O Perdão e a Promessa
Se não fôssemos perdoados, eximidos das consequências daquilo que fizemos, a nossa capacidade de agir ficaria por assim dizer limitada a um único acto do qual jamais nos recuperaríamos; seríamos para sempre as vítimas das suas consequências, à semelhança do aprendiz de feiticeiro que não dispunha da fórmula mágica para desfazer o feitiço. Se não nos obrigássemos a cumprir as nossas promessas não seríamos capazes de conservar a nossa identidade; estaríamos condenados a errar desamparados e desnorteados nas trevas do coração de cada homem, enredados nas suas contradições e equívocos – trevas que só a luz derramada na esfera pública pela presença de outros que confirmam a identidade entre o que promete e o que cumpre poderia dissipar. Ambas as faculdades, portanto, dependem da pluralidade; na solidão e no isolamento, o perdão e a promessa não chegam a ter realidade: são no máximo um papel que a pessoa encena para si mesma.
Textos sobre Pessoas
853 resultadosEstabelecer Princípios
Existem pessoas que têm propensão para modelar a sua vida de acordo com princípios definidos, – e outras que gostam de forjar os seus princípios de acordo com os acasos do seu destino pessoal. Em ambos os casos trata-se apenas de experimentar tornar a vida o mais cómoda possível, quando o importante é, apesar de tudo, enfrentar cada acontecimento, desembaraçado de qualquer preconceito e prevenção, mesmo correndo o risco de um constante extravio.
Os Mesmos Erros
Mesmo um exame superficial da história revela que nós, seres humanos, temos uma triste tendência para cometer os mesmos erros repetidas vezes. Temos medo dos desconhecidos ou de qualquer pessoa que seja um pouco diferente de nós. Quando ficamos assustados, começamos a ser agressivos para as pessoas que nos rodeiam. Temos botões de fácil acesso que, quando carregamos neles, libertam emoções poderosas. Podemos ser manipulados até extremos de insensatez por políticos espertos. Dêem-nos o tipo de chefe certo e, tal como o mais sugestionável paciente do terapeuta pela hipnose, faremos de bom grado quase tudo o que ele quer – mesmo coisas que sabemos serem erradas.
O Esplendor da Heterossexualidade, pelo Desejo
Somos um objecto, na paixão, totalmente submissos, sem poder prever os golpes que sofremos; aí reside a grandeza, a loucura, o assombro da paixão.
Para mim, o desejo só pode ter lugar entre o masculino e o feminino, entre sexos diferentes.
O outro desejo é um autodesejo, é, para mim, como que o prolongamento da prática masturbatória do homem ou da mulher. O esplendor da paixão, a sua imensidade, o seu sofrimento, o seu inferno, reside no facto de só poder verificar-se entre géneros irreconciliáveis, o masculino e o feminino. Tanto a paixão como o desejo.Os casais homossexuais são muito mais estáveis do que os casais heterossexuais, porque na homosexualidade há uma prática simples e cómoda do desejo. A prática heterossexual é ainda selvagem, é ainda a floresta do desejo.
Na prática homossexual não creio que exista esse fenómeno de posse que existe na heterossexual. Na prática homossexual existe uma espécie de intermutabilidade do prazer, as pessoas nunca pertencem na homossexualidade como pertencem na heterossexualidade.
É um inferno não se poder escapar ao desejo de uma pessoa, é a isso que eu chamo, quando a mim, o esplendor da heterossexualidade.
Comparação de Verdades
A verdade, esteja em que pessoa estiver, não se apaga por comparação com outra verdade e, qualquer diferença que possa parecer haver entre duas pessoas, o que é verdade numa não apaga de modo algum o que é verdade na outra. Podem ter mais ou menos adeptos e ser mais ou menos brilhantes, mas são sempre iguais pela sua verdade, que nunca é mais verdadeira nos grandes do que na arraia-miúda. A arte da guerra está mais espalhada do que a poesia, mas o poeta e o conquistador podem comparar-se um ao outro, porque são verdadeiramente o que são, tal como o legislador, o pintor, etc.
(…) Uma pessoa pode ter várias verdades e outra pode não ter nenhuma. O que tem várias é mais apreciado e brilha mais nos círculos em que o outro não brilha, mas, na altura em que tanto um como outro são verdadeiros, brilham da mesma maneira.
Temos de Ser Mais Humanos
Abram os olhos. Somos umas bestas. No mau sentido. Somos primitivos. Somos primários. Por nossa causa corre um oceano de sangue todos os dias. Não é auscultando todos os nossos instintos ou encorajando a nossa natureza biológica a manifestar-se que conseguiremos afastar-nos da crueza da nossa condição. É lendo Platão. E construindo pontes suspensas. É tendo insónias. É desenvolvendo paranóias, conceitos filosóficos, poemas, desequilíbrios neuroquímicos insanáveis, frisos de portas, birras de amor, grafismos, sistemas políticos, receitas de bacalhau, pormenores.
