Quando se amarra bem o próprio coração e se faz dele um prisioneiro, pode-se permitir ao próprio espírito muitas liberdades.
Passagens sobre Próprio
3083 resultadosEm Cada Livro Que se Escreve, uma Vida Desconhecida
A parte desconhecida da minha vida é a minha vida escrita. Morrerei sem conhecer essa parte desconhecida. Como foi escrito isto, porquê, como o escrevi, não sei, não sei como isto começou. Não se pode explicar. Donde vêm certos livros? A página está vazia e, de repente, já há trezentas páginas. Donde vem isto? É preciso deixar andar, quando se escreve, não devemos controlar-nos, é preciso deixar andar, porque não sabemos tudo de nós próprios. Não sabemos o que somos capazes de escrever.
Conheci grandes escritores que nunca conseguiram falar disso – conheci Maurice Blanchot e Georges Bataille intimamente, conheci Genet, creio que menos. Eles nunca sabiam, nunca falavam disso. Penso que é errado, aliás. Há trinta anos, era uma espécie de pudor aprendido, em parte, na escola sartriana, não se podia falar daquilo que se escrevia, não era decente – e penso que em Les Parleuses é a primeira vez que alguém fala disso, pelo menos uma das primeiras vezes. É bom falar disso e, ao mesmo tempo, é muito perigoso dar a ler textos antes de estarem terminados.
(…) Após o final de cada livro é o fim do mundo inteiro, é sempre assim, de cada vez.
No início, viajámos porque líamos e escutávamos, deambulando em barcos de papel, em asas feitas de antigas vozes. Hoje viajamos para sermos escritos, para sermos palavras de um texto maior que é a nossa própria vida.
Errar é próprio do homem, mas perseverar no erro é coisa de tolos.
A Maternidade não me Aborrece
A maternidade não me aborrece e devo afirmar até que, dada a influência determinante de minha mãe, em mim, sou uma pessoa marcada pelo signo materno. Tenho um apreço muito especial pela maternidade. Só que à mulher não compete apenas uma maternidade de tipo fisiológico. Cabe-lhe ultrapassar esse aspecto na medida em que pode conquistar uma sabedoria de tipo maternal para intervir no mundo, e orientá-lo. Um mundo onde só o homem tem a palavra, palavra essa que é origem de tantos desmandos, guerras, conflitos e soluções precárias de carácter económico e social.
Estruturalmente, a mulher é avessa, alérgica à ideia de guerra e de conflito. A sua própria experiência maternal a predispõe contra a guerra. Dá vida mas não gosta de contribuir para a sua destruição. É por uma actuação pacífica.
Carlos Gomes
Essa que plange, que soluça e pensa,
Amorosa e febril, tímida e casta,
Lira que raiva, lira que devasta,
E que dos próprios sons vive suspensa.Guarda nas costas uma escala imensa,
Que, quando rompe, espaço fora, arrasta
Ora do mar as queixas ora a vasta
Sussurração de uma floresta densa.Ei-la muda, mas tal intensidade
Teve a música enorme do seu choro
O dilúvio orquestral dos seus lamentos.Que muda assim, rotas as cordas há de
Para sempre vibrar o eco sonoro
Que sua alma lançou aos quatro ventos.
A Busca da Felicidade ou do Sofrimento
O homem recusa o mundo tal como ele é, sem aceitar o eximir-se a esse mesmo mundo. Efectivamente os homens gostam do mundo e, na sua imensa maioria, não querem abandoná-lo. Longe de quererem esquecê-lo, sofrem, sempre, pelo contrário, por não poderem possuí-lo suficientemente, estranhos cidadãos do mundo que são, exilados na sua própria pátria. Excepto nos momentos fulgurantes da plenitude, toda a realidade é para eles imperfeita. Os seus actos escapam-lhes noutros actos; voltam a julgá-los assumindo feições inesperadas; fogem, como a água de Tântalo, para um estuário ainda desconhecido. Conhecer o estuário, dominar o curso do rio, possuir enfim a vida como destino, eis a sua verdadeira nostalgia, no ponto mais fechado da sua pátria. Mas essa visão que, ao menos no conhecimento, finalmente os reconciliaria consigo próprios, não pode surgir; se tal acontecer, será nesse momento fugitivo que é a morte; tudo nela termina. Para se ser uma vez no mundo, é preciso deixar de ser para sempre.
