Num voo de pombas brancas, um corvo negro junta-lhe um acréscimo de beleza que a candura de um cisne não traria.
Passagens sobre Negros
338 resultadosPassei Ontem A Noite Junto Dela.
Passei ontem a noite junto dela.
Do camarote a divisão se erguia
Apenas entre nós – e eu vivia
No doce alento dessa virgem bela…Tanto amor, tanto fogo se revela
Naqueles olhos negros! Só a via!
Música mais do céu, mais harmonia
Aspirando nessa alma de donzela!Como era doce aquele seio arfando!
Nos lábios que sorriso feiticeiro!
Daquelas horas lembro-me chorando!Mas o que é triste e dói ao mundo inteiro
É sentir todo o seio palpitando…
Cheio de amores! E dormir solteiro!
Neruda e García Lorca em Homenagem a Rubén Dario
Eis o texto do discurso:
Neruda: Senhoras…
Lorca: …e senhores. Existe na lide dos touros uma sorte chamada «toreio dei alimón», em que dois toureiros furtam o corpo ao touro protegidos pela mesma capa.
Neruda: Federico e eu, ligados por um fio eléctrico, vamos emparelhar e responder a esta recepção tão significativa.
Lorca: É costume nestas reuniões que os poetas mostrem a sua palavra viva, prata ou madeira, e saúdem com a sua voz própria os companheiros e amigos.
Neruda: Mas nós vamos colocar entre vós um morto, um comensal viúvo, escuro nas trevas de uma morte maior que as outras mortes, viúvo da vida, da qual foi na sua hora um marido deslumbrante. Vamos esconder-nos sob a sua sombra ardente, vamos repetir-lhe o nome até que a sua grande força salte do esquecimento.
Lorca: Nós, depois de enviarmos o nosso abraço com ternura de pinguim ao delicado poeta Amado Villar, vamos lançar um grande nome sobre a toalha, na certeza de que vão estalar as taças, saltar os garfos, buscando o olhar que todos anseiam, e que um golpe de mar há-de manchar as toalhas. Nós vamos evocar o poeta da América e da Espanha: Rubén…
Rompeu-Se O Denso Véu Do Atroz Marasmo
Rompeu-se o denso véu do atroz marasmo
E como por fatal, negro hebetismo
De antro sepulcral, de fundo abismo
O povo ressurgiu com entusiasmo!O Zoilo mazorral se queda pasmo
Supõe quimera ser, ser cataclismo
Roga, já por dobrez, por ceticismo
De néscio, vil truão solta o sarcasmo.Perdão, Filho da Luz, minh’alma exora,
Porém, a pátria diz, somente agora
Os grilhões biparti de atroz moleza!E ele, o nosso herói já redivivo
De pé, sem se curvar, sereno, altivo
Co’as raias do porvir mede a grandeza!
Namoro II
Ai se eu disser que as tremuras
Me dão nas pernas, e as loucuras
Fazem esquecer-me dos prantos
Pensar em jurasAi se eu disser que foi feitiço
Que fez na saia dar ventania
Mostrar-me coisas tão belas
Ter fantasia
E sonhar com aquele encontro
Sonhar que não diz que nãoTem um jeito de senhora
E um olhar desmascarado
De céu negro ou céu estrelado, ou Sol
Daquele que a gente sabe.