É engraçado como cada época se foi considerando «de charneira» ao longo da história. A pretensão de se ser definitivo, a arrogância de ser «o último», a vaidade de se ser futuro é, há milénios, a mesmíssima cantiga.
Temos de ser mais humanos. Reconhecer que somos as bestas que somos e arrependermo-nos disso. Temos de nos reduzir à nossa miserável insensibilidade, à pobreza dos nossos meios de entendimento e explicação, à brutalidade imperdoável dos nossos actos. O nosso pé foge-nos para o chinelo porque ainda não se acostumou a prender-se aos troncos das árvores, quanto mais habituar-se a usar sapato.A única atitude verdadeiramente civilizada é a fraqueza, a curiosidade, o desespero, a experiência, o amor desinteressado,
Afinidades Eternas
Não é possível cortar para sempre com tudo o que nos liga a pessoas que pensam verdadeiramente como nós. Acabamos sempre por voltar a estar de acordo nalgum ponto. Com os que pensam de maneira deveras contrária à nossa é baldado o esforço para manter algum acordo, porque acaba sempre por se desfazer.
Tu És uma Mulher Rara
Minha Anuska, onde foste buscar a ideia de que és uma mulher como outra qualquer? Tu és uma mulher rara, e, além do mais, a melhor de todas as mulheres. Tu própria não sonhas as qualidades que tens. Não só diriges a casa e as minhas coisas, como a nós todos, caprichosos e enervantes, a começar por mim e a acabar no Aléxis. Nos meus trabalhos desces ao mais pequeno pormenor, não dormes o suficiente, ocupada com a venda dos meus livros e com a administração do jornal. Contudo, conseguimos apenas economizar alguns copeques – quanto aos rublos, onde estão eles?
Mas a teu lado nada disso tem importância. Devias ser coroada rainha, e teres um reino para governar: juro-te que o farias melhor que ninguém. Não te falta inteligência, bom senso, sentido da ordem e, até… coração. Perguntas como posso eu amar uma mulher tão velha e feia como tu Aí, sim, mentes. Para mim és um encanto, não tens igual, e qualquer homem de sentimentos e bom gosto to dirá, se atentar em ti. Por isso é que às vezes sinto ciúmes. Tu própria nem sabes a maravilha que são os teus olhos, o sorriso e a animação que pões na conversa.
Com Quantos Tenho que Casar?
Querida íbis:
Desculpa o papel impróprio em que te escrevo; é o único que encontrei na pasta, e aqui no Café Arcada não têm papel. Mas não te importas, não?
Acabo de receber a tua carta com o postal, que acho muito engraçado.Ontem foi — não é verdade? — uma coincidência engraçadíssima o facto de eu e minha irmã virmos para a Baixa exactamente ao mesmo tempo que tu. O que não teve graça foi tu desapareceres, apesar dos sinais que eu te fiz. Eu fui apenas deixar minha irmã ao Avda. Palace, para ela ir fazer umas compras e dar um passeio com a mãe e a irmã do rapaz belga que aí está. Eu saí quasi imediatamente, e esperava encontrar-te ali próximo para falarmos. Não quiseste. Tanta pressa tiveste de ir para casa de tua irmã!
E, ainda por cima, quando saí do hotel, vejo a janela de casa de tua irmã armada em camarote (com cadeiras suplementares) para o espectáculo de me ver passar! Claro está que, tendo visto isto, segui o meu caminho como se ali não estivesse ninguém. Quando eu pretendesse ser palhaço (para o que, aliás,
A Arte da Conversação
O que faz com que poucas pessoas sejam agradáveis na conversação é que cada uma pensa mais no que tem a intenção de dizer do que naquilo que as outras dizem, e que não se escuta às demais quando se tem vontade de falar.
Para agradar aos outros é preciso falar daquilo de que eles gostam e que os interessa, evitar as discussões sobre coisas indiferentes, formular-lhes raramente perguntas e não os deixar crer que se pretende ter mais razão que eles.
Evitemos sobretudo falar frequentemente de nós mesmos e de nos darmos como exemplo. Nada é mais desagradável do que uma pessoa que se cita a si mesma a cada passo.
A Inveja Passeia pelas Ruas
O homem que não tiver virtude própria sempre invejará a virtude dos outros. A razão disso é que a alma humana nutre-se do bem próprio ou do mal alheio, e aquela que carece de um, aspira a obter o outro, e aquele que está longe de esperar obter méritos de outrem, procurará nivelar-se com ele, destruindo-lhe a fortuna.