Neste ponto nasce essa desgraçada inveja que tantos homens sentem da vida dos outros. Apercebendo-se exteriormente dessas existências, emprestam-lhes uma coerência e uma unidade que elas não podem ter, na verdade, mas que ao observador parecem evidentes. Este não vê mais que a linha mais elevada dessas vidas,
O Solitário
As observações e as vivências do solitário que só fala consigo próprio são simultaneamente mais indistintas e intensas do que as do homem social e os seus pensamentos são mais graves, mais fantasiosos e nunca sem uma coloração de melancolia. Imagens e impressões que outros poriam naturalmente de lado após um olhar, um sorriso, um comentário, ocupam-no mais do que é devido, tornam-se profundas no silêncio, ganham significado, transformam-se em acontecimento, aventura, emoção. A solidão cria o original, o belo ousado e estranho cria a poesia. Mas cria também o distorcido, o desproporcionado, o absurdo e o proibido.
Quando se quer servir de mediador entre dois pensadores decididos mostra-se a sua própria mediocridade: é que se não possui vista suficientemente boa para distinguir o que é único; fazer igual, é a consequência da miopia.
A Tranquilidade da Alma não se Alcança em Viagens
Pensas que só a ti isso sucedeu; admiras-te, como se fosse um caso raro, de após uma tão grande viagem e uma tão grande variedade de locais visitados não teres conseguido dissipar essa tristeza que te pesa na alma!? Deves é mudar de alma, não de clima. Ainda que atravesses a vastidão do mar, ainda que, como diz o nosso Vergílio, as costas, as cidades desapareçam no horizonte, os teus vícios seguir-te-ão onde quer que tu vás. Do mesmo se queixou um dia alguém a Sócrates: «Porquê admirar-te da inutilidade das tuas viagens,» – foi a resposta, – «se para todo o lado levas a mesma disposição? A causa que te aflige é exactamente a mesma que te leva a partir!» De facto, em que pode ajudar a mudança de local, ou o conhecimento de novas paisagens e cidades? Toda essa agitação carece de sentido. Andares de um lado para o outro não te ajuda em nada, porque andas sempre na tua própria companhia. Tens de alijar o peso que tens na alma; antes disso não há terra alguma que te possa dar prazer!
Temos de viver com essa convicção: não nascemos destinados a nenhum lugar particular, a nossa pátria é o mundo inteiro!
Conhecer os outros é sabedoria. Conhecer-se a si próprio é sabedoria superior.
A Importância de Dostoievski na Literatura
Os dois grandes monumentos do romance que o século passado (XIX) nos legou, ou seja aqueles em que poderemos reconhecer-nos, foram os erguidos por Tolstoi e por Dostoievski. Mas se a lição do primeiro foi facilmente assimilada, a do segundo levou tempo – e tanto, que só hoje acabámos de entendê-la bem. Significa isto que Tolstoi, com incidências menores de moralização, continua um Balzac, é bem do século XIX. E foi por se pretender à força ligar a esse século também um Dostoievski que ele só tarde se nos revelou, para dominar ainda hoje, diga-se o que se disser, todo o romance europeu. Para usar uma expressão que já usei, não com inteira originalidade, e a que a crítica me ligou, direi que Tolstoi continua o romance-espectáculo e que Dostoievski inaugura o romance-problema.
Dir-se-ia, e com razão, que todo o romance é problema e espectáculo, já que o espectáculo resiste num romance de Kafka ou Dostoievski, e o problema implicita-se numa qualquer narrativa, nem que seja o Amadis de Gaula. Mas é tão visível a deslocação do acento na obra de Dostoievski, que ela foi defendida, para existir, pelo que lhe é inessencial (como por um Brunetière e recentemente um Ernst Fischer,
Sob nenhuma hipótese maquine sobre o seu próprio erro, nem se torture recriminando-se. Dar voltas no lodo não é a melhor maneira de se limpar.
Os Amigos Infelizes
Andamos nus, apenas revestidos
Da música inocente dos sentidos.Como nuvens ou pássaros passamos
Entre o arvoredo, sem tocar nos ramos.No entanto, em nós, o canto é quase mudo.
