Textos sobre Carne

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Textos de carne escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

A Podridão da Honra

Uma cadela de mau cheiro, que pariu numerosos filhotes, em parte já a apodrecer, mas que na minha infância era tudo para mim, que me segue fielmente o tempo todo, em quem não consigo bater, mas da qual, mesmo evitando o seu hálito, eu me desvio indo para trás e que, se não me decido por alguma outra coisa, irá empurrar-me até ao canto já visível da parede, para se decompor totalmente em cima de mim e comigo – é uma honra que me dá? -, a carne purulenta e cheia de vermes da sua língua na minha mão.

A Realidade não Está nos Livros

Como toda a gente, só disponho de três meios para avaliar a existência humana: o estudo de nós próprios, o mais difícil e o mais perigoso, mas também o mais fecundo dos métodos; a observação dos homens, que na maior parte dos casos fazem tudo para nos esconder os seus segredos ou para nos convencer de que os têm; os livros, com os erros particulares de perspectiva que nascem entre as suas linhas. Li quase tudo quanto os nossos historiadores, os nossos poetas e mesmo os nossos narradores escreveram, apesar de estes últimos serem considerados frívolos, e devo-lhes talvez mais informações do que as que recebi das situações bastante variadas da minha própria vida. A palavra escrita ensinou-me a escutar a voz humana, assim como as grandes atitudes imóveis das estátuas me ensinaram a apreciar os gestos. Em contrapartida, e posteriormente, a vida fez-me compreender os livros.
Mas estes mentem, mesmo os mais sinceros. Os menos hábeis, por falta de palavras e de frases onde possam abrangê-la, traçam da vida uma imagem trivial e pobre; alguns, como Lucano, tornam-na mais pesada e obstruída com uma solenidade que ela não tem. Outros, pelo contrário, como Petrónio, aligeiram-na, fazem dela uma bola saltitante e vazia,

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As Mães

Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terão morrido. Passaram o verão todo a transformar a luz em canto – não sei de destino mais glorioso. Quem lá encontraremos, pela certa, são aquelas mulheres envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra lhes tivesse morrido e para todo o sempre se quedassem órfãs. Não as veremos apenas em Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em toda a parte onde nasça o sol: em Cória ou Catania, em Mistras ou Santa Clara del Cobre, em Varchats ou Beni Mellal, porque elas são as Mães. O olhar esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a minha, se não tivera morrido tão cedo, sem tempo para que o rosto viesse a ser lavrado pelo vento. Provavelmente estão aí desde a primeira estrela. E como duram! Feitas de urze ressequida, parecem imortais. Se o não forem, são pelo menos incorruptíveis, como se participassem da natureza do fogo. Com mãos friáveis teceram a rede dos nossos sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela obscuridade dos seus lenços. Às vezes encostam-se à cal dos muros a ver passar os dias,

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Uma Completa Fome por Ti

Anais,

Não esperes que continue são. Não vamos ser sensatos. Foi um casamento, em Louveciennes — não podes negá-lo. Voltei com pedaços de ti pegados a mim. Estou a andar, a nadar num oceano de sangue, o teu sangue andaluz, destilado e venenoso. Tudo o que faço e digo e penso tem a ver com o casamento. Vi-te como a senhora do teu lar, uma moura de cara pesada, uma negra com um corpo branco, olhos por toda a tua pele, mulher, mulher, mulher. Não consigo ver como conseguirei viver longe de ti — estas interrupções são uma morte. Como te pareceu quando o Hugo voltou? Eu continuava aí? Não consigo imaginar-te a moveres-te com ele como fizeste comigo. Pernas fechadas. Fragilidade. Doce, traiçoeira aquiescência. Docilidade de pássaro. Tornaste-te uma mulher comigo. Isso quase me aterrorizou. Não tens só trinta anos de idade… Tens mil anos de idade.