O seu balanço gingado
Tem os mistérios do mar
E a certeza do caminho certo
que tem a estrela polar.Não sei se faça convite
E se quebre a tradição
Ou se lhe mande uma carta
Como ouvi numa canção
Só sei que o calor aperta
E ainda não estamos no verão.Quanto mais o tempo passa
Mais me afasto da razão
E ela insiste no passeio à tarde
Em tom de provocação
Até que num dia feriado
P’ra curtir a solidão
Fui consumir as tristezas
P’ró baile do Sr. JoãoNão sei se foi por magia
Ou seria maldição
Dei por mim rodopiando
Bem no meio do salão
Acabei no tal convite
Em jeito de confissão
E a resposta foi tão doce
Que a beijei com emoção
Só que a malta não gritou
Como ouvi numa canção
Dormindo
Pálida, bela, escultural, clorótica
Sobre o divã suavíssimo deitada,
Ela lembrava — a pálpebra cerrada —
Uma ilusão esplendida de ótica.A peregrina carnação das formas,
— o sensual e límpido contorno,
Tinham esse quê de avérnico e de morno,
Davam a Zola as mais corretas normas!…Ela dormia como a Vênus casta
E a negra coma aveludada e basta
Lhe resvalava sobre o doce flanco…Enquanto o luar — pela janela aberta —
— como uma vaga exclamação — incerta
Entrava a flux — cascateado — branco!!…
Na Roça
Cercada de mestiças, no terreiro,
Cisma a Senhora Moça; vem descendo
A noite, e pouco e pouco escurecendo
O vale umbroso e o monte sobranceiro.Brilham insetos no capim rasteiro,
Vêm das matas os negros recolhendo;
Na longa estrada ecoa esmorecendo
O monótono canto de um tropeiro.Atrás das grandes, pardas borboletas,
Crianças nuas lá se vão inquietas
Na varanda correndo ladrilhada.Desponta a lua; o sabiá gorjeia;
Enquanto às portas do curral ondeia
A mugidora fila da boiada…
O Homem Amesquinhado
Apesar do quadro negro de uma cúpula política e intelectual desvairada e grossa e de um povo abandonado a seu próprio destino, ainda havia ali, no país, naquele espantoso verão de 1955, uma considerável energia vital, uma exaltada alegria de viver, acentuada, em alguns lugares e num ou noutro indivíduo, ainda mais possuído do gozo pleno de um extraodinário senso lúdico tropical. Estávamos, poderíamos nos considerar como estando, num dos últimos redutos do ser humano. Depois disso viria o fim, não, como todos pensavam, com um estrondo, mas com um soluço. A densa nuvem desceria, não, como todos pensavam, feita de moléculas radioativas, mas da grosseria de todos os dias, acumulada, aumentada, transmitida, potenciada. O homem se amesquinharia, vítima da mesquinharia do seu semelhante, cada dia menos atento a um gesto de gentileza, a um ato de beleza, a um olhar de amor desinteressado, a uma palavra dita com uma precisa propriedade. E tudo começou a ficar densamente escuro, porque tudo era terrivelmente patrocinado por enlatadores de banha, fabricantes de chouriço e vendedores de desodorante, de modo que toda a pretensa graça da vida se dirigia apenas à barriga dos gordos, à tripa dos porcos, ou, no máximo de finura e elegância,
A Exploração do Outro como Fatalismo Político
Por muito que se inove no campo político, não há como escapar a um certo fatalismo no que se refere à condição de classe e consequente exploração (*). A sociedade permite uma certa mobilidade, sim, mas há limites nessa desmarcação. Sim, foi relativamente fácil a Calígula promover o seu cavalo Incitatus a senador. O que a História não regista é se o cavalo passou a relinchar partidariamente, ou se, pelo contrário, os seus novos pares começaram a trotar no seu compasso.
(*) Exploração, meus caros, começa sempre do lado de dentro dos seus botões. E não há como escapar: sempre se é comunista de alguém, judeu de alguém, capitalista de alguém, negro de alguém, presidente dos Estados Unidos em cima de alguém. E eu mesmo — confesso — escrevi este livro explorando o humorista que há em mim próprio.
Desastre
Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,
Soltando fundos ais e trêmulos queixumes;
Caíra dum andaime e dera com o peito,
Pesada e secamente, em cima duns tapumes.A brisa que balouça as árvores das praças,
Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,
E dentro eu divisei o ungido das desgraças,
Trazendo em sangue negro os membros ensopados.Um preto, que sustinha o peso dum varal,
Chorava ao murmurar-lhe: “Homem não desfaleça!”
