse
Mesmo em ligeiros traços fugitivos;Amigo! tu terias com certeza
A mais completa e insólita surpresa
Notando – deste grupo bem no meio –Que o mais belo, o mais forte, o mais ardente
Destes sujeitos é precisamente
O mais triste, o mais pálido, o mais feio.
Saber ler é acender uma luz no espírito.
Soneto
(Lendo o “Poema de Maio”)
Na rua em funeral ei-la que passa,
A romaria eterna dos aflitos,
A procissão dos tristes, dos proscritos,
Dos romeiros saudosos da desgraça.E na choça a lamúria que traspassa
O coração, além, ânsias e gritos
De mães que arquejam sobre os probrezitos
Filhos que a Fome derrubou na praça.Entre todos, porém, lânguida e bela,
Da juventude a virginal capela
A lhe cingir de luz a fronte baça,Vai Corina mendiga e esfarrapada,
A alma saudosa pelo amor vibrada,
– A Stella Matutina da Desgraça!
Comunhão
Reprimirei meu pranto!… Considera
Quantos, minh’alma, antes de nós vagaram,
Quantos as mãos incertas levantaram
Sob este mesmo céu de luz austera!…— Luz morta! amarga a própria primavera! —
Mas seus pacientes corações lutaram,
Crentes só por instinto, e se apoiaram
Na obscura e heróica fé, que os retempera…E sou eu mais do que eles? igual fado
Me prende á lei de ignotas multidões. —
Seguirei meu caminho confiado,Entre esses vultos mudos, mas amigos,
Na humilde fé de obscuras gerações,
Na comunhão dos nossos pais antigos.
Nos olhos do jovem, arde a chama. Nos olhos do velho brilha a luz.
Jura
Pelas rugas da fronte que medita…
Pelo olhar que interroga — e não vê nada…
Pela miséria e pela mão gelada
Que apaga a estrela que nossa alma fita…Pelo estertor da chama que crepita
No ultimo arranco d’uma luz minguada…
Pelo grito feroz da abandonada
Que um momento de amante fez maldita…Por quanto há de fatal, que quanto há misto
De sombra e de pavor sob uma lousa…
Oh pomba meiga, pomba de esperança!Eu t’o juro, menina, tenho visto
Cousas terriveis — mas jamais vi cousa
Mais feroz do que um riso de criança!
Primeira Comunhão
Grinaldas e véus brancos, véus de neve,
Véus e grinaldas purificadores,
Vão as Flores carnais, as alvas Flores
Do Sentimento delicado e leve.Um luar de pudor, sereno e breve,
De ignotos e de prônubos pudores,
Erra nos pulcros virginais brancores
Por onde o Amor parábolas descreve…Luzes claras e augustas, luzes claras
Douram dos templos as sagradas aras,
Na comunhão das níveas hóstias frias…Quando seios pubentes estremecem,
Silfos de sonhos de volúpia crescem,
Ondulantes, em formas alvadias…
Nenhum Amor é Menos Ridículo que Outro
Temos, pois, que ao amor corresponde o amável, e que este é inexplicável. Concebe-se a coisa, mas dela não se pode dar razão; assim também é que de maneira incompreensível o amor se apodera da sua presa. Se, de tempos a tempos, os homens caíssem por terra e morressem subitamente, ou entrassem em convulsões violentas mas inexplicáveis, quem é que não sofreria a angústia? No entanto, é assim que o amor intervém na vida, com a diferença de que ninguém receia por isso, visto que os amantes encaram tal acontecimento como se esperassem a suprema felicidade. Ninguém receia por isso, toda a gente ri afinal, porque o trágico e o cómico estão em perpétua correspondência. Conversais hoje com um homem; parece-vos que ele se encontra em estado normal; mas amanhã ouvi-lo-eis falar uma linguagem metafórica, vê-lo-eis exprimir-se com gestos muito singulares: é sabido, está apaixonado. Se o amor tivesse por expressão equivalente «amar qualquer pessoa, a primeira que se encontra», compreender-se-ia a impossibilidade de apresentar melhor definição; mas já que a fórmula é muito diferente, «amar uma só pessoa, a única no mundo», parece que tal acto de diferenciação deve provir de motivos profundos.
Sim, deve necessariamente implicar uma dialética de razões,
Penso: talvez haja uma luz dentro dos homens, talvez uma claridade, talvez os homens não sejam feitos de escuridão, talvez as certezas sejam uma aragem dentro dos homens e talvez os homens sejam as certezas que possuem.
Um guerreiro da luz não olha a injustiça com indiferença.
Conhecimento: uma pequena luz que ilumina a escuridão.
Ilusões Mortas
A Virgílio Várzea
Os meus amores vão-se mar em fora,
E vão-se mar em fora os meus amores,
A murchar, a murchar, como essas flores
Sem mais orvalho e a doce luz da aurora.E os meus amores não virão agora,
Não baterão as asas multicores,
Como as aves mansas — dentre os esplendores
Do meu prazer, do meu prazer de outrora.Tudo emigrou, rasgando a esfera branca
Das ilusões, — tudo em revoada franca
Partiu — deixando um bem-estar saudosoNo fundo ideal de toda a minha vida,
Qual numa taça a gota indefinida
De um bom licor antigo e saboroso.