Aqui estou de volta e ainda fervilhando de paixão, como vinho a fermentar. Não uma paixão apenas da carne, mas uma completa fome por ti, uma fome devoradora. Leio no jornal acerca de suicídios e homicídios e compreendo-o perfeitamente. Sinto-me assassino, suicida. Sinto talvez ser uma desgraça nada fazer,

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Prometo Falhar

Prometo amar-te até ao limite, beijar-te até à última fronteira, correr quando bastava andar, saltar quando bastava correr, voar quando bastava saltar. Prometo abraçar-te com o interior dos ossos, percorrer-te a carne com a fome absoluta, e ir à procura do orgasmo todos os dias, a toda a hora, encontrar a felicidade no doce absurdo que nos soubermos destinar. Prometo falhar. Sem hesitar. Prometo ser humano, aqui e ali ser incoerente, aqui e ali dizer a palavra errada, a frase errada, até o texto errado, aqui e ali agir sem pensar, para que raios serve pensar quando te amo tão desalmadamente assim? Prometo compreender, prometo querer, prometo acreditar. Prometo insistir, prometo lutar, descobrir, aprender, ensinar. Tudo para te dizer que prometo falhar. E Deus te livre de não me prometeres o mesmo.

Quando Somos Felizes

– Parece-me uma grande felicidade que, quando se olhe para o mundo, pareça sempre que é a primeira vez que o fazemos.
– É uma grande tristeza — disse ela a soluçar.
– É a maior infelicidade. Eu, quando olho para as coisas quero que elas me sejam familiares, como o meu tio e o meu marido, como o pão que se come às refeições. Quero deitar-me sempre com o mesmo homem, com os mesmos lábios. Quero que os lençóis de hoje me pareçam os lençóis de ontem, mesmo que os bordados sejam completamente diferentes. Não quero que os beijos que recebo sejam novos, quero que sejam velhos, quero que sejam os de sempre. Não me quero sobressaltar como quando era jovem. Uma pessoa só pode ter paz quando está ao pé das mesmas coisas, quando nem repara nelas, porque elas já fazem parte de si, como se as tivesse comido e mastigado e engolido e agora fossem carne da sua carne e sangue do seu sangue. Só somos felizes quando já não sentimos os sapatos nos pés.

Devaneios Reveladores

Na verdade, se nos fosse dado penetrar com os olhos da carne na consciência dos outros, julgaríamos com mais segurança um homem pelo que devaneia do que pelo que pensa. O pensamento é dominado pela vontade, o devaneio não. O devaneio, que é absolutamente espontâneo, toma e conserva, mesmo no gigantesco e no ideal, a figura do nosso espírito. Não há coisa que mais directa e profundamente saia da nossa alma do que as nossas aspirações irreflectidas e desmesuradas para os esplendores do destino. Nestas aspirações é que se pode descobrir o verdadeiro carácter de cada homem, melhor do que nas ideias compostas, coordenadas e discutidas. As nossas quimeras são o que melhor nos parece. Cada qual devaneia o incógnito e o impossível, conforme a sua natureza.

Fomos Deixando de Escutar

Me entristece o quanto fomos deixando de escutar. Deixámos de escutar as vozes que são diferentes, os silêncios que são diversos. E deixámos de escutar não porque nos rodeasse o silêncio. Ficámos surdos pelo excesso de palavras, ficámos autistas pelo excesso de informação. A natureza converteu-se em retórica, num emblema, num anúncio de televisão. Falamos dela, não a vivemos. A natureza, ela própria, tem que voltar a nascer. E quando voltar a nascer teremos que aceitar que a nossa natureza humana é não ter natureza nenhuma. Ou que, se calhar, fomos feitos para ter todas as naturezas.

Falei dos pecados da Biologia. Mas eu não trocaria esta janela por nenhuma outra. A Biologia ensinou-me coisas fundamentais. Uma delas foi a humildade. Esta nossa ciência me ajudou a entender outras linguagens, a fala das árvores, a fala dos que não falam. A Biologia me serviu de ponte para outros saberes. Com ela entendi a Vida como uma história, uma narrativa perpétua que se escreve não em letras mas em vidas.

A Biologia me alimentou a escrita literária como se fosse um desses velhos contadores não de histórias mas de sabedorias. E reconheci lições que já nos tinham sido passadas quando ainda não tínhamos sido dados à luz.

