Textos sobre Dom

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Textos de dom escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

Estado de Graça

Quem já conheceu o estado de graça reconhecerá o que vou dizer. Não me refiro à inspiração, que é uma graça especial que tantas vezes acontece aos que lidam com arte. O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe. Nesse estado, além da tranquila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve porque na graça tudo é tão, tão leve. E uma lucidez de quem não adivinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe. Não perguntem o quê, porque só posso responder do mesmo modo infantil: sem esforço, sabe-se.
E há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma num dom. E se sente que é um dom porque se está experimentando, numa fonte direta, a dádiva indubitável de existir materialmente.
No estado de graça vê-se às vezes a profunda beleza, antes inatingível, de outra pessoa. Tudo, aliás, ganha uma espécie de nimbo que não é imaginário: vem do esplendor da irradiação quase matemática das coisas e das pessoas. Passa-se a sentir que tudo o que existe — pessoa ou coisa — respira e exala uma espécie de finíssimo resplendor de energia.

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Ser Mãe é Aceitar. Tudo.

Ser mãe é receber em si um outro que lhe vem de fora e acolhê-lo em vista de um futuro que pressente mas que, de maneira nenhuma, sabe explicar. Ser mãe é, antes de mais, aceitar. Tudo. Tudo.

É aceitar em si um outro para o qual ela se torna o mundo: gerando-o, alimentando-o, comendo, bebendo e respirando com ele… ele dentro de si, ela em volta dele.

É deixar esse outro ir embora e voltar a recebê-lo em cada dia, quando ele volta, quando ele se revolta e, também, quando ele não volta…

Ser mãe é acolher o que o outro lhe dá. Mas não como quem se alimenta do que lhe vem de fora, transformando-o em vida, que acolhe em si, e devolvendo ao mundo, já morto, aquilo que sobra. Ser é mãe é dar-se como alimento, transformando-se na vida daquele a quem se dá para depois… voltar depois ao mundo, gasta, apenas com o que lhe sobra.
Ser mãe é dar-se. Aceitando sempre qualquer resultado e resposta.

Uma mãe, mais do que dar um filho ao mundo, deve dar um mundo ao filho. Um melhor que este, cheio de esperança e sonhos,

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Nada Vence as Paixões Profundas de Cada Um

As paixões opõem-se às paixões, e podem servir de contrapeso umas às outras; mas a paixão dominante não se pode conduzir senão pelo seu próprio interesse, real ou imaginário, porque ela reina despoticamente sobre a vontade, sem a qual nada se pode. Contemplo humanamente as coisas, e acrescento nes­se espírito: nem todo o alimento é próprio para todos os cor­pos; nem todos os objetos são suficientes para tocar deter­minadas almas. Quem acredita serem os homens árbitros soberanos dos seus sentimentos não conhece a natureza; consiga-se que um surdo se divirta com os sons encantado­res de Mureti, peça-se a uma jogadora, que está a jogar uma grande partida, que tenha a complacência e a sabedo­ria de se enfadar durante a mesma, nenhuma arte pode fazê-lo.
Os sábios enganam-se quando oferecem a paz às paixões: as paixões são inimigas dela. Eles elogiam a mo­deração para aqueles que nasceram para a acção e para uma vida agitada; que importa a um homem doente a delicadeza de um festim que lhe repugna? Nós não conhecemos os defeitos de nossa alma; mas ainda que pudéssemos conhecê-los, raramente havería­mos de os querer vencer.
As nossas paixões não são distintas de nós mesmos; al­gumas delas são todo o fundamento e toda a substância da nossa alma.

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Tudo o que Somos é Ficção

Há que entender que tudo o que somos é ficção.
Pessoas atrás de pessoas pedem-me conselhos. Acreditam que o que escrevo me torna em alguém especial, capaz de lhes entender o que fazem, o que sentem, até o que escrevem. Fico perdido, sem saber o que fazer, sem saber o que dizer. E é por isso que escrevo. Escrever é estar perdido e procurar, a cada frase, um caminho. Ou um simples sinal de que pode haver um caminho, de que pode haver uma esperança. Escrever é procurar a esperança, todos os dias, no que não existe, no que se escreve para ver se existe. Não sou escritor, nunca fui escritor, não quero ser escritor. Sou apenas o gajo que escreve porque tem de escrever, porque os dias exigem que escreva, porque uma urgência qualquer o obriga a escrever. Escrevo como necessidade biológica, e às vezes custa tanto ter de escrever. Não dói mas custa, é uma dor de fora para dentro, como se as letras saíssem da pele, do por dentro dos ossos. E a literatura. O que raios é a literatura? Estou-me nas tintas para a literatura. Não quero escrever literatura, não quero os intelectuais do meu lado.

