A Busca da Verdade
A verdade é um ideal tipicamente jovem, o amor, por seu turno, um ideal das pessoas maduras e daqueles que se esforçam por estar preparados para enfrentar a diminuição das energias e a morte. As pessoas que pensam só deixam de ambicionar a verdade quando se dão conta que o ser humano está extraordinariamente mal dotado pela natureza para o reconhecimento da verdade objectiva, pelo que a busca da verdade não poderá ser a actividade humana por excelência.
Mas também aqueles que jamais chegam a tais conclusões fazem, no decurso das suas experiências inconscientes, um percurso semelhante. Ter consigo a verdade, a razão e o conhecimento, conseguir distinguir com precisão entre o Bem e o Mal, e, em consequência disso, poder julgar, punir e sentenciar, poder fazer e declarar a guerra – tudo isto é próprio dos jovens e é à juventude que assenta bem. Se, porém, quando envelhecemos, continuamos a ater-nos a estes ideais, fenece a já se si pouco vigorosa capacidade de «despertar» que possuímos, a capacidade de reconhecer instintivamente a verdade sobre-humana.
Textos sobre Morte
283 resultadosOpiniões Influenciadas pelo Interesse
A maior parte das coisas pode ser considerada sob pontos de vista muito diferentes: interesse geral ou interesse particular, principalmente. A nossa atenção, naturalmente concentrada sob o aspecto que nos é proveitoso, impede que vejamos os outros. O interesse possui, como a paixão, o poder de transformar em verdade aquilo em que lhe é útil acreditar. Ele é, pois, freqüentemente, mais útil do que a razão, mesmo em questões em que esta deveria ser, aparentemente, o guia único. Em economia política, por exemplo, as convicções são de tal modo inspiradas pelo interesse pessoal que se pode, em geral, saber préviamente, conforme a profissão de um indivíduo, se ele é partidário ou não do livre câmbio.
As variações de opinião obedecem, naturalmente, às variações do interesse. Em matéria política, o interesse pessoal constitui o principal factor. Um indivíduo que, em certo momento, energicamente combateu o imposto sobre a renda, com a mesma energia o defenderá mais, se conta ser ministro. Os socialistas enriquecidos acabam, em geral, conservadores, e os descontentes de um partido qualquer se transformam facilmente em socialistas.
O interesse, sob todas as suas formas, não é somente gerador de opiniões. Aguçado por necessidades muito intensas, ele enfraquece logo a moralidade.
Aprender a Morrer para Saber Viver
Diz Cícero que filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte. Isso porque de certa forma o estudo e a contemplação retiram a nossa alma para fora de nós e ocupam-na longe do corpo, o que é um certo aprendizado e representação da morte; ou então porque toda a sabedoria e discernimento do mundo se resolvem por fim no ponto de nos ensinarem a não termos medo de morrer. Na verdade, ou a razão se abstém ou ela deve visar apenas o nosso contentamento, e todo o seu trabalho deve ter como objectivo, em suma, fazer-nos viver bem e ao nosso gosto, como dizem as Santas Escrituras. Todas as opiniões do mundo coincidem em que o prazer é a nossa meta, embora adoptem meios diferentes para isso; de outra forma as rejeitaríamos logo de início, pois quem escutaria alguém que estabelecesse como fim o nosso penar e descontentamento?
Do Livre Arbítrio
A ideia de livre arbítrio, na minha opinião, tem o seu princípio na aplicação ao mundo moral da ideia primitiva e natural de liberdade física. Esta aplicação, esta analogia é inconsciente; e é também falsa. É, repito, um daqueles erros inconscientes que nós cometemos; um daqueles falsos raciocínios nos quais tantas vezes e tão naturalmente caímos. Schopenhauer mostrou que a primitiva noção de liberdade é a “ausência de obstáculos”, uma noção puramente física. E na nossa concepção humana de liberdade a noção persiste. Ninguém toma um idiota, ou louco por responsável. Porquê? Porque ele concebe uma coisa no cérebro como um obstáculo a um verdadeiro juízo.
A ideia de liberdade é uma ideia puramente metafísica.
A ideia primária é a ideia de responsabilidade que é somente a aplicação da ideia de causa, pela referência de um efeito à sua Causa. “Uma pessoa bate-me; eu bato àquela em defesa.” A primeira atingiu a segunda e matou-a. Eu vi tudo. Essa pessoa é a Causa da morte da outra.” Tudo isto é inteiramente verdade.