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O Dinheiro Tem uma Qualidade Detergente

O dinheiro tem, entre outras incontáveis virtudes, uma qualidade detergente. E múltiplas qualidades nutricionais. Alegra-te os belos olhos, engorda-te as bochechas, permite-te esse modo de ocupares uma poltrona, de pernas bem esticadas e jornal nas mãos. Dá-te essas mãos impolutas que emergem dos punhos de algodão branco da camisa. Já não és tu quem vagueia à noite. Podes contratar quem capture, degole e esfole as presas que constituem os ingredientes indispensáveis do cozido ou da paella dos domingos. Assim se fez sempre nas casas das boas famílias.

Não é o senhor da casa que desfere o golpe fatal ao coelho, não é a senhora que crava a faca no pescoço da galinha e a depena, com o pote de barro entre as pernas, cheio de pão migado que o sangue há de empapar como deve ser, para o rico ensopado. Aos senhores os animais chegam sempre já cozinhados, servidos numa bandeja coberta por uma reluzente campânula de prata, ou na caçarola, guarnecidos, irreconhecíveis de tão desfigurados e, por isso mesmo, apetitosos na sua aparente inocência. Assim se fez sempre, assim se continua a fazer; nós próprios adquirimos em poucos anos esse privilegiado estatuto, a ilusão de sermos todos senhores: em remotos pavilhões industriais,

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A Verdadeira Coragem Humana

Se estás disposto a nunca usar da violência, e sempre resistindo, torna-te forte de corpo e de alma; é a mais difícil de todas as atitudes; exige a constante vigilância de todos os movimentos do espírito, o domínio completo de todos os impulsos dos nervos e dos músculos rebeldes; a agressão é fácil contra o medo e também a primeira solução; para que, em todos os instantes, a possas pôr de lado e substituí-la pela tranquila recusa, não te deves fiar nos improvisos; a armadura de que te revestes nos momentos de crise é forjada dia a dia e antes deles; faz-se de meditação e de ginástica, de pensamento definido e preciso e de perfeitos comandos; quando menos se prevê surge o instante da decisão; rápida e firme, sem emoções ou sufocando-as, tem que trabalhar a máquina formada.
Que trabalhar, sobretudo, humanamente; a visão do autómato é a pior de todas para os amigos do espírito; não serão teus elementos nem a secura, nem a estóica dureza, nem o ar superior, nem as cortantes palavras; requere-se no inabalável a humanidade, o sorriso afectuoso, a íntima bondade, a desportiva calma, amiga do adversário, de quem joga um bom jogo; sozinho guardarás as lutas interiores que tens de suportar,

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O Amor pela Humanidade Começa

As paixões diminuem com a idade. O amor, que não deve ser classificado entre as paixões, diminui da mesma maneira. O que perde por um lado recupera por outro. Já não é severo para o objecto dos seus desejos, fazendo justiça a si mesmo: a expansão é aceite. Os sentidos já não possuem o seu aguilhão para excitar os sexos da carne. O amor pela humanidade começa. Nesses dias em que o homem sente que se torna um altar ornado pelas suas virtudes, feitas as contas de cada dor que se revelou, a alma, num recôndito do coração onde tudo parece ter origem, sente qualquer coisa que já não palpita. Referi-me à recordação.

Economia sem Sentimentos

A economia que despreza as considerações morais e sentimentais é semelhante às figuras de cera que, parecendo vivas, carecem da vida proporcionada pela carne. Em todos os momentos cruciais, estas novas leis económicas caíram ao serem colocadas em prática. E as nações ou os indivíduos que as aceitarem como guia irão perecer.

A Mancha Humana

– É o resultado de ter sido criado entre nós – disse Faunia. – É o resultado de passar toda a vida com pessoas como nós. A mancha humana – acrescentou, mas sem repulsa, desprezo ou condenação. Nem sequer com tristeza. As coisas são como são – à sua maneira seca e concisa, era só isso que ela estava a dizer à rapariga que dava de comer à serpente: nós deixamos uma mancha, deixamos um rasto, deixamos a nossa marca. Impureza, crueldade, mau trato, erro, excremento, sémen. Não há outra maneira de estar aqui. Não tem nada a ver com desobediência. Nem com graça, ou salvação, ou redenção. Está em todos. Sopro interior. Inerente. Determinante. A mancha que existe antes da sua marca. Sem o sinal de que está lá. A mancha que é tão intrínseca que não precisa de uma marca. A mancha que precede a desobediência, que engloba a desobediência e confunde toda e qualquer explicação e compreensão. É por isso que toda a purificação é uma anedota. É uma anedota básica, ainda por cima. A fantasia da pureza é aterradora. É demencial. O que á ânsia de purificar senão impureza?