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A Alma Não se Usa na Superfície do Mundo

Se alguma coisa há que esta vida tem para nós, e, salvo a mesma vida, tenhamos que agradecer aos Deuses, é o dom de nos desconhecermos: de nos desconhecermos a nós mesmos e de nos desconhecermos uns aos outros. A alma humana é um abismo obscuro e viscoso, um poço que se não usa na superfície do mundo. Ninguém se amaria a si mesmo se deveras se conhecesse, e assim, não havendo a vaidade, que é o sangue da vida espiritual, morreríamos na alma de anemia. Ninguém conhece outro, e ainda bem que o não conhece, e, se o conhecesse, conheceria nele, ainda que mãe, mulher ou filho, o íntimo, metafísico inimigo.

O Feio Tem Mais Encanto Que o Belo

Por vezes existe nas pessoas ou nas coisas um charme invisível, uma graça natural que não pôde ser definida, a que somos obrigados a chamar o «não sei o quê». Parece-me que é um efeito que deriva principalmente da surpresa. Sensibiliza-nos o facto de uma pessoa nos agradar mais do que deveria inicialmente e somos agradavelmente surpreendidos porque superou os defeitos que os nossos olhos nos mostravam e que o coração já não acredita. Esta é a razão porque as mulheres feias possuem muitas vezes encantos que raramente as mulheres belas possuem, porque uma bela pessoa geralmente faz o contrário daquilo que esperávamos; começa a parecer-nos menos estimável. Depois de nos ter surpreendido positivamente, surpreende-nos negativamente; mas a boa impressão é antiga e a do mal, recente: assim, as pessoas belas raramente despertam grandes paixões, quase sempre restringidas às que possuem encantos, ou seja, dons que não esperaríamos de modo nenhum e que não tinhamos motivos para esperar.
Os encantos encontram-se muito mais no espírito do que no rosto, porque um belo rosto mostra-se logo e não esconde quase nada, mas o espírito apenas se mostra gradualmente, quando quer e do modo que quer; pode esconder-se para surgir de novo e proporcionar essa espécie de surpresa que constitui os encantos.

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A Influência dos Livros e dos Jornais

Os jornais e os livros exercem no nascimento e na propagação das opiniões uma influência imensa, conquanto inferior à dos discursos. Os livros actuam muito menos que os jornais, pois a multidão não os lê. Alguns foram, contudo, bastante poderosos pela sua influência sugestiva para provocar a morte de milhares de homens. Tais são as obras de Rousseau, verdadeira bíblia dos chefes do Terror, ou A Cabana do Pai Tomás, que contribuiu muito para a sanguinolenta guerra de secessão na América do Norte. Outras obras como Robinson Crusóe e os romances de Júlio Verne exerceram grande influência nas opiniões da juventude e determinaram muitas carreiras.
Essa força dos livros era, sobretudo, considerável quando se lia pouco. A leitura da Bíblia no tempo de Cromwel criou na Inglaterra um número avultado de fanáticos. Sabe-se que na época em que foi escrito Dom Quixote, os romances de cavalaria exerciam uma acção tão perniciosa em todos os cérebros que os soberanos espanhóis vedaram, finalmente, a venda desses livros.
Hoje, a influência dos jornais é muito superior à força dos livros. São em número incalculável as pessoas que têm unicamente a opinião do jornal que elas lêem.

