Textos sobre Dom

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Textos de dom escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

O Medo do Sucesso

Há muitas pessoas com um enorme potencial e só não o materializam porque têm medo de deixar de ser quem são se atingirem determinado patamar. Ora isto é o maior sinal de que, e desculpa se estou a falar de ti, por muito que penses saber quem és, a verdade é que não fazes ideia do que pensas ser. Ninguém que saiba ser vive com medo de deixar de sê-lo à medida que vai conquistando novos mundos. Ninguém que saiba ser deixa de ser o que verdadeiramente é, ainda que a terra desabe ou o paraíso se torne parte dos seus dias. Quem é, é, ponto final, e não desenvolveres os teus dons com medo de abandonares quem pensas ser, é como condenares-te à morte pela asfixia da frustração, é como se metade de ti soubesse o caminho e a outra metade te puxasse para trás, é como estares tão perto do que és e tão longe de vires a sê-lo. O desgaste será um saco de plástico à volta do teu pescoço, cada vez mais apertado e tu mais ofegante até ao dia em que deixas de acreditar e pereces. É isso que queres? Outro dos motivos para o medo do sucesso é a possibilidade de perder pessoas,

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Prazer com Virtude

Que dizer do facto de tanto os homens bons como os maus terem prazer, e de os homens infames terem tanto gosto em cometer actos vergonhosos como os homens honestos têm nas suas acções excelentes? É por isso que os antigos prescreveram que se procurasse a vida melhor, não a mais agradável, de forma a que o prazer fosse, não o guia, mas um companheiro da vontade recta e boa. Na verdade, a natureza deve ser o nosso guia: a razão observa-a e consulta-a. Por isso, viver feliz é o mesmo que viver de acordo com a natureza. Passo a explicar o que quer isto dizer: se conservarmos os nossos dons corporais e as nossas aptidões naturais com diligência, mas também com impavidez, tomando-os como bens efémeros e fugazes; se não nos tornarmos servos deles, nem nos submetermos a coisas exteriores; se as coisas que são circunstanciais e agradáveis ao corpo forem para nós como auxiliares e tropas ligeiras num castro (que obedecem, não comandam); nesta medida, todas estas coisas serão úteis à mente.
Não se deixe o homem corromper pelas coisas externas e inalcançáveis, e admire-se apenas a si próprio, confiando no seu ânimo e mantendo-se preparado para tudo,

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A Dificuldade de Estabelecer e Firmar Relações

A dificuldade de estabelecer e firmar relações. Há uma técnica para isso, conheço-a. Nunca pude meter-me nela. Ser «simpático». É realmente fácil: prestabilidade, autodomínio. Mas. Ser sociável exige um esforço enorme — físico. Quem se habituou, já se não cansa. Tudo se passa à superfície do esforço. Ter «personalidade»: não descer um milímetro no trato, mesmo quando por delicadeza se finge. Assumirmos a importância de nós sem o mostrar. Darmo-nos valor sem o exibir. Irresistivelmente, agacho-me. E logo: a pata dos outros em cima. Bem feito. Pois se me pus a jeito. E então reponto. O fim. Ser prestável, colaborar nas tarefas que os outros nos inventam. Colóquios, conferências, organizações de. Ah, ser-se um «inútil» (um «parasita»…). Razões profundas — um complexo duplo que vem da juventude: incompreensão do irmão corpo e da bolsa paterna. O segundo remediou-se. Tenho desprezo pelo dinheiro. Ligo tão pouco ao dinheiro que nem o gasto… Mas «gastar» faz parte da «personalidade». Saúde — mais difícil. Este ar apeuré que vem logo ao de cima. A única defesa, obviamente, é o resguardo, o isolamento, a medida.
É fácil ser «simpático», difícil é perseverar, assumir o artifício da facilidade. Conservar os amigos. «Não és capaz de dar nada»,

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O Professor como Mestre

Não me basta o professor honesto e cumpridor dos seus deveres; a sua norma é burocrática e vejo-o como pouco mais fazendo do que exercer a sua profissão; estou pronto a conceder-lhe todas as qualidades, uma relativa inteligência e aquele saber que lhe assegura superioridade ante a classe; acho-o digno dos louvores oficiais e das atenções das pessoas mais sérias; creio mesmo que tal distinção foi expressamente criada para ele e seus pares. De resto, é sempre possível a comparação com tipos inferiores de humanidade; e ante eles o professor exemplar aparece cheio de mérito. Simplesmente, notaremos que o ser mestre não é de modo algum um emprego e que a sua actividade se não pode aferir pelos métodos correntes; ganhar a vida é no professor um acréscimo e não o alvo; e o que importa, no seu juízo final, não é a ideia que fazem dele os homens do tempo; o que verdadeiramente há-de pesar na balança é a pedra que lançou para os alicerces do futuro.
A sua contribuição terá sido mínima se o não moveu a tomar o caminho de mestre um imenso amor da humanidade e a clara inteligência dos destinos a que o espírito o chama;