Tudo quanto estava a dizer acerca da mancha era que ela é inelutável.

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O Homem – Uma Mácula da Natureza

Existe no mundo apenas um ser mentiroso: o homem. Todos os outros seres são verdadeiros e sinceros, pois mostram-se abertamente como são e manifestam o que sentem. Uma expressão emblemática ou alegórica dessa diferença fundamental é o facto de que todos os animais andam com o seu aspecto natural, o que contribui bastante para a impressão agradável que se tem ao vê-los; especialmente quando se trata de animais livres, tal visão enche o meu coração de alegria. Em contrapartida, devido ao seu vestuário, o ser humano tornou-se uma caricatura, um monstro; o simples facto de vê-lo é ja algo de repugnante, que se destaca até pelo branco da sua pele, tão natural a ele, e pelas consequências repulsivas da sua alimentação à base de carne, que vai contra a natureza, bem como das bebidas alcoólicas, do tabaco, dos excessos e das doenças.

O Homem Primitivo Moderno

Reparai num homem civilizado, rico, inteligente e feliz; olhai-o bem; tirai-lhe o chapéu alto, o casaco, as botas de verniz; despi-o, enfim: vereis a miséria da carne tentando um feroz regresso às formas caricatas do orogotango inicial.
Ide mais longe; penetrai-lhe o esqueleto, atravessai-lhe as entranhas: vereis então a maior das pobrezas, a miséria absoluta, a ausência de alma.
Sim: conforme a alma vai desaparecendo, o corpo vai-se sumindo e, apagando nas indecisas, grosseiras formas originárias. Por cada sentimento que morre, o cóccix aumenta um elo.
As criaturas de que se compõe a parte dominante da sociedade, estão já mais próximas do macaco do que do homem. As abas da casaca são feitas para encobrir os primeiros movimentos comprometedores da cauda… a bota de verniz tenta apertar e reduzir o pé que principia a prolongar-se assustadoramente. A luva realiza, nas mãos, o mesmo papel hipócrita…
Continuai na vossa análise do homem civilizado que parou agora, além, em frente duma vitrine de ourives, atraído, como os moscardos, pelo fulgor dos brilhantes, das esmeraldas, dos rúbis, dos topázios, de todas as pedras, enfim, que o homem não pode atirar ao seu semelhante.
Olhai-o bem; a primeira coisa que nos fere é a hostilidade que se exala de toda a sua fisionomia.

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A Luta de Classes Acabou

A luta de classes esfumou-se, dissolveu-se, a democracia tem funcionado como um diluente social: toda a gente vive, compra e acorre ao hipermercado, ao balcão do bar e aos concertos pagos pelo município na praça central, e todos falam ao mesmo tempo, vozes que se misturam como nas tumultuosas reuniões no cine Tivoli evocadas pelo meu pai, já não se distingue o que está em cima do que está em baixo, está tudo enredado, confuso, e, porém, reina uma misteriosa ordem, eis a democracia. Mas, de súbito, desde há um par de anos, parece desenhar-se uma ordem mais explícita, menos insidiosa. A nova ordem é bem visível, com os níveis superior e inferior bem definidos: alguns transportam com orgulho sacos repletos de compras e cumprimentam sorridentes os vizinhos à porta do centro comercial, outros remexem nos contentores onde os empregados do hipermercado lançaram as embalagens de carne fora de prazo, a fruta e as verduras pisadas, os pastéis industriais caducados. Lutam entre si por esses alimentos.

