À Memória de Minha Mãe
Mãe! Morreste!
Agora é tão tarde para te dizer as palavras necessárias.
O relógio bateu duas e meia. É noite escura
E a dor galopa surdamente no meu peito.
Teu corpo jaz ainda morno, já sem interesse para ti.
Por tua causa, amanhã, movimentar-se-ão pessoas
Diversas
Que não te conheceram.
Serão preenchidos papéis: requerimentos, boletins;
Pás ou picaretas (nem eu sei) ferirão a terra
E sobre ela erguerão, depois, um número qualquer
Que será de futuro o teu bilhete de identidade.
Agora, porém, tudo ainda é quieto.
Só um galo canta, feliz, na sua inconsciência de ser vivo.
As lágrimas rompem-me incontroláveis e inúteis.
É tarde!
Já só existem saudades e fotografias.
As palavras que eu amaria ter-te dito
Sobem-me ao silêncio dos lábios cerrados.
Lá fora a chuva molha a madrugada
Enquanto os familiares se olham
Com o rosto congestionado de lágrimas
E sono interrompido,
Adorando-te em silêncio,
Mais que nunca,
— Esmagados pelo prestígio da morte.
Passagens sobre Sono
307 resultadosSó de Restos se Consagra o Tempo
Só de restos se consagra o tempo, força
cerrada na inutilidade destas
cores campestres, quando o sol em Novembro
escurece os sobreiros. Só de restos me
espera a cerimónia de viver,
trânsito e transigência do silêncio,
ocultado no meu corpo. Só de restos
o trespassa o tempo, máscara e manto. Morro
muito antes da morte, sem saber se os anjos
foram gaivotas hirtas no piedoso
musgos dos rios ou se hão-de ser maçãs
ou ciência, loendros ou lembrança,
inocentes, lúcidos sonos ou oblata
de seda, a deus cedida, em pagamento
da paz. Só do que chega ao fim, se corrompe
e apodrece, se imagina o princípio,
a majestade das coisas, o silêncio
irrevelado que o corpo desconhece.
As Lágrimas
Exaltemos as lágrimas. Na pele das veias,
bom dia, águas. Gratidão ao rosto, às cores,
ao sulco nos olhos. Porquê este ardor, este
temor da erva pisada? Adormecem comigo,meigas fábricas de quietude e solidão
no calmo azul branco da sua breve cor.
Que longe se vão no ar amargo, sob o ímpeto
delirante de as transformar em leis extintas,ironias ou júbilos. Rolem ou finjam
incansáveis trabalhos ou dores, assim
conspiram em outras portas, outros mistérios.Perco-as entre conversas, o sono, o amor.
Aos olhos desertos sua ausência os desgasta.
Louvemos nas lágrimas o seu fulgor vão.
Assim como um dia bem empregado procura um sono feliz, também uma vida bem empregada termina com uma morte serena.
O sono é irmão da morte.
Embirração
(A Machado de Assis)
A balda alexandrina é poço imenso e fundo,
Onde poetas mil, flagelo deste mundo,
Patinham sem parar, chamando lá por mim.
Não morrerão, se um verso, estiradinho assim,
Da beira for do poço, extenso como ele é,
Levar-lhes grosso anzol; então eu tenho fé
Que volte um afogado, à luz da mocidade,
A ver no mundo seco a seca realidade.Por eles, e por mim, receio, caro amigo;
Permite o desabafo aqui, a sós contigo,
Que à moda fazer guerra, eu sei quanto é fatal;
Nem vence o positivo o frívolo ideal;
Despótica em seu mando, é sempre fátua e vã,
E até da vã loucura a moda é prima-irmã:
Mas quando venha o senso erguer-lhe os densos véus,
Do verso alexandrino há de livrar-nos Deus.Deus quando abre ao poeta as portas desta vida,
Não lhe depara o gozo e a glória apetecida;
E o triste, se morreu, deixando mal escritas
Em verso alexandrino histórias infinitas,
Vai ter lá noutra vida insípido desterro,
Se Deus, por compaixão, não dá perdão ao erro;
A Fernando Pessoa
(Depois de ler seu drama estático “O marinheiro” em “Orfeu I”)
Depois de doze minutos
Do seu drama O Marinheiro,
Em que os mais ágeis e astutos
Se sentem com sono e brutos,
E de sentido nem cheiro,
Diz rima das veladoras
Com langorosa magia
De eterno e belo há apenas o sonho.
Por que estamos nós falando ainda?Ora isso mesmo é que eu ia
Perguntar a essas senhoras…
Sem pensar em mais nada, fecho os olhos para esquecer. Dorme, menina, repito no escuro, o sono também salva. Ou adia.
Sem verdade, sem dúvida, nem dono. Boa é a vida, mas melhor é o vinho. O amor é bom, mas é melhor o sono.
Tédio
Sobre minh’alma, como sobre um trono,
Senhor brutal, pesa o aborrecimento.
Como tardas em vir, último outono,
Lançar-me as folhas últimas ao vento!Oh! dormir no silêncio e no abandono,
Só, sem um sonho, sem um pensamento,
E, no letargo do aniquilamento,
Ter, ó pedra, a quietude do teu sono!Oh! deixar de sonhar o que não vejo!