Assim se vê que a ideia de livre arbítrio não é de modo algum primitiva; essa responsabilidade, fundada numa legítima mas ignorante aplicação do princípio de Causalidade é a ideia realmente primitiva.
Os Expectantes
Entre as definições da ilha planetária em que nos encontramos desterrados, uma das mais apropriadas seria: uma grande sala de espera. Uma terça parte da vida é anulada numa semimorte, outra gasta em fazer mal a nós mesmos e aos outros e a última esboroa-se e consome-se na expectativa. Esperamos sempre alguma coisa ou alguém – que vem ou não, que passa ou desilude, que satisfaz ou mata. Começa-se, em criança, a esperar a juventude com impaciência quase alucinada; depois, quando adolescente, espera-se a independência, a fortuna ou porventura apenas um emprego e uma esposa. Os filhos esperam a morte dos pais, os enfermos a cura, os soldados a passagem à disponibilidade, os professores as férias, os universitários a formatura, as raparigas um marido, os velhos o fim. Quem entrar numa prisão verificará que todos os reclusos contam os dias que os separam da liberdade; numa escola, numa fábrica ou num escritório, só encontrará criaturas que esperam, contando as horas, o momento da saída e da fuga. E em toda a parte – nos parques públicos, nos cafés, nas salas – há o homem que espera uma mulher ou a mulher que espera um homem. Exames, concursos, noivados, lotarias, seminários,
O Progresso Aumenta a Vida e a Morte
Não desconheço que a velhice constitui, em grande parte, um preconceito aritmético, e que o nosso maior erro consiste em contar os anos que vivemos. Com efeito, tudo nos leva a supor que a Natureza dotou o homem (não falo já nas longevidades da Bíblia) de vida média mais longa do que aquela que as estatísticas demográficas acusam, e que, se morremos antes do termo normal da existência, é porque sucumbimos, não a «morte natural» (a «morte fisiológica», de Metchnickoff), mas a «morte violenta», que é a morte por acção destrutiva dos germes patogénicos. Como quer que seja, porém, parece-me incontestável que o homem envelhece antes do tempo e morre, em geral, quando ainda não chegou a meio do caminho da vida.
Será o engenho humano capaz de opôr uma barreira à marcha inexorável da decrepitude? Talvez. O nosso organismo é uma máquina; gasta-se, como todas as máquinas; e, por milagre da Natureza, ainda é aquela que, funcionando permanentemente, consegue durar mais tempo. Contentemo-nos com a ideia de que o homem de hoje vive mais do que vivia na Antiguidade clássica e na época medieval, mercê do progresso das técnicas, do conforto moderno da existência, da observação dos preceitos que a higiene,
A Hipocrisia do Ser
Para que servem esses píncaros elevados da filosofia, em cima dos quais nenhum ser humano se pode colocar, e essas regras que excedem a nossa prática e as nossas forças? Vejo frequentes vezes proporem-nos modelos de vida que nem quem os propõe nem os seus auditores têm alguma esperança de seguir ou, o que é pior, desejo de o fazer. Da mesma folha de papel onde acabou de escrever uma sentença de condenação de um adultério, o juiz rasga um pedaço para enviar um bilhetinho amoroso à mulher de um colega. Aquela com quem acabais de ilicitamente dar uma cambalhota, pouco depois e na vossa própria presença, bradará contra uma similar transgressão de uma sua amiga com mais severidade que o faria Pórcia.
E há quem condene homens à morte por crimes que nem sequer considera transgressões. Quando jovem, vi um gentil-homem apresentar ao povo, com uma mão, versos de notável beleza e licenciosidade, e com outra, a mais belicosa reforma teológica de que o mundo, de há muito àquela parte, teve notícia.
Assim vão os homens. Deixa-se que as leis e os preceitos sigam o seu caminho: nós tomamos outro, não só por desregramento de costumes, mas também frequentemente por termos opiniões e juízos que lhes são contrários.
Diante do homem estão a vida e a morte, e quer ele goste ou não, uma delas lhe será dada
Diante do homem estão a vida e a morte, e quer ele goste ou não, uma delas lhe será dada.
