O Homem e a Máquina
À técnica seria absurdo que a recusássemos, lhe recusássemos a espantosa facilitação da vida, por mais que a essa vida ela perturbe – como aos seus doutrinadores. Uma máquina é pura, desde a inocência com que se nos revela, ou seja precisamente a exterioridade em que se nos dá. Mas uma inocência é uma abertura à realização do que o não é. O destino de uma máquina tem o destino que lhe dermos, e um dos piores é o finalizá-la nela própria. Assim e para lá da criação do seu próprio espaço, por uma máquina, da alteração que a sua própria existência em nós promove, todo o problema se decide no lugar-comum desta alternativa: remeter a máquina ao homem ou degradar o homem à máquina.
Textos sobre Próprio
1151 resultadosO Caminho para o Sucesso é Incompreendido pelos Outros
Se desejas ser bem sucedido, resigna-te, caro, face às coisas exteriores, por passar por insensato ou mesmo por tolo. Mesmo que saibas, não mostres qualquer saber; e se alguns te consideram alguém, desafia-te a ti próprio e desconfia de ti. Que saibas sempre, na verdade, que não é fácil de preservar a vontade em conformidade com a natureza, pois que, simultaneamente, sempre nos inquietamos com as solicitações do exterior.
Ora que fazer? Só uma regra necessária se impõe: quando nos ocupamos da vontade tendo a natureza por fundo (e nossa íntima intenção) só a uma coisa nos podemos obrigar – evitar qualquer desvio daquele nosso primeiro propósito.
O Subjectivo é Objectivo, e o Objectivo é Subjectivo
Assaz difícil é decidir o que seja objectivamente a verdade, mas, no trato com os homens, não há que se deixar aterrorizar por isso. Existem critérios que para o primeiro são suficientes. Um dos mais seguros consiste em objectar a alguém que uma asserção sua é “demasiado subjectiva”. Se se utilizar, e com aquela indignação em que ressoa a furiosa harmonia de todas as pessoas sensatas, então há motivo para se ficar alguns instantes em paz consigo. Os conceitos do subjectivo e objectivo inverteram-se por completo. Diz-se objectiva a parte incontroversa do fenómeno a sua efígie inquestionavelmente aceite, a fachada composta de dados classificados, portanto, o subjectivo; e denomina-se subjectivo o que tal desmorona, acede à experiência específica da coisa, se livra das opiniões convencionais a seu respeito e instaura a relação com o objecto em substituição da decisão maioritária daqueles que nem sequer chegam a intuí-lo, e menos ainda a pensá-lo – logo, o objectivo.
A futilidade da objecção formal da relatividade subjectiva patenteia-se no seu próprio terreno, o dos juízos estéticos. Quem alguma vez, pela força da sua precisa reacção em face da seriedade da disciplina de uma obra artística, se submete à sua lei formal imanente,
Escolher a Felicidade
Nem paz nem felicidade se recebem dos outros nem aos outros se dão. Está-se aqui tão sozinho como no nascer e no morrer; como de um modo geral no viver, em que a única companhia possível é a daquele Deus a um tempo imanente e transcendente e a dos que neles estão, a de seus santos. Felicidade ou paz nós as construímos ou destruímos: aqui o nosso livre-arbítrio supera a fatalidade do mundo físico e do mundo do proceder e toda a experiência que vamos fazendo, negativa mesmo para todos, a podemos transformar em positiva. Para o fazermos, se exige pouco, mas um pouco que é na realidade extremamente difícil e que não atingiremos nunca por nossas próprias forças: exige-se de nós, primacialmente, a humildade; a gratidão pelo que vem, como a de um ginasta pelo seu aparelho de exercício; a firmeza e a serenidade do capitão de navio em sua ponte, sabendo que o ata ao leme não a vontade de um rei, como nos Descobrimentos, mas a vontade de um rei de reis, revelada num servidor de servidores; finalmente, o entregar-se como uma criança a quem sabe o caminho. De qualquer forma, no fundo de tudo, o que há é um acto de decisão individual,
As Desvantagens das Nossas Paixões
Quanto mais um homem se emaranha numa paixão, tanto mais os acontecimentos, em si indiferentes, se traduzem para ele em dor, enganando justamente, pela sua indiferença, a avidez tensa em que esse homem se encontra. Um ambicioso sofrerá porque uma pessoa célebre não lhe reconheceu importância; essa mesma pessoa célebre tentará insuflar escrúpulos de tentação a algum evangélico de quem procurará a conversação; escrúpulos que, por sua vez, irritarão um individualista, que será atingido por eles, malgrado seu. A inveja, ambição ruminada, está na base de todas as angústias que sofremos. Não toleramos que uma coisa aconteça indiferentemente, por acaso, escapando à nossa chancela.