A Base da Civilização

A lei do universo baseia-se sobre o concurso destes dois grandes agentes: a luta pela vida e a selecção natural. A luta pela vida é o estado permanente de todos os seres, para os quais a criação é uma eterna batalha. A sorte do conflito decide-a a selecção natural. Como? Fixando na espécie, pela adaptação ao meio, os seres mais fortes, e expulsando os seres inferiores. Por isso o professor Haeckel affirma: «A teoria de Darwin estabelece que nas sociedades humanas, como nas sociedades animais, nem os direitos, nem os deveres, nem os bens, nem os gostos dos membros associados podem ser iguais.» Ora o que é que estabelece o Direito? O Direito estabelece precisamente o contrario disso: a igualdade dos deveres recíprocos para a mais equitativa distribuição dos bens.
O Direito portanto não só não é uma emanação da lei natural, mas é uma reacção contra essa lei. A natureza é o triunfo brutal decretado ao forte. A sociedade é a protecção consciente assegurada ao fraco. A criação funda a luta pela vida. A sociedade organiza o auxílio pela existência.
Uma civilização é tanto mais adiantada quanto mais ela submete ao seu domínio as fatalidades naturais. E é assim que o homem,

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Quantas Vezes a Insónia é um Dom

Mas quantas vezes a insónia é um dom. De repente acordar no meio da noite e ter essa coisa rara: solidão. Quase nenhum ruído. Só o das ondas do mar batendo na praia. E tomo café com gosto, toda sozinha no mundo. Ninguém me interrompe o nada. É um nada a um tempo vazio e rico. E o telefone mudo, sem aquele toque súbito que sobressalta. Depois vai amanhecendo. As nuvens se clareando sob um sol às vezes pálido como uma lua, às vezes de fogo puro. Vou ao terraço e sou talvez a primeira do dia a ver a espuma branca do mar. O mar é meu, o sol é meu, a terra é minha. E sinto-me feliz por nada, por tudo. Até que, como o sol subindo, a casa vai acordando e há o reencontro com meus filhos sonolentos.

Se a Sua Vida Acabasse Amanhã

Quando foi a última vez que se riu com um amigo ao ponto de lhe doer a cara ou deixou as crianças com uma baby-sitter e foi passar todo o fim de semana fora? Vamos diretos ao assunto: se a sua vida acabasse amanhã, o que é que lamentaria não ter feito? Se este fosse o último dia da sua vida, passava-o da forma como o está a passar hoje? Uma vez passei por um outdoor que me chamou a atenção. Dizia: «Quem morrer com mais brinquedos morre na mesma.»

Qualquer pessoa que já tenha estado perto da morte lhe dirá que no fim da vida o mais provável é não se lembrar das diretas que fez a trabalhar no escritório ou quanto vale a sua conta-poupança. Os pensamentos que surgem são questões do tipo «e se», como por exemplo: Onde teria chegado se tivesse realmente feito as coisas que sempre quis fazer?

O dom de decidir encarar a mortalidade sem fugir nem virar a cara é o dom de reconhecer que, pelo facto de morrermos um dia, temos de viver agora. Se vai estagnar ou se vai crescer, isso depende sempre de si — você é quem mais influencia a sua vida.

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A Chama da Vida e o Fogo das Paixões

Nem sempre estar apaixonado é bom. A maior parte das paixões tomam conta da vontade e assumem o controlo do sentir e do pensar. Prometem a maior das libertações, mas escravizam quem desiste de si mesmo e a elas se submete.

A paixão é sofrimento, um furor que é o oposto da paz e do contentamento. Um vazio fulminante capaz das maiores acrobacias para se satisfazer. Mas que, como nunca se sacia, acaba por se consumir, por se destruir a si mesmo. Para ter paz precisamos de fazer esta guerra, na conquista do mais exigente de todos os equilíbrios: entre a monotonia de nada arriscar e a imprudência de entregar tudo sem uma vontade própria profunda. É essencial que saibamos desafiarmo-nos, por vezes, a um profundo desequilíbrio momentâneo. Afinal, quem nunca ousa está perdido, para sempre.
Há boas paixões. São as que trabalham como um fermento. De forma pacata, pacífica e paciente. Animam, mas não dominam. Orientam, mas não decidem. Iluminam, mas não cegam.

Quase ninguém faz ideia da capacidade que cada um de nós tem para suportar e vencer grandes sofrimentos…

Por paixões comuns, há quem perca a cabeça, o coração e a alma.