Causas e Curas para o Fanatismo
O fanatismo é para a superstição o que o delírio é para a febre, o que é a raiva para a cólera. Aquele que tem êxtases, visões, que considera os sonhos como realidades e as imaginações como profecias é um entusiasta; aquele que alimenta a sua loucura com a morte é um fanático. (…) O mais detestável exemplo de fanatismo é aquele dos burgueses de Paris que correram a assassinar, degolar, atirar pelas janelas, despedaçar, na noite de São Bartolomeu, os seus concidadãos que não iam à missa. Há fanáticos de sangue frio: são os juizes que condenam à morte aqueles cujo único crime é não pensar como eles. Quando uma vez o fanatismo gangrenou um cérebro a doença é quase incurável. Eu vi convulsionários que, falando dos milagres de S. Páris, sem querer se acaloravam cada vez mais; os seus olhos encarniçavam-se, os seus membros tremiam, o furor desfigurava os seus rostos e teriam morto quem quer que os houvesse contrariado.
Não há outro remédio contra essa doença epidémica senão o espírito filosófico que, progressivamente difundido, adoça enfim a índole dos homens, prevenindo os acessos do mal porque, desde que o mal fez alguns progressos, é preciso fugir e esperar que o ar seja purificado.
O Amor é o Caminho que nos Leva à Esperança
O amor é o caminho que nos leva à esperança. E esta não é uma espécie de consolação, enquanto se esperam dias melhores. Nem é sobretudo expectativa do que virá. Esperar não significa projetar-se num futuro hipotético, mas saber colher o invisível no visível, o inaudível no audível, e por aí fora. Descobrir uma dimensão outra dentro e além desta realidade concreta que nos é dada como presente. Todos os nossos sentidos são implicados para acolher, com espanto e sobressalto, a promessa que vem, não apenas num tempo indefinido futuro, mas já hoje, a cada momento. A esperança mantém-nos vivos. Não nos permite viver macerados pelo desânimo, absorvidos pela desilusão, derrubados pelas forças da morte. Compreender que a esperança floresce no instante é experimentar o perfume do eterno.
O Preço da Riqueza
Não invejemos a certa espécie de gente as suas grandes riquezas: eles as têm à custa de um ónus que não nos daria bom cómodo. Estragaram o seu repouso, a sua saúde, a sua felicidade e a sua consciência, para as conseguir: isso é caro demais, e não há nada a ganhar por esse preço.
Quando se é novo, muitas vezes é-se pobre: ou ainda não se fez aquisições, ou as heranças ainda não vieram. A gente torna-se rico e velho ao mesmo tempo; tão raro é poderem os homens reunir todas as vantagens!
E se isso acontece a alguns, não há que invejá-los: eles têm a perder com a morte o bastante para serem lamentados. É preciso trinta anos para pensar na fortuna; aos cinquenta está feita; contrói-se na velhice e morre-se quando ainda se está às voltas com pintores e vidraceiros. Qual o fruto de uma grande fortuna, se não gozar a vaidade, indústria, trabalho e esforço dos que vieram antes de nós, e trabalharmos nós mesmos, plantando, construindo, adquirindo, para a posteridade?
Em todas as condições, o pobre está mais próximo do homem de bem, e o opulento não está longe da ladroeira. A capacidade e a habilidade não levam a grandes riquezas.
A Maior Desgraça da Vida
A maior desgraça da vida, vistas bem as coisas, acaba por não ser a morte. Salvo aqueles casos catastróficos, que sob o ponto de vista do aniquilamento são uma perfeita maravilha, morre-se quando esta coisa que se chama corpo, por uma razão ou por outra, está podre. Quando, afinal, a ele próprio já lhe não apetece viver. A desgraça verdadeira é esta de nós andarmos aqui a namorar o céu, a pisar a terra, a investir contra o mar — e nem o céu, nem a terra, nem o mar saberem sequer que a gente existe.
