Citação de

Neruda e García Lorca em Homenagem a Rubén Dario

Eis o texto do discurso:

Neruda: Senhoras…

Lorca: …e senhores. Existe na lide dos touros uma sorte chamada «toreio dei alimón», em que dois toureiros furtam o corpo ao touro protegidos pela mesma capa.

Neruda: Federico e eu, ligados por um fio eléctrico, vamos emparelhar e responder a esta recepção tão significativa.

Lorca: É costume nestas reuniões que os poetas mostrem a sua palavra viva, prata ou madeira, e saúdem com a sua voz própria os companheiros e amigos.

Neruda: Mas nós vamos colocar entre vós um morto, um comensal viúvo, escuro nas trevas de uma morte maior que as outras mortes, viúvo da vida, da qual foi na sua hora um marido deslumbrante. Vamos esconder-nos sob a sua sombra ardente, vamos repetir-lhe o nome até que a sua grande força salte do esquecimento.

Lorca: Nós, depois de enviarmos o nosso abraço com ternura de pinguim ao delicado poeta Amado Villar, vamos lançar um grande nome sobre a toalha, na certeza de que vão estalar as taças, saltar os garfos, buscando o olhar que todos anseiam, e que um golpe de mar há-de manchar as toalhas. Nós vamos evocar o poeta da América e da Espanha: Rubén…

Neruda: Dario. Porque, senhoras…

Lorca: e senhores…

Neruda: Onde está, em Buenos Aires, a praça de Rubén Dario?

Lorca: Onde está a estátua de Rubén Dario?

Neruda: Ele amava os parques. Onde está o parque de Rubén Dario?

Lorca: Onde está a loja de rosas de Rubén Dario?

Neruda: Onde estão a macieira e as maças de Rubén Dario?

Lorca: Onde está a mão cortada de Rubén Dario?

Neruda: Onde?

Lorca: Rubén Dario dorme na «Nicarágua natal» sob o seu espantoso leão de estuque, como esses leões que os ricos colocam à porta das suas casas.

Neruda: Um leão de drogaria, para o fundador de leões, um leão sem estrelas a quem dedicava estrelas.

Lorca: Deu o rumor da selva com um só adjectivo e, como Frei Luís de Granada, chefe de idiomas, fez sinais estelares com o limão e a pata de cervo e os moluscos cheios de terror e infinito. Lançou-nos ao mar com fragatas e sombras nas meninas dos nossos olhos e construiu um enorme passeio de gin sobre a tarde mais parda que o céu já teve; e saudou, tratando-o por tu, o vento sombrio de sudoeste, todo ele peito, como um poeta romântico; e pôs a mão sobre o capitel coríntio com a dúvida irónica e triste de todas as épocas.

Neruda: Merece ser recordado o seu nome vermelho nas direcções essenciais, com as suas terríveis dores de coração, a sua incerteza incandescente, a sua descida às espirais do Inferno, a sua subida aos castelos da fama, os seus atributos de poeta grande, desde então e para sempre imprescindível.

Lorca: Como poeta espanhol, ensinou em Espanha os velhos mestres e as crianças, com um sentido de universalidade e de generosidade que falta aos poetas actuais. Ensinou Valle Inclán e Juan Ramón Jiménez e os irmãos Machado, e a sua voz foi água e salitre, no sulco do venerável idioma. Desde Rodrigo Caro até aos Argensolas ou Juan Arguijo, o espanhol não havia tido festas de palavras, choques de consoantes, luzes e forma como em Rubén Dario. Desde a paisagem de Velázquez e a ffogueira de Goya e desde a melancolia de Quevedo até ao culto cor de maçã das camponesas maiorquinas, Dario passeou pelo mundo a terra de Espanha como a sua própria terá.

Neruda: Trouxe-o ao Chile uma maré, o mar quente do Norte, deixando-o ali o mar, abandonado em costa dura e recortada; e o oceano batia-lhe com espumas e sinos, e o vento negro de Valparaíso enchia-o de sal sonoro. Façamos esta noite a sua estátua com o ar atravessado pelo fumo e a voz, e pelas circunstâncias, e pela vida, como essa sua poética magnífica, aravessada por sonhos e sons.

Lorca: Mas sobre esta estátua de ar eu quero colocar o seu sangue como um ramo de coral agitado pela maré, os seus nervos idênticos à fotografia de um grupo de raios, a sua cabeça de minotauro, onde a neve gongórica é pintada por um voo de colibris, os seus olhos vagos e ausentes de milionário de lágrimas, e também os seus defeitos. As prateleiras já devastadas pelo carunho, onde soam vazios de flauta, as garrafas de conhaque da sua dramática embriaguez e o seu mau gosto encantador, e os palavreados descarados que enchem de humanidade a multidão dos seus versos. Fora de normas, formas e esporas, fica de pé a fecunda substância da sua grande poesia.

Neruda: Federico Garcia Lorca, espanhol, e eu, chileno, declinamos a responsabilidade por esta noite de camaradagem, passando-a para essa grande sombra que cantou mais altamente que nós, saudando com voz inusitada a terra argentina que albergamos.

Lorca: Pablo Neruda, chileno, e eu, espanhol, coincidimos no idioma e no grande poeta nicaraguense, argentino, chileno e espanhol, Rubén Dario.

Neruda e Lorca: Em sua homenagem e glória erguemos o nosso copo.