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Do Juízo Estético

Toda a arte pressupõe regras na base das quais uma produção, se deve considerar-se artística, é representada, em primeiro lugar, como possível; mas o conceito das belas-artes não permite derivar o juízo sobre a beleza da produção de qualquer regra que tenha um conceito como princípio determinante, em virtude de pôr como fundamento um conceito do modo por que tal é possível. Assim, a arte do belo não pode inventar ela mesma a regra segundo a qual realizará a sua produção. Mas, como sem regra anterior um produto não pode ser artístico, é necessário que a natureza dê a regra de arte ao próprio sujeito (na concordância das suas faculdades), isto é, as belas-artes só podem ser o produto do génio.
Daí se conclui: 1º Que o génio é o talento de produzir aquilo de que se não pode dar regra determinada, mas não é a aptidão para o que pode ser apreendido consoante uma qualquer regra; portanto, a sua primeira característica é a originalidade. 2º Que as suas produções, visto que o absurdo também pode ser original, devem simultaneamente ser modelos, isto é, ser exemplares; por consequência, não sendo obras de imitação, têm de ser propostas à imitação das outras,

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O Futuro do Homem

O homem pode sempre mais e coisa diversa daquilo que se esperaria dele. O homem é inacabado e inacabável e sempre aberto ao futuro. Não há homem total e não o haverá jamais. Por isso há dois modos de pensar o futuro do homem. Posso concebê-lo como um processo natural, análogo àquele que respeita aos objectos, e formular probabilidades. Ou então posso imaginar as situações que vão ocorrer sem saber a resposta que lhes dará o homem, sem saber como, através delas, mas espontaneamente, ele se encontrará a si próprio. No primeiro caso, aguardo um desenrolar necessário que poderia conhecer em princípio, mesmo se não o conheço. No segundo caso, o futuro, longe de ser o desenvolvimento de necessidades causais implicadas pela realidade dada, depende do que será realizado e vivido em liberdade. As inúmeras pequenas acções dos indivíduos, todas as suas livres decisões, todas as coisas que realizam, têm um alcance ilimitado. No primeiro caso submeto-me a uma necessidade contra a qual nada posso. No segundo procuro a fonte original que está na base da liberdade humana. Faço um apelo à vontade.
Caminhamos para um futuro que não pode ser conhecido, que, na sua totalidade, não está decidido.

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O Dom da Simpatia

Ter o dom da simpatia. É das coisas que mais se invejam. Tem, como tudo, a sua técnica, mas os efeitos são sempre problemáticos. Há o sujeito amável, como o distante, o inteligente como o mediano, o modesto ou o vaidoso, o convincente como o retraído, o irónico ou o sério e assim por diante, com todas as qualidades que se quiserem e o seu contrário. Num caso e noutro pode-se ser «simpático» ou «antipático», captarmos os favores dos outros ou a sua repulsa. Não é fácil determinar o que realmente decide de uma adesão. E se fosse simplesmente o ter-se «personalidade»? O assumir-se verticalmente aquilo que se é? Isso ao menos imporia uma deferência ou «respeito». Lembra-se uma frase de um antigo tragediógrafo latino (Ácio) – que nos odeiem desde que nos temam. Não é evidentemente o caso aqui. Mas é qualquer coisa de parecido: que se seja o que se for, desde que se assuma isso em responsabilidade. O resto são apenas formas de «simpatia», ou seja, do «sentir-se com». E de todas elas, a base delas – ou seja, a admiração. Porque se não tem simpatia se não houver seja o que for de admiração: tem-se apenas tolerância ou piedade.

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Considerações Sobre a Amizade

É a insuficiência do nosso ser que faz nascer a amizade, e é a insuficiência da própria amizade que a faz perecer. Está-se sozinho, sente-se a própria miséria, sente-se necessidade de apoio, procura-se quem lhe favoreça os gostos, um companheiro nos prazeres e nos pesares; quer-se um homem de quem se possa possuir o coração e o pensamento. Então a amizade parece ser o que de mais doce há no mundo; tem-se o que se desejou, logo se muda de ideia. Quando se vê de longe algum bem, ele fixa de início os nossos desejos, e quando se chega a ele, sente-se o seu nada. A nossa alma, de que ele prendia a vista na distância, não pode repousar-se nele quando vê mais adiante: assim a amizade, que de longe limitava todas as nossas pretensões, cessa de limitá-las de perto; não preenche o vazio que prometera preencher; deixa-nos necessidades que nos distraem e nos levam a outros bens.
Então a gente torna-se negligente, difícil, exige-se logo como um tributo as complacências que de início eram recebidas como um dom. É do carácter dos homens apropriar-se a pouco e pouco até das graças de que beneficiam; uma longa posse acostuma-os naturalmente a olhar as coisas que possuem como sendo deles;

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