Ter o sangue gelado, e a carne fria!
E, de uma luz crepuscular velada,Deixar a alma dormir sem um desejo,
Ampla, fúnebre, lúgubre, vazia
Como uma catedral abandonada!…
Continua O Poeta Em Louvor A Soledade Vituperando A Corte
Ditoso aquele, e bem-aventurado,
Que longe, e apartado das demandas,
Não vê nos tribunais as apelandas
Que à vida dão fastio, e dão enfado.Ditoso, quem povoa o despovoado,
E dormindo o seu sono entre as holandas
Acorda ao doce som, e às vozes brandas
Do tenro passarinho enamorado.Se estando eu lá na Corte tão seguro
Do néscio impertinente, que porfia,
A deixei por um mal, que era futuro;Como estaria vendo na Bahia,
Que das Cortes do mundo é vil monturo,
O roubo, a injustiça, a tirania?
Solidão
Um frio enorme esta minha alma corta,
e eu me encolho em mim mesmo: – a solidão
anda lá fora, e o vento à minha porta
passa arrastando as folhas pelo chão…Nesta noite de inverno fria e morta,
em meio ao neblinar da cerração,
o silêncio, que o espírito conforta,
exaspera a minha alma de aflição…As horas vão passando em abandono,
e entre os frios lençóis onde me deito
em vão tento conciliar o sonoA cama é fria… O quarto úmido e triste…
– Há uma noite de inverno no meu peito,
desde o instante cruel em que partiste…
Começa a Ir Ser Dia
Começa a ir ser dia,
O céu negro começa,
Numa menor negrura
Da sua noite escura,
A Ter uma cor fria
Onde a negrura cessa.Um negro azul-cinzento
Emerge vagamente
De onde o oriente dorme
Seu tardo sono informe,
E há um frio sem vento
Que se ouve e mal se sente.Mas eu, o mal-dormido,
Não sinto noite ou frio,
Nem sinto vir o dia
Da solidão vazia.
Só sinto o indefinido
Do coração vazio.Em vão o dia chega
Quem não dorme, a quem
Não tem que ter razão
Dentro do coração,
Que quando vive nega
E quando ama não tem.Em vão, em vão, e o céu
Azula-se de verde
Acinzentadamente.
Que é isto que a minha alma sente?
Nem isto, não, nem eu,
Na noite que se perde.
O sossego interior, se queres atingi-lo, Não deixes coisa alguma incompleta ou adiada. Não há nada que dê um sono mais tranquilo Que uma vingança bem executada…
Se você tem um inimigo, fica mais barato perdoá-lo. Faça isso por você. Caso contrário(…) o inimigo dormirá com você e perturbará seu sono.
Sou abraços, sorrisos, ânimo, bom humor, sarcasmo, preguiça e [agora] sono.
Com a Fortuna não Perde o Ser de Besta
Na carreira veloz, a deusa cega
Lança às vezes a mão a um feio mono
E o sobe, num instante, a um coche, a um trono,
Onde a Virtude com trabalho chega.Porém se, louca, num jumento pega,
Por mais que o erga não lhe dá abono:
Bem se vê que foi sonho de seu sono,
Quando a vara ou bastão ela lhe entrega.Pouco importa adornar asno casmurro
Com jaezes reais, mantas de festa,
Se a conhecer se dá no rouco zurro.Quem, no berço, por vil se manifesta,
Quem nele baixo foi, quem nace burro,
Co’a Fortuna não perde o ser de besta.
Tratavam-se de esquecer-se no sono, visto que não podiam perder-se na sombra.
Tristeza
Esta noite eu durmo de tristeza.
(O sono que eu tinha morreu ontem
queimado pelo fogo de meu bem.)
O que há em mim é só tristeza,
uma tristeza úmida, que se infiltra
pelas paredes de meu corpo
e depois fica pingando devagar
como lágrima de olho escondido.(Ali, no canto apagado da sala,
meu sorriso é apenas um brinquedo
que a mãozinha da criança quebrou.)E o resto é mesmo tristeza.
As Mães?
Fossem estes dias uma fonte que
brotasse.
Manchas de azul, um rasto de neve em pleno céu,
colmeias,
mel, uma exaltação de asas.Mas é assim:
metais que revestem a pele e as armaduras,
bronze, ferro, formas que perduram, malhas, ameaçados
tecidos que nos moldam —
quem borda ainda,
quem se atreve à minúcia das rendas?As mães?
elas vinham cedo, eram como um rumor de levadas,
atravessando as terras.
Eram as mesmas mãos trabalhando sedas, afagos e
uma conspiração de cores e agulhas frias,
mães de silêncio bordando a treva e o sono, a longa
noite dos filhos.Herdei uma beleza amarga,
o temor das sombras, dos relâmpagos que embatiam
na infância,
no dorso das colinas,
no coração mais triste.Um estrondo de muralhas, diques, batalhas que
deflagram,
uma ciência aterradora:
não quero outra véspera de espadas, a coroação do
sangue,
patíbulos onde a cabeça se expande,
rolando como a poeira e os astros,
repercutindo como um sino no choro das mães.Não quero um bordado de horas antigas,