E um lenço esfarrapado em volta da cabeça,
Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.***
Findara honrosamente. As lutas, afinal,
Deixavam repousar essa criança escrava,
E a gente da província, atônita, exclamava:
“Que providências! Deus! Lá vai para o hospital!”Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;
Mornas essências vêm duma perfumaria,
E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,
Numa travessa escura em que não entra o dia!Um fidalgote brada e duas prostitutas:
“Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!”
Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas
E conta-se o que foi na loja dum barbeiro.
Tango do Viúvo
Tive dificuldades na minha vida privada. A doce Josie Bliss foi-se convencendo e apaixonando até adoecer de ciúmes. Se não fosse isso, talvez tivesse continuado indefinidamente ao lado dela. Enterneciam-me os seus pés nus, as brancas flores que lhe brilhavam na cabeleira negra. Mas o seu temperamento levava-a até paroxismos selvagens. Tinha ciúmes e aversão às cartas que me chegavam de longe; escondia-me os telegramas sem os abrir, olhava com rancor o ar que eu respirava.
Por vezes acordava-me uma luz, um fantasma que se movia por detrás da rede do mosquiteiro. Era ela, vestida de branco, brandindo o seu longo e afiado punhal indígena. Era ela, rondando-me a cama horas inteiras sem se decidir a matar-me. «Quando morreres, acabarão os meus receios», dizia-me. No dia seguinte realizava misteriosos ritos para garantir a minha fidelidade.
Acabaria por me matar. Por sorte, recebi uma mensagem oficial participando-me que fora transferido para Ceilão. Preparei a minha viagem em segredo e um dia, abandonando a minha roupa e os meus livros, saí de casa como de costume e entrei no barco que me levaria para longe.
Deixava Josie Bliss, espécie de pantera birmanesa, na maior dor. Mal o barco começou a mover-se sobre as ondas do golfo de Bengala,
Intimidade
Meu coração tem quantos versos quer;
É só pulsá-los com medida e rumo.
É só erguer-se a pino a um céu qualquer,
E desse alado azul cair a prumo.Logo se desvanece o negro encanto
Que os tinha ocultos no condão da bruma;
Logo o seu corpo esguio rasga o manto,
E mostra a humanidade que ressuma.Mas quanto ele sangra para os orvalhar
De ternura, de sonho e de ilusão,
São outros versos. . . para segredar
A quem é seu irmão.
Vinho Negro
O vinho negro do imortal pecado
Envenenou nossas humanas veias
Como fascinações de atras sereias
E um inferno sinistro e perfumado.O sangue canta, o sol maravilhado
Do nosso corpo, em ondas fartas, cheias.
como que quer rasgar essas cadeias
Em que a carne o retém acorrentado.E o sangue chama o vinho negro e quente
Do pecado letal, impenitente,
O vinho negro do pecado inquieto.E tudo nesse vinho mais se apura,
Ganha outra graça, forma e formosura,
Grave beleza d’esplendor secreto.
No Seio Da Terra
Do pélago dos pélagos sombrios,
Cá do seio da Terra, olhando as vidas,
Escuto o murmurar de almas perdidas,
Como o secreto murmurar dos rios.Trazem-me os ventos negros calafrios
E os loluços das almas doloridas
Que têm sede das terras prometidas
E morrem como abutres erradios.As ânsias sobem, as tremendas ânsias!
Velhices, mocidades e as infâncias
Humansa entre a Dor se despedaçam…Mas, sobre tantos convulsivos gritos,
Passam horas, espaços, infinitos,
Esferas, gerações, sonhando, passam!
A Tempestade
Cobre-se ó céu de grossas negras nuvens,
Os ventos mais e mais cada hora crescem,
Já se escurece o céu, já. com soberba
Inchadas grossas ondas se levantam.