As pessoas que são curiosas e indiscretas são geralmente invejosas; porque conhecer muito a respeito da vida alheia não pode resultar do que concerne os próprios negócios. Isso deve provir, portanto, de tomar uma espécie de prazer teatral a admirar a fortuna dos outros. Aliás, quem não se ocupa senão dos próprios negócios não encontra matéria para invejas. Porque a inveja é uma paixão calaceira, isto é, passeia pelas ruas e não fica em casa.
Ser Amado
Às vezes, é preciso conseguirmos o que não se consegue: parar de amar por um momento, para se ser amado por quem se ama.
Seria bom podermos parar para nos sentirmos amados sem ser de volta, na confusão de duas pessoas a amarem-se. Se não amássemos quem amássemos, talvez pudéssemos receber o amor dela e saber como era.
Mas não é provável. Se não a amássemos, não quereríamos saber. Ser amado seria um pedido, uma intromissão, um desconforto à espera de uma resposta nossa, de uma desilusão, de uma insensibilidade àquele amor que não queremos para nada, que nos apanhou e embaraça. Se calhar, na vida e na morte de quem ama e quem se ama, só se sente o não ser amado e o já não ser amado e, quando muito, o já ter sido amado. A ausência e a tristeza, por muito grandes que sejam, não são tão grandes como a presença, a alegria e a angústia do amor vivo, que ocupa os corpos todos e as almas todas.
É pena que enquanto se é amado por alguém nunca pareça que se é. Amado, de certeza, incondicionalmente, como é amado – também sem saber –
Opiniões Discordantes
. É preciso repetir de vez em quando a nossa profissão de fé e exprimir em voz alta aquilo que valorizamos e aquilo que condenamos. Os nossos adversários também não deixam de o fazer.
. Os adversários acreditam que nos refutam ao repetir as suas opiniões sem dar atenção à nossa. . Os que contradizem e entram em disputa deviam pensar de vez em quando que nem todas as linguagens são entendíveis por toda a gente.
. Quando alguém afirma que conseguiu contradizer-me não pensa que se limitou a contrapor uma visão das coisas à minha, e que, portanto, com isso nada conseguiu de facto. Um terceiro tem o direito de lhe fazer o mesmo, e assim por diante, até ao infinito.
. Em Nova Iorque há noventa confissões cristãs diferentes e cada uma delas tem a sua maneira própria de adorar a Deus e ao Senhor Jesus, sem por isso se confundirem umas com as outras. Devíamos levar a cabo qualquer coisa de semelhante na investigação relativa à Natureza – e, aliás, em toda a investigação. Pois, que significado tem toda a gente falar de liberalidade e cada um pretender limitar os outros segundo a sua própria maneira de pensar e de se exprimir?
O Tempo Vale Muito Mais do que o Dinheiro
Perder tempo não é como gastar dinheiro. Se o tempo fosse dinheiro, o dinheiro seria tempo.
Não é. O tempo vale muito mais do que o dinheiro. Quando morremos, acaba-se o tempo que tivemos. Quando morremos, o que mais subsiste e insiste é a quantidade de coisas que continuam a existir, apesar de nós.
O nosso tempo de vida é a nossa única fortuna. Temos o tempo que temos. Depois de ter acabado o nosso tempo, não conseguimos comprar mais. Quando morreu o meu pai, foi-se com ele todo o tempo que ele tinha para passar connosco. As coisas dele ficaram para trás. Sobreviveram. Eram objectos. Alguns tinham valor por fazer lembrar o tempo que passaram com ele – a régua de arquitecto naval, os relógios – quando ele tinha tempo.
As pessoas dizem «time is money» para apressar quem trabalha. A única maneira de comprar tempo é de precisar de menos dinheiro para viver, para poder passar menos tempo a ganhá-lo. E ficar com mais tempo para trabalhar no que dá mais gosto e para ter o luxo indispensável de poder perder tempo, a fazer ninharias e a ser-se indolente.
A ideologia dominante de aproveitar bem o tempo impede-nos de perder esses tempos.
Ser Religioso com Vantagem
Há pessoas sóbrias e industriosas, em quem a religião está bordada como uma ourela de humanidade superior: essas fazem muito bem em continuar a ser religiosas, isso embeleza-as. Todas as pessoas, que não entendem de um qualquer ofício relacionado com armas – incluindo nas armas a boca e a pena – tornam-se servis: para essa gente, a religião cristã é muito útil, pois o servilismo toma, assim, a aparência de uma virtude cristã e fica espantosamente embelezado. Pessoas, a quem a sua vida quotidiana parece demasiado vazia e monótona, tornam-se facilmente religiosas: isso é compreensível e perdoável; simplesmente, elas não têm direito de exigir religiosidade daqueles para quem a vida quotidiana não decorre vazia e monótona.