As Infelizes Necessidades do Homem Civilizado
Um autor célebre, calculando os bens e os males da vida humana, e comparando as duas somas, achou que a última ultrapassa muito a primeira, e que tomando o conjunto, a vida era para o homem um péssimo presente. Não fiquei surpreendido com a conclusão; ele tirou todos os seus raciocínios da constituição do homem civilizado. Se subisse até ao homem natural, pode-se julgar que encontraria resultados muito diferentes; porque perceberia que o homem só tem os males que se criou para si mesmo, o que à natureza se faria justiça. Não foi fácil chegarmos a ser tão desgraçados. Quando, de um lado, consideramos o imenso trabalho dos homens, tantas ciências profundas, tantas artes inventadas, tantas forças empregadas, abismos entulhados, montanhas arrasadas, rochedos quebrados, rios tornados navegáveis, terras arroteadas, lagos cavados, pantanais dissecados, construções enormes elevadas sobre a terra, o mar coberto de navios e marinheiros, e quando, olhando do outro lado, procuramos, meditando um pouco as verdadeiras vantagens que resultaram de tudo isso para a felicidade da espécie humana, só nos podemos impressionar com a espantosa desproporção que reina entre essas coisas, e deplorar a cegueira do homem, que, para nutrir o seu orgulho louco, não sei que vã admiração de si mesmo,
Nenhuma Época Transmite a Outra a sua Sensibilidade
Nenhuma época transmite a outra a sua sensibilidade; transmite-lhe apenas a inteligência que teve dessa sensibilidade. Pela emoção somos nós; pela inteligência somos alheios. A inteligência dispersa-nos; por isso é através do que nos dispersa que nos sobrevivemos. Cada época entrega às seguintes apenas aquilo que não foi.
Um deus, no sentido pagão, isto é, verdadeiro, não é mais que a inteligência que um ente tem de si próprio, pois essa inteligência, que tem de si próprio, é a forma impessoal, e por isso ideal, do que é. Formando de nós um conceito intelectual, formamos um deus de nós próprios. Raros, porém, formam de si próprios um conceito intelectual, porque a inteligência é essencialmente objectiva. Mesmo entre os grandes génios são raros os que existiram para si próprios com plena objectividade.
Viver é pertencer a outrem. Morrer é pertencer a outrem. Viver e morrer são a mesma coisa. Mas viver é pertencer a outrem de fora, e morrer é pertencer a outrem de dentro. As duas coisas assemelham-se, mas a vida é o lado de fora da morte. Por isso a vida é a vida e a morte a morte, pois o lado de fora é sempre mais verdadeiro que o lado de dentro,
A Moralidade dos Homens Exaustos
Parte do conservantismo da idade madura decorre da inteligência, que afinal percebe a complexidade das instituições e as imperfeições do desejo; e parte vem do enfraquecimento das energias, o que explica a imaculada moralidade dos homens exaustos. A princípio com incredulidade, depois com desepero, vamos percebendo que o nosso reservatório de energia já não se enche com a facilidade antiga; ou, como disse Schopenhauer, começamos a consumir o capital em vez da renda do capital. Essa descoberta anuvia por alguns anos o homem maduro e indu-lo a deblaterar contra a brevidade da vida e a impossibilidade de realização de grandes obras. Está ele já no alto da colina, de onde vê, lá no fundo, o fim inevitável – a morte. Até aquele momento não admitia a morte, só pensando nela como um tema académico, de desinteresse para os cofres. Subitamente tudo muda e começa a vê-la de perto, e por mais que se esforce para não descer a colina, há que descê-la. Os seus olhos voltam-se para o passado, para os dias em que tudo era ascensão descuidosa; e compraz-se na companhia dos moços e crianças porque deles haure, passageira e incompletamente embora, um pouco do divino esquecimento da morte.
O Nascimento do Prazer
O prazer nascendo dói tanto no peito que se prefere sentir a habituada dor ao insólito prazer. A alegria verdadeira não tem explicação possível, não tem a possibilidade de ser compreendida – e se parece com o início de uma perdição irrecuperável. Esse fundir-se total é insuportavelmente bom – como se a morte fosse o nosso bem maior e final, só que não é a morte, é a vida incomensurável que chega a se parecer com a grandeza da morte. Deve-se deixar inundar pela alegria aos poucos – pois é a vida nascendo. E quem não tiver força, que antes cubra cada nervo com uma película protetora, com uma película de morte para poder tolerar a vida. Essa película pode consistir em qualquer ato formal protetor, em qualquer silêncio ou em várias palavras sem sentido. Pois o prazer não é de se brincar com ele. Ele é nós.
A Sociabilidade é Proporcional à Vulgaridade
O homem inteligente aspirará, antes de tudo, à ausência de dor, à serenidade, ao sossego e ao ócio, logo, procurará uma vida tranquila, modesta e o menos conflituosa possível; por conseguinte, após travar algum conhecimento com aqueles que chamamos de homens, escolherá o reatraimento e, no caso de um grande espírito, até a solidão. Pois, quanto mais alguém tem em si mesmo, menos precisa do mundo exterior e menos também os outros lhe podem ser úteis. Por isso, a eminência do espírito conduz à insociabilidade. Sim, se a qualidade da sociedade pudesse ser substituída pela quantidade, valeria a pena viver até no grande mundo, mas infelizmente cem néscios empilhados não dão um único homem razoável. Já aquele que está no outro extremo, assim que a necessidade lhe permitir recobrar o ânimo, procurará passatempo e companhia a qualquer preço, e a tudo se acomodará facilmente, de nada fugindo a não ser de si.