Nada pedimos. Recusamos tudo.Nunca para vingar as próprias dores
Tiramos sangue ao mundo ou vida às flores.E a noite chega! Ao longe, morre o dia…
A Pátria é o Céu. E o Céu, a Poesia…E há mãos que vêm poisar em nossos ombros
E somos o silêncio dos escombros.Ó meus irmãos! em todos os países,
Rezai pelos amigos infelizes!
Nunca Estamos em Nós, Estamos Sempre Além
Os que acusam os homens de ir sempre perseguindo boquiabertos as coisas futuras, e ensinam a nos apossarmos dos bens actuais e a sossegarmos neles por não termos nenhum domínio sobre o que está para vir, até bem menos do que o temos sobre o que passou, referem-se ao mais comum dos erros humanos – se é que ousam chamar de erro algo que a própria natureza nos encaminha para servirmos à continuação da sua obra, imprimindo-nos, como muitas outras, essa fantasia enganadora, mais ciosa da nossa acção que do nosso saber. Nunca estamos em nós, estamos sempre além. O temor, o desejo, a esperança lançam-nos para o futuro e roubam-nos a percepção e o exame do que é, para entreter-nos com o que será, até mesmo quando não existirmos mais. Infeliz é o espírito que se preocupa com o futuro (Séneca).
Este grande preceito é frequentemente citado em Platão: Faz o teu feito e conhece-te a ti mesmo. Cada um desses dois membros engloba em geral todo o nosso dever, e igualmente engloba o seu companheiro. Quem tivesse de fazer o seu feito veria que a sua primeira lição é conhecer o que é e o que lhe é próprio.
Sacrifício não significa nem amputação nem penitência. (…) Ele é uma oferta de nós próprios ao Ser a que recorremos.
Os espíritos tranqüilos não se confundem, continuam em seu ritmo próprio na ventura ou na desgraça, como os relógios durante as tempestades.
A Doença da Disciplina
Das feições de alma que caracterizam o povo português, a mais irritante é, sem dúvida, o seu excesso de disciplina. Somos o povo disciplinado por excelência. Levamos a disciplina social àquele ponto de excesso em que cousa nenhuma, por boa que seja — e eu não creio que a disciplina seja boa — por força que há-de ser prejudicial.
Tão regrada, regular e organizada é a vida social portuguesa que mais parece que somos um exército de que uma nação de gente com existências individuais. Nunca o português tem uma acção sua, quebrando com o meio, virando as costas aos vizinhos. Age sempre em grupo, sente sempre em grupo, pensa sempre em grupo. Está sempre à espera dos outros para tudo. E quando, por um milagre de desnacionalização temporária, pratica a traição à Pátria de ter um gesto, um pensamento, ou um sentimento independente, a sua audácia nunca é completa, porque não tira os olhos dos outros, nem a sua atenção da sua crítica.
Parecemo-nos muito com os alemães. Como eles, agimos sempre em grupo, e cada um do grupo porque os outros agem.
Por isso aqui, como na Alemanha, nunca é possível determinar responsabilidades; elas são sempre da sexta pessoa num caso onde só agiram cinco.
O que a si próprio louva, murmura do maior amigo que tem.
O Amor é o Contraegoísmo
Cada vez mais pessoas estão preocupadas consigo mesmas. Cuidam de si de uma forma tão dedicada que se poderia supor que estão a construir algo de verdadeiramente belo e forte; mas não… os resultados são normalmente fracos e frágeis. Gente manipulável que se deixa abater por uma simples brisa… cultivam o eu como a um deus, mas são facilmente derrubados pela mínima contrariedade.
Tendo a originalidade por moda não será paradoxal que a sociedade esteja a tornar-se cada vez mais uniforme? Como a multidão tende sempre a nivelar-se por baixo, estamos a tornar-nos cada vez piores.
Hoje parece não haver tempo nem espaço para um cuidado mais fundo com a nossa essência – são poucos os que hoje têm amigos verdadeiros com quem aprendem, a quem se dão e de quem recebem valores essenciais.
Por medo da solidão quer-se conhecer gente, cada vez mais gente. Talvez o facto de se buscar uma quantidade de amizades mais do que a qualidade das mesmas explique por que, afinal, há cada vez mais solidão… sempre que prefiro partir em busca do novo, escolho abandonar aquele(s) com quem estava.O sucesso das redes virtuais é hoje um sintoma,