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Sempre nos Reduzimos às Limitações do Nosso Interlocutor

Ninguém pode ver acima de si. Com isso quero dizer: cada pessoa vê em outra apenas o tanto que ela mesma é, ou seja, só pode concebê-la e compreendê-la conforme a medida da sua própria inteligência. Se esta for de tipo inferior, então todos os dons intelectuais, mesmo os maiores, não lhe causarão nenhuma impressão, e ela perceberá no possuidor desses grandes dons apenas os elementos inferiores da individualidade dela própria, isto é, todas as suas fraquezas, os seus defeitos de temperamento e carácter. Eis os ingredientes que, para ela, compõem o homem eminente, cujas capacidades intelectuais elevadas lhe são tão pouco existentes, quanto as cores para os cegos. De facto, todos os espíritos são invisíveis para os que não o possuem, e toda a avaliação é um produto do que é avaliado pela esfera cognitiva de quem avalia.
Disso resulta que nos colocamos ao mesmo nível do nosso interlocutor, pois tudo o que temos em excedência desaparece, e até mesmo a auto-abnegação exigida em tal atitude permanece irreconhecida por completo. Ora, se considerarmos o quanto a maioria dos homens é de mentalidade e inteligência inferiores, portanto, o quanto é comum, veremos que não é possível falar com ele sem,

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O Segredo de Salvar-me Pelo Amor

Quem há aí que possa o cálix
De meus lábios apartar?
Quem, nesta vida de penas,
Poderá mudar as cenas
Que ninguém pôde mudar ?

Quem possui na alma o segredo
De salvar-me pelo amor?
Quem me dará gota de água
Nesta angustiosa frágua
De um deserto abrasador?

Se alguém existe na terra
Que tanto possa, és tu só!
Tu só, mulher, que eu adoro,
Quando a Deus piedade imploro,
E a ti peço amor e dó.

Se soubesses que tristeza
Enluta meu coração,
Terias nobre vaidade
Em me dar felicidade,
Que eu busquei no mundo em vão.

Busquei-a em tudo na terra,
Tudo na terra mentiu!
Essa estrela carinhosa
Que luz à infância ditosa
Para mim nunca luziu.

Infeliz desde criança
Nem me foi risonha a fé;
Quando a terra nos maltrata,
Caprichosa, acerba e ingrata,
Céu e esperança nada é.

Pois a ventura busquei-a
No vivo anseio do amor,
Era ardente a minha alma;
Conquistei mais de uma palma
À custa de muita dor.

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Não há Descoberta sem Violência

Devemos a quase totalidade das nossas descobertas às nossas violências, à exacerbação do nosso desequilíbrio. Mesmo Deus, na medida em que nos intriga, não é no mais íntimo de nós que o discernimos, mas antes no limite exterior da nossa febre, no ponto preciso em que, confrontando-se a nossa ira com a sua, se produz um choque, um encontro tão ruinoso para Ele como para nós. Ferido pela maldição que se liga aos actos, o violento só força a sua natureza, só se ultrapassa a si próprio, para a ela regressar, furioso e agressor, seguido pelas suas empresas, que o punem por as ter feito nascer. Não há obra que não se volte contra o seu autor: o poema esmagará o poeta, o sistema o filósofo, o acontecimento o homem de acção. Destrói-se quem, respondendo à sua vocação e cumprindo-a, se agita no interior da história; apenas se salva aquele que sacrifica dons e talentos para, desprendido da sua qualidade de homem, poder repousar no ser. Se aspiro a uma carreira metafísica, não posso por preço algum conservar a minha identidade: terei de liquidar o menor resíduo que dela possa guardar; se, pelo contrário, escolho a aventura de um papel histórico,

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Aprender a Escrita pela Leitura