Pois é na solidão, onde cada um está entregue a si mesmo, que se mostra o que ele tem em si mesmo. Nela, sob a púrpura, o simplório suspira, carregando o fardo irremovível da sua mísera individualidade, enquanto o mais talentoso povoa e vivifica com os seus pensamentos o ambiente mais ermo.
Aquilo em que se Tem Mais Vaidade é o Corpo
Aquilo em que se tem mais vaidade é o corpo. Mesmo que aleijado, há sempre um pormenor que nos envaidece. Compô-lo. Arranjá-lo. O careca puxa o cabelo desde o cachaço ou do olho do cú para tapar a degradação. O marreco faz peito. O espelho é para todos o grande dialogante. Passa-se a uma vitrina e olha-se de soslaio a ver como se vai. Uma mulher perfeita (e um homem) não inveja o intelectual, o artista. O inverso é que é. Muitas mulheres (e homens) cultivam a excepcionalidade do seu espírito ou engenho por complexo ou vingança. Quando se não tem já vaidade no corpo, está-se no fim. Mas mesmo num leito de morte nos queremos «compostos». «Não me descomponhas» — disse a marquesa de Távora ao carrasco, uns momentos antes de ser decapitada. Tomam-se providências para como se há-de ir no caixão. A degradação do corpo é a última coisa que se aceita. Hoje lavei o carro e vesti um calção para me não molhar. Dei uma vista de olhos ao espelho. Grumos, tumefacções pelas pernas. Não gostei. Não muito tempo. Lembrou-me um certo professor. Tinha a bossa da oratória. E então contava: escrevia um discurso e lia. Parecia-lhe péssimo.
O Elixir do Prazer
Que é, pois, o que se opera na alma, quando se deleita mais com as coisas encontradas ou reavidas que estima, do que se as possuísse sempre? Há, na verdade, muitos outros exemplos que o afirmam. Abundam os testemunhos que nos gritam: -«É assim mesmo!». Triunfa o general vitorioso. Mas não teria alcançado a vitória se não tivesse pelejado e quanto mais grave foi o perigo no combate, tanto maior é o gozo no triunfo. A tempestade arremessa os marinheiros, ameaçando-os com o naufrágio: todos empalidecem com a morte iminente. Mas tranquilizam-se o céu e o mar, e todos exultam muito, porque muito temeram. Está doente um amigo e o seu pulso acusa perigo. Todos os que o desejam ver curado sentem-se simultaneamente doentes na alma. Melhora. Ainda não recuperou as forças antigas e já reina tal júbilo qual não existia antes, quando se achava são e forte.
Até os próprios prazeres da vida humana não se apossam do coração do homem só por desgraças inesperadas e fortuitas, mas por moléstias previstas e voluntariamente procuradas. Não há prazer nenhum no comer e beber, se o incómodo da fome e da sede o não precede. Por isso, os ébrios costumam tomar certos alimentos salgados,
No Mundo não Tem Boa Sorte Senão quem Tem por Boa a que Tem
Uma cousa sabei de mim: que queria antes o bem do mal, que o mal do bem; porque muito mais se sente o porvir, que o passado; e a morte, até matar, mata. Não sei se sereis marca de voar tão alto; porque, para tomar a palha a esta matéria, são necessárias asas de nebri. Mas vós sois homem de prol, e desculpa-me a conta em que vos tenho. E a que de mim vos sei dar, é que:
Esperança me despede,
tristeza não me falece,
e tudo o mais m’aborrece.
Já que mais não mereceu
minha estrela,
só a tristeza conheço,
pois que para mim nasceu
e eu para ela.No mundo não tem boa sorte senão quem tem por boa a que tem. E daqui me vem contentar-me, de triste. Mas olhai de que maneira:
Vivo assi ao revés,
tomando por certa vida
certa morte,
com que folgo, em que me pês,
pois minha sorte é servida
de tal sorte.Uma cousa sabei: que o mal, ainda que às vezes o vejais louvar, não há quem o louve com a boca que o não taxe com o coração:
Ajudai-me a sofrer
vida tão sem sofrimento,