Qualquer género de fervor acarreta consigo a tendência para sentir uma lei preestabelecida na vida, uma lei que castiga os que abusam ou descuram esse mesmo fervor. Um estado de paixão – mesmo que fosse a embriaguez da absoluta autodeterminação – organiza e anima de tal forma o Universo que toda a desgraça, parece, depois, provocada por uma ruptura do equilíbrio vital dessa paixão difusa, que, assim, se defende como um corpo vivo. E, segundo o temperamento de cada um, teremos a sensação de que abusámos, ou de que fomos inferiores; de qualquer forma, sentir-nos-emos organicamente punidos pela própria lei da paixão e do Universo.
Os Comunistas
… Passaram bastantes anos desde que ingressei no Partido… Estou contente… Os comunistas constituem uma boa família… Têm a pele curtida e o coração valoroso… Por todo o lado recebem pauladas… Pauladas exclusivamente para eles… Vivam os espiritistas, os monárquicos, os aberrantes, os criminosos de vários graus… Viva a filosofia com fumo mas sem esqueletos… Viva o cão que ladra e que morde, vivam os astrólogos libidinosos, viva a pornografia, viva o cinismo, viva o camarão, viva toda a gente menos os comunistas… Vivam os cintos de castidade, vivam os conservadores que não lavam os pés ideológicos há quinhentos anos… Vivam os piolhos das populações miseráveis, viva a força comum gratuita, viva o anarco-capitalismo, viva Rilke, viva André Gide com o seu coribantismo, viva qualquer misticismo… Tudo está bem… Todos são heróicos… Todos os jornais devem publicar-se… Todos devem publicar-se, menos os comunistas… Todos os políticos devem entrar em São Domingos sem algemas… Todos devem festejar a morte do sanguinário Trujillo, menos os que mais duramente o combateram… Viva o Carnaval, os derradeiros dias do Carnaval… Há disfarces para todos… Disfarces de idealistas cristãos, disfarces de extrema-esquerda, disfarces de damas beneficentes e de matronas caritativas… Mas, cuidado, não deixem entrar os comunistas…
O Orgulho Nacional
O tipo mais barato de orgulho é o orgulho nacional. Ele trai naquele que por ele é possuído a ausência de qualidades individuais, das quais ele se poderia orgulhar; caso contrário, não recorreria àquelas que compartilha com tantos milhões. Quem possui méritos pessoais distintos reconhecerá, antes, de modo mais claro, os defeitos da sua própria nação, pois sempre os tem diante dos olhos. Mas todo o pobre-diabo, que não tem nada no mundo de que se possa orgulhar, agarra-se ao último recurso, o de se orgulhar com a nação à qual pertence; isso faz com que se sinta recuperado e, na sua gratidão, pronto para defender com unhas e dentes todos os defeitos e desvarios próprios à tal nação. Desse modo, de cinquenta ingleses, por exemplo, haverá no máximo um que concordará connosco quando falarmos, com justo desprezo, da beatice estúpida e degradante da sua nação; mas esta única excepção será com certeza um homem de cabeça.
Uma Vida Exterior Simples e Modesta Só Pode Fazer Bem
Uma vida exterior simples e modesta só pode fazer bem, tanto ao corpo como ao espírito. Não creio de modo algum na liberdade do ser humano, no sentido filosófico. Cada um age não só sob pressão exterior como também de acordo com a sua necessidade interior. O pensamento de Schopenhauer: «O homem pode, na verdade, fazer o que quiser, mas não pode querer o que quer», impressionou-me vivamente desde a juventude e tem sido para mim um consolo constante e uma fonte inesgotável de tolerância. Esse conhecimento suaviza benéficamente o sentimento de responsabilidade levemente inibitório e faz com que não tomemos demasiado a sério, para nós e para os outros, uma concepção de vida que justifica de modo especial a existência do humor.
Do ponto de vista objectivo, pareceu-me sempre desprovido de senso querer-se indagar sobre o sentido ou a finalidade da própria existência ou da existência da criação. E, no entanto, cada homem tem certos ideais, que o orientam nos seus esforços e juízos. Neste sentido o bem-estar e a felicidade nunca me pareceram um fim em si (chamo a esta base ética o ideal da vara de porcos). Os ideais que me iluminavam e me encheram incessantemente de alegre coragem de viver foram sempre a bondade,
A Amizade Exercita-se
É um erro desejar ser compreendido antes de se ser elucidado por si mesmo a seus próprios olhos. É procurar prazeres na amizade, e não méritos. É qualquer coisa de mais corruptor ainda do que o amor. Venderias a tua alma por amor.