Ao lermos um autor, não temos a capacidade de adquirir as suas eventuais qualidades, como o poder de convencimento, a riqueza de imagens, o dom da comparação, a ousadia, ou o amargor, ou a concisão, ou a graça, ou a leveza da expressão, ou o espírito arguto, contrastes surpreendentes, laconismo, ingenuidade e outras semelhantes. No entanto, podemos evocar em nós mesmos tais qualidades, tornarmo-nos conscientes da sua existência, caso já tenhamos alguma predisposição para elas, ou seja, caso as tenhamos potentia; podemos ver o que é possível fazer com elas, podemos sentir-nos confirmados na nossa tendência, ou melhor, encorajados a empregar tais qualidades; com base em exemplos, podemos julgar o efeito da sua aplicação e assim aprender o seu uso correcto; somente então as possuímos também actu.
Esta é, portanto, a única maneira na qual a leitura nos torna aptos para escrever, na medida em que nos ensina o uso que podemos fazer dos nossos próprios dons naturais; portanto, pressupondo sempre a existência destes. Por outro lado, sem esses dons, não aprendemos nada com a leitura, excepto a maneira fria e morta, e tornamo-nos imitadores banais.

A Preguiça como Obstáculo à Liberdade

A preguiça e a cobardia são as causas por que os homens em tão grande parte, após a natureza os ter há muito libertado do controlo alheio, continuem, no entanto, de boa vontade menores durante toda a vida; e também por que a outros se torna tão fácil assumirem-se como seus tutores. É tão cómodo ser menor.
Se eu tiver um livro que tem entendimento por mim, um director espiritual que tem em minha vez consciência moral, um médico que por mim decide da dieta, etc., então não preciso de eu próprio me esforçar. Não me é forçoso pensar, quando posso simplesmente pagar; outros empreenderão por mim essa tarefa aborrecida. Porque a imensa maioria dos homens (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maioridade difícil e também muito perigosa é que os tutores de boa vontade tomaram a seu cargo a superintendência deles. Depois de, primeiro, terem embrutecido os seus animais domésticos e evitado cuidadosamente que estas criaturas pacíficas ousassem dar um passo para fora da carroça em que as encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça, se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo não é assim tão grande, pois aprenderiam por fim muito bem a andar.

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O Amor Maior

O amor é preocupação. Ter o coração já previamente ocupado. Ter medo que alguma coisa de mal aconteça à pessoa amada. Sofrer mais por não poder aliviar o sofrimento da pessoa amada do que ela própria sofre.
O amor é banal. É por isso que é tão bonito. O que se quer da pessoa amada: antes que ela nos ame também, é que ela seja feliz, que seja saudável, que tudo lhe corra bem. Embora se saiba que o mundo não o permite, passa-se por cima da realidade, do raciocínio do que é possível, e quer-se, e espera-se, que Deus abra, no caso dela, uma excepção.

A paixão pode parecer mais interessante. Mas irrita-me que se compare com o amor. Como se pode comparar dois sentimentos que não têm uma única semelhança? Se o amor e a paixão coincidem, é como a cor do céu e do mar num dia de Verão — é uma alegria, mas nada nos diz acerca do que distingue o ar da água.
Dizer que o amor pode começar como paixão é uma forma falaciosa de estabelecer uma continuidade entre uma e outra, geralmente pejorativa para o amor, que é entendido como um resíduo da paixão,

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Amor como Depravação do Nervo Óptico

Entendem cordatos fisiologistas que o amor, em certos casos, é uma depravação do nervo óptico. A imagem objectiva, que fere o órgão visual no estado patológico, adquire atributos fictícios. A alma recebe a impressão quimérica tal como sensório lha transmite, e com ela se identifica a ponto de revesti-la de qualidades e excelências que a mais esmerada natureza denega às suas criaturas dilectas. Os certos casos em que acima se modifica a generalidade da definição vêm a ser aqueles em que o bom senso não pode atinar com o porquê dalgumas simpatias esquisitas, extravagantes e estúpidas que nos enchem de espanto, quando nos não fazem estoirar de inveja.
E tanto mais se prova a referida depravação do nervo que preside às funções da vista quanto a alma da pessoa enferma, vítima de sua ilusão, nos parece propensa ao belo, talhada para o sublime e opulentada de dons e méritos que o mais digno homem requestaria com orgulho.