A Falsa Polidez
As ofensas, que na verdade consistem sempre na exteriorização da falta de consideração, colocar-nos-iam bem menos fora de nós mesmos se, por um lado, não nutríssimos uma representação tão exagerada do nosso elevado valor e da nossa dignidade – portanto, um orgulho desmesurado – e, por outro, se estivéssemos bastante cientes daquilo que, via de regra, no fundo do coração, cada um crê e pensa dos outros.
Que contraste flagrante entre a susceptibilidade da maioria das pessoas à mais ténue alusão de censura a seu respeito, e aquilo que ouviriam de si, caso surpreendessem as conversas dos seus conhecidos! Deveríamos, antes, ter em mente que a polidez habitual é apenas uma máscara burlesca; desse modo, não gritaríamos tão alto todas as vezes que esta fosse deslocada ou retirada por um breve instante. . Decerto, assim o fazendo, desempenha uma figura bastante feia, como a maioria dos homens nesse estado.Arthur Schopenhauer, in ‘Aforismos para a Sabedoria de Vida’
A Vida Acontece Agora
Identificar-se com a mente é ser aprisionado no tempo: a compulsão de viver quase exclusivamente das recordações e por antecipação. Esta situação gera uma preocupação interminável com o passado e com o futuro e uma falta de vontade de dignificar e reconhecer o momento presente e permitir que este seja. A compulsão nasce porque o passado lhe dá uma identidade e o futuro contém a promessa de salvação, de realização sob qualquer forma. Ambos são ilusões.
Quanto mais a pessoa se concentra no tempo (passado e futuro), mais sente falta do Agora, a coisa mais preciosa que existe. Porque é o Agora a coisa mais preciosa que existe? Primeiro, porque é a única. É tudo o que existe. O presente eterno é o espaço no âmbito do qual a sua vida se desenrola, o único fator que permanece constante. A vida acontece agora. Nunca houve uma altura em que a sua vida não fosse no agora, nem nunca haverá.
Em segundo lugar, o Agora é o único ponto que pode levar o leitor além dos limites circunscritos da mente. É o seu único ponto de acesso ao mundo eterno e sem forma do Ser.Alguma vez o leitor experienciou,
Conselhos de Vida
1 – Faça o menos possível de confidências. Melhor não as fazer, mas, se fizer alguma, faça com que sejam falsas ou vagas.
2 – Sonhe tão pouco quanto possível, excepto quando o objectivo directo do sonho seja um poema ou produto literário. Estude e trabalhe.
3 – Tente e seja tão sóbrio quanto possível, antecipando a sobriedade do corpo com a sobriedade do espírito.
4 – Seja agradável apenas para agradar, e não para abrir a sua mente ou discutir abertamente com aqueles que estão presos à vida interior do espírito.
5 – Cultive a concentração, tempere a vontade, torne-se uma força ao pensar de forma tão pessoal quanto possível, que na realidade você é uma força.
6 – Considere quão poucos são os amigos reais que tem, porque poucas pessoas estão aptas a serem amigas de alguém. Tente seduzir pelo conteúdo do seu silêncio.
7 – Aprenda a ser expedito nas pequenas coisas, nas coisas usuais da vida mundana, da vida em casa, de maneira que elas não o afastem de você.
8 – Organize a sua vida como um trabalho literário, tornando-a tão única quanto possível.
O Principal Sinal de Humanidade
O principal sinal de humanidade é a maneira como os seres humanos tratam os animais. O ser realmente humano seria incapaz de tratar mal um animal. O ser realmente sensível e pensante, carinhoso por sentimento e prestável por sistema, teria a delicadeza da superioridade. Há-de reparar-se que as pessoas e as civilizações mais brutas são as que mais maltratam os animais. E preciso um mínimo de humanidade para se ter pena dos bichos. Os bichos não são gente, mas não têm culpa de não ser. Nós temos.
Por enquanto ainda tratamos os animais como os animais que somos. Tratamo-los como eles, caso mandassem nos seres humanos, nos tratariam a nós. Só que pior. Matamo-los, comemo-los, batemos-lhe, abandonamo-los. Tratamo-los como iguais porque ainda somos iguais a eles. Os animais tratam mal os animais diferentes deles. No dia em que formos superiores cuidaremos deles como deve ser.
A Colectividade como Indivíduo Imortal
A colectividade, apesar de ser o conjunto de todos os seus indivíduos, funciona exactamente como um indivíduo a mais. Assim como se no mundo houvesse toda a gente que existe e mais uma pessoa: esta pessoa seria exactamente todos num só. A colectividade é também um indivíduo, um indivíduo como qualquer outro, mas é o indivíduo colectivo, na verdade colectivo e indivíduo. Com a vantagem sobre qualquer outro de não estar sujeito, como nós, às vacilações de um organismo mortal. A colectividade é o indivíduo imortal. Feito da mesma massa humana que qualquer de nós, os indivíduos mortais.