A nau começa já passar trabalho,
Já começa gemer, e em tal afronta
O apito soa, brada o mestre, acodem
Com presteza varões no mar expertos.
Põe-se o fero Vulturno junto ao cabo,
Levanta lá no céu furiosas ondas;
Austro bramando corre ali com fúria,
Dando um balanço à nau que quase a rende,
Vem com grande furor Bóreas raivoso,
Comete por davante, o passo impide,
Encontra as grandes velas, e, por força,
Ao mastro as pega e a nau atrás empuxa:
Rompe-se por mil partes o céu, e arde
Em ligeiro, apressado, vivo fogo.
Um rugido espantoso vai correndo
Desde o Antárctico Pólo ao seu oposto.
Arremessam-se lanças pelos ares
De congelada pedra em água envolta;
Com espantoso ímpeto, e rasgadas
As densas negras nuvens raios cospem:
De um golpe as velas vêm todas abaixo.
Paixão
Supõe que de uma praia, rocha ou monte,
Com essa vista embaciada e turva
Que dá aos olhos entranhável dor,
Tinhas podido ver transpor a curva
Pouco a pouco do líquido horizonte
A barca saudosa que levasse
Aquele a quem primeiro uniste a face
E o teu primeiro amor!Depois, que toda mágoa e saudade,
Da mesma rocha ou alcantil deserto,
Olhando avidamente para o mar…
Vias na solitária imensidade
Vagas ficções de um pensamento incerto
Surgir das ondas, desfazer-se em espuma,
Não alvejando nunca vela alguma…
E sempre a suspirar!Até que à luz de uma intuição sublime
De alma arrancavas o gemido extremo
De saudade, desespero e dor!…
Pois é assim que eu sofro, assim que eu gemo,
Que nuvem negra o coração me oprime,
Nuvem de mágoa, nuvem de ciúme,
Em te não vendo à hora do costume…
Meu anjo e meu amor!
A Um Epilético
Perguntarás quem sou?! – ao suor que te unta,
À dor que os queixos te arrebenta, aos trismos
Da epilepsia horrenda, e nos abismos
Ninguém responderá tua pergunta!Reclamada por negros magnetismos
Sua cabeça há de cair, defunta
Na aterradora operação conjunta
Da tarefa animal dos organismos!Mas após o antropófago alambique
Em que é mister todo o teu corpo fique
Reduzido a excreções de sânie e lodo,Como a luz que arde, virgem, num monturo,
Tu hás de entrar completamente puro
Para a circulação do Grande Todo!
O Que Amamos Está Sempre Longe de Nós
O que amamos está sempre longe de nós:
e longe mesmo do que amamos – que não sabe
de onde vem, aonde vai nosso impulso de amor.O que amamos está como a flor na semente,
entendido com medo e inquietude, talvez
só para em nossa morte estar durando sempre.Como as ervas do chão, como as ondas do mar,
os acasos se vão cumprindo e vão cessando.
Mas, sem acaso, o amor límpido e exacto jaz.Não necessita nada o que em si tudo ordena:
cuja tristeza unicamente pode ser
o equívoco do tempo, os jogos da cegueiracom setas negras na escuridão.
Campesinas II
De cabelos desmanchados,
Tu, teus olhos luminosos
Recordam-me uns saborosos
E raros frutos de prados.Assim negros e quebrados,
Profundos, grandes, formosos,
Contêm fluidos vaporosos
São como campos mondados.Quando soltas os cabelos
Repletos de pesadelos
E de perfumes de ervagens;Teus olhos, flor das violetas,
Lembram certas uvas pretas
Metidas entre folhagens.
A honra pertence aos que não renunciam à verdade nem quando as coisas parecem negras e terríveis, aos que tentam repetidamente, que nunca se deixam desencorajar pelos insultos, pela humilhação e até pela derrota.