O Riso é o Melhor Indicador da Alma

Acho que, na maioria dos casos, quando uma pessoa se ri torna-se nojento olharmos para ela. Manifesta-se no riso das pessoas, na maioria das vezes, qualquer coisa de grosseiro que humilha a quem ri, embora essa pessoa quase nunca saiba que efeito o seu riso provoca. Tal como não sabe (ninguém sabe, aliás) a cara que faz quando dorme. Há quem mantenha no sono uma cara inteligente, mas outros há que, embora inteligentes, fazem uma cara tão estúpida a dormir que se torna ridícula.
Não sei por que tal acontece, apenas quero salientar que a pessoa que ri, tal como a pessoa que dorme, não sabe a cara que faz. De uma maneira geral, há muitíssimas pessoas que não sabem rir. Aliás, isso não é coisa que se aprenda: é um dom, não se pode aperfeiçoar o riso. A não ser que nos reeduquemos interiormente, que nos desenvolvamos para melhor e que superemos os maus instintos do nosso carácter: então também o riso poderá possivelmente mudar para melhor. A pessoa manifesta no riso aquilo que é, é possível conhecermos num instante todos os seus segredos.
Mesmo o riso incontestavelmente inteligente é, às vezes, abominável. O riso exige em primeiro lugar sinceridade,

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O Nascimento de um Poema

Escreve-se um poema devido à suspeita de que enquanto o escrevemos algo vai acontecer, uma coisa formidável, algo que nos transformará, que transformará tudo. Como na infância, quando se fica à porta de um quarto obscuro e vazio. Fica-se durante um minuto uma brisa levanta-se nos confins da obscuridade: um redemoinho no ar, uma luz, uma iluminação talvez? Estamos prontos para o assentimento. Outro minuto, cinco, dez, ali, diante do anúncio suspenso e ameaçador: não acontece nada. Poder-se-ia esperar um dia inteiro, dias seguidos. As vezes pára-se no meio de um jardim ou de um parque ou de uma avenida deserta. São variantes do quarto. Acontece o mesmo, quero dizer: não acontece na¬da. A suspeita apenas de que nos aguarda uma espécie de graça reticente, um dom reticente. Ou contempla-se um rosto, alguém que se ama, um ser imediato; ou então um rosto desconhecido, defendido. Pensamos: é uma vida nova, uma força nova e profunda, é uma paisagem misteriosa, profunda e nova que se relaciona intimamente connosco: vai revelar-se. E a outra pessoa olha para nós perdida nas perspectivas inquietas da nossa contemplação. E recomeça-se. O mesmo, sempre. Nada. Por isso surpreendeu-me a, diga¬mos, coerência vertical do volume, e o seu comprimento de onda,

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O Destino de Cada Homem é o Seu Maior Prazer

No ser vivo toda a necessidade essencial, que brota do próprio ser e não lhe advém de fora acidentalmente, vai acompanhada de voluptuosidade. A voluptuosidade é a cara, a facies da felicidade. E todo o ser é feliz quando satisfaz o seu destino, isto é, quando segue a encosta da sua inclinação, da sua necessidade essencial, quando se realiza, quando está a ser o que é na verdade. Por esta razão Schlegel dizia, invertendo a relação entre voluptuosidade e destino: «Para o que nos agrada temos génio». O génio, isto é, o dom superlativo de um ser para fazer alguma coisa tem sempre simultaneamente uma fisionomia de supremo prazer. Num dia que está próximo e graças a uma transbordante evidência vamo-nos ver surpreendidos e obrigados a descobrir o que agora somente parecerá uma frase: que o destino de cada homem é, ao mesmo tempo, o seu maior prazer.

O Amor em Portugal

Mesmo que Dom Pedro não tenha arrancado e comido o coração do carrasco de Dona Inês, Júlio Dantas continua a ter razão: é realmente diferente o amor em Portugal. Basta pensar no incómodo fonético de dizer «Eu amo-o» ou «Eu amo-a». Em Portugal aqueles que amam preferem dizer que estão apaixonados, o que não é a mesma coisa, ou então embaraçam seriamente os eleitos com as versões estrangeiras: «I love you» ou «Je t’aime». As perguntas «Amas-me?» ou «Será que me amas?» estão vedadas pelo bom gosto, senão pelo bom senso. Por isso diz-se antes «Gostas mesmo de mim?», o que também não é a mesma coisa.