(…) Trivial, a luta de classes? Então não era isso que determinava, que impregnava e condicionava tudo? O grande motor da história universal? Não era nisso que acreditavam o meu pai e os seus camaradas,

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Saber Ler um Poema

– O poema está então centrado em si mesmo, monstruosamente solitário?
– Não tem pressa, pode bem esperar que o arranquem da sua solidão, possui forças expansivas bastantes, façam-no sair dali. Mas ou levam-no inteiro com o centro no centro e armado à vo]ta como um corpo vivo ou não levam nada, nem um fragmento. E o que muitas vezes se faz é contrabandear bocados: leva-se a parte errada dele na parte errada de nós para qualquer parte errada: filosofia, moral, politica, psicanálise, linguística, simbologia, literatura. Onde estão o corpo e a vida dele e a sua integridade? Onde, a solidão para escutar a solidão daquela voz? Porque é obrigatório dizé-lo: pouca gente tem ouvidos puros. Ou mãos limpas. Ler um poema é poder fazê-lo, refazê-lo: eis o espelho, o mágico objecto do reconhecimento, o objecto activo de criação do rosto. O eco visual se quanto a rostos fosse apenas lê-los fora e ver. Porque o mostrado e o visto são a totalidade daquilo que se mostra e vê — o nome: a revelação.
— Não é um destino assegurado.
— Só é seguro que a pergunta, a procura, o poema reincidente, cristalizam numa grande massa translúcida,

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A Génese de um Povo

A refeição chegou muito tempo depois, fumegante, num alguidar de barro de cujo interior provinham diferentes odores a infância e a flores. A sua chegada, a sala inteira pareceu aquecer-se. Como em criança, José Artur pegou numa fatia do pão doce cortado à sua frente e colocou-a no fundo do prato, derramando sobre ela sucessivas conchas do caldo em que a carne mergulhava. Depois ergueu gravemente um dos pedaços dessa carne e passou-o para o prato também.

Levou o garfo à boca e fechou os olhos, a manteiga e o cravo-da-índia e o toucinho de fumo diluindo-se e recombinando-se numa afluência de sabores que se metamorfoseava. Ganhavam, perdiam e recuperavam cambiantes, à medida que entravam em acção novos ingredientes ainda, o vinho e a pimenta da Jamaica e a cebola e a banha de porco e de novo a carne, magnífica, derretendo-se-lhe na boca e fundindo-se com ela, como se ele tivesse, finalmente, atingido terra firme.

Comeu até ao fim, numa voragem antiga, e depois pegou nos últimos pedacinhos do pão doce e pôs-se a ensopar o resto do molho, comendo-os também.
«Massa sovada», lembrou-se. «Massa sovada!» Sabia-lhe a terramotos e a redenção.
Chegou-se para trás.

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Abraça-me

Abraça-me. Quero ouvir o vento que vem da tua pele, e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos. Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida na palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos para provar o sabor que tem a carne incandescente das estrelas. Abraça-me. Veste o meu corpo de ti, para que em ti eu possa buscar o sentido dos sentidos, o sentido da vida. Procura-me com os teus antigos braços de criança, para desamarrar em mim a eternidade, essa soma formidável de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram. Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor. Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos, para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros pequeninos.
Só essa água fará reconhecer o mais profundo, o mais intenso amor do universo, e eu quero que delem fiquem a saber até as estrelas mais antigas e brilhantes.
Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais.
Uma vez que nem sei se tu existes.

Controlar a Ira

Se deste vazão à ira, fica certo de que, além do mal nela implícito, revigoraste o hábito e acrescentaste lenha à fogueira. Quando és vencido por uma tentação da carne, não consideres isso simples derrota: considera, também, que revigoraste os teus hábitos dissolutos. Os hábitos e as faculdades são necessariamente afectados pelos actos correspondentes. Os que antes não existiam, agora aparecem; os demais cobram vigor e domínio. Esta é a versão que os Filósofos dão das moléstias da mente: supõe que algum dia cobiçaste ter dinheiro: se a razão, em dose suficiente para provocar a consciência do mal, intervir, a cobiça é anulada e a mente recupera imediatamente a sua autoridade original; contudo, se não recorreres a nenhum remédio, jamais poderás esperar tal recuperação; ao contrário, a próxima vez em que for excitada pelo objecto correspondente, a chama do desejo irromperá mais prontamente do que antes. Pela frequência da repetição, a mente, ao fim e ao cabo, fica calejada e, assim, esta moléstia mental produz Avareza confirmada.
Quando alguém teve febre, mesmo depois de voltar à normalidade, não se encontra nas mesmas condições de saúde que antes, a menos que a sua cura seja completa. Algo de semelhante ocorre com as moléstias da mente.

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