O mesmo pudor aflige a palavra amante, a qual, ao contrário do que acontece nas demais línguas indo-europeias, não tem em Portugal o sentido simples e bonito de «aquele que ama, ou é amado». Diz-se que não sei-quem é amante de outro, e entende-se logo, maliciosamente, o biscate por fora, o concubinato indecente, a pouca vergonha, o treco-lareco machista da cervejaria, ou o opróbio galináceo das reuniões de «tupperwares» e de costura.
Amoroso não significa cheio de amor, mas sim qualquer vago conceito a leste de levemente simpático, porreiro, ou giríssimo.

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Sabedoria é não Entender

Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.

A Nossa Sensibilidade

Sofremos mais hoje que as gerações passadas porque o estímulo da maquinaria, da multidão, da coisa impressa e do barulho desgastou os tecidos protectores dos nossos nervos. Há compensações: esta sensibilidade em carne viva ergue-nos a uma subtileza de percepção e de coordenação nervosa e muscular que somos capazes de fazer coisas absolutamente impossíveis aos homens primitivos e mesmo aos medievais. Ficamos na situação dos músicos, cujos “ouvidos educados” os fazem sofrer com todos os sons que não sejam harmónicos: esses músicos pagam o crime da sensibilidade excessiva e possuem os defeitos das suas virtudes. Mas pensam lá eles em perder tais dons em troca de se livrarem dos sofrimentos consequentes? Não há homem moderno que queira desistir de uma sensibilidade que, se puplica o sofrimento, também multiplica os prazeres.

A Educação da Fé

Sendo a fé um dom, como pode ser motivo de educação? Não pode realmente ser ensinada, mas sim irradiada. Os que a possuem podem significar a estrela-guia, a perseverança num encontro difícil de suceder, mas cuja esperança comove todo o nosso ser. É possível que a Igreja se volte para esse apostolado da fé que foi extremamente importante no seu começo. Não o velho sistema de grupos sectários que são o modelo dos processos políticos e que, quando se afirma um movimento e este toma amplitude, se eliminam. Não é isso. Trata-se de focos de comunicação que dispensam a organização premeditada e até a linguagem elaborada, o discurso piedoso e a erudição duma exegese. Um interessar a alma na fé sem recorrer ao preconceito da santidade. Descobrir a imensa novidade da fé num mundo em que o próprio cristão vive de maneira pagã e singularmente a coberto dos antigos textos que esqueceu ou que desconhece completamente.

A prova de que o cristão vive como um bárbaro é o sentido que tomou a arte religiosa. Não é raro encontrar nas salas de convívio burguesas, juntamente com a televisão, ou a mesa de jogo, ou a instalação estereofónica para o gira-disco,

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Desigualdade Natural e Desigualdade Institucional

É fácil de ver que, entre as diferenças que distinguem os homens, muitas passam por naturais, quando são unicamente a obra do hábito e dos diversos géneros de vida adoptados pelos homens na sociedade. Assim, num temperamento robusto ou delicado, a força ou a fraqueza que disso dependem, vêm muitas vezes mais da maneira dura ou efeminada pela qual foi educado do que da constituição primitiva dos corpos. Acontece o mesmo com as forças do espírito, e a educação não só estabelece a diferença entre os espíritos cultivados e os que não o são, como aumenta a que se acha entre os primeiros à proporção da cultura; com efeito, quando um gigante e um anão marcham na mesma estrada, cada passo representa uma nova vantagem para o gigante. Ora, se se comparar a diversidade prodigiosa do estado civil com a simplicidade e a uniformidade da vida animal e selvagem, em que todos se nutrem dos mesmos alimentos, vivem da mesma maneira e fazem exactamente as mesmas coisas, compreender-se-á quanto a diferença de homem para homem deve ser menor no estado de natureza do que no de sociedade; e quanto a desigualdade natural deve aumentar na espécie humana pela desigualdade de instituição.

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Escolher Para Desfrutar

A angústia invade quer o inquieto, exclusivamente deslumbrado por aquilo que arde com uma luz vaga, quer o poeta cheio de amor pelos poemas que nunca escreveu o seu, quer a mulher apaixonada pelo amor, mas incapaz de devir por não saber escolher. Eles bem sabem que eu os curaria da angústia se lhes permitisse esse dom que exige sacrifícios e escolha e esquecimento do universo. Porque determinada flor é, em primeiro lugar, uma renúncia a todas as outras flores. E, no entanto, só com esta condição é bela. É o que acontece com o objecto da troca. E o insensato, que vem censurar a esta velha o seu bordado, sob o pretexto de que ela poderia ter tecido outra coisa, demonstra com isso que prefere o nada à criação.