Aprende a repelir a amizade, ou melhor, o sonho da amizade. Desejar a amizade é um grande erro. A amizade deve ser uma alegria gratuita como as que a arte ou a vida oferecem. É preciso recusá-la para se ser digno de a receber: ela é da categoria da graça («Meu Deus, afastai-vos de mim…»). É dessas coisas que são dadas por acréscimo. Toda a ilusão de amizade merece ser destruída. Não é por acaso que nunca foste amado… Desejar escapar à solidão é uma cobardia. A amizade não se procura, não se imagina, não se deseja; exercita-se (é uma virtude). Abolir toda esta margem de sentimento, impura e enevoada. Schluss!
Ou melhor (pois não é necessário desbastar-se a si mesmo rigorosamente), tudo o que, na amizade, não passe por alterações efectivas deve passar por pensamentos ponderados. É absolutamente inútil privar-se da virtude inspiradora da amizade. O que deve ser severamente proibido, é sonhar com os prazeres do sentimento.
O homem deve tratar todas as criaturas do mundo tal como ele próprio gostaria de ser tratado.
O Constante Desejo de Mudança Cega o Progresso
Penso, baseando-me em todos os dados que de há um ano para cá nos saltam aos olhos, que se pode afirmar que qualquer progresso deve acarretar necessariamente não um avanço ainda maior mas, ao fim e ao cabo, a negação do progresso e o retorno ao ponto de partida. A história do género humano prova-o. No entanto, a confiança cega desta geração, e da que a precedeu, nas ideias modernas, no advento de não sei que era da humanidade que deveria marcar uma profunda transformação – mas que, no meu entender, para influenciar o destino de cada um deveria antes de mais afectá-lo na própria natureza do homem -, esta confiança no futuro, que nada nos séculos que nos precederam justifica, constitui seguramente a única garantia desses bens futuros, dessas revoluções tão desejadas pela vontade dos homens.
Não será evidente que o progresso, ou seja a marcha progressiva das coisas – tanto para o bem como para o mal -, acabou, hoje, por conduzir a sociedade à beira de um abismo, onde ela poderá facilmente vir a cair para dar lugar à mais completa barbárie? E a razão disso, a única razão para que isso suceda, não residirá nessa lei que neste mundo impõe a todas as outras: isto é,
Educação para a Independência do Pensamento
Não basta preparar o homem para o domínio de uma especialidade qualquer. Passará a ser então uma espécie de máquina utilizável, mas não uma personalidade perfeita. O que importa é que venha a ter um sentido atento para o que for digno de esforço, e que for belo e moralmente bom. De contrário, virá a parecer-se mais com um cão amestrado do que com um ser harmonicamente desenvolvido, pois só tem os conhecimentos da sua especialização. Deve aprender a compreender os motivos dos homens, as suas ilusões e as suas paixões, para tomar uma atitude perante cada um dos seus semelhantes e perante a comunidade.
Estes valores são transmitidos à jovem geração pelo contacto pessoal com os professores, e não — ou pelos menos não primordialmente — pelos livros de ensino. São os professores, antes de mais nada, que desenvolvem e conservam a cultura. São ainda esses valores que tenho em mente, quando recomendo, como algo de importante, as «humanidades» e não o mero tecnicismo árido, no campo histórico e filosófico.
A importância dada ao sistema de competição e a especialização precoce, sob pretexto da utilidade imediata, é o que mata o espírito de que depende toda a actividade cultural e até mesmo o próprio florescimento das ciências de especialização.
Como a Aparência se Torna Ser
O actor acaba por não deixar de pensar na impressão causada pela sua pessoa e no efeito cénico total, até por ocasião da mais profunda mágoa, por exemplo, mesmo no enterro do seu filho; chorará ante o seu próprio desgosto e respectivas exteriorizações como sendo o seu próprio espectador. O hipócrita, que desempenha sempre um mesmo papel, acaba por deixar de ser hipócrita; por exemplo, sacerdotes, que, enquanto homens novos, são habitualmente, de modo consciente ou inconsciente, hipócritas, por fim tornam-se naturais e são, então, realmente, sem qualquer simulação, mesmo sacerdotes; ou se o pai não consegue lá chegar, então, talvez, o filho, que se serve do avanço do pai e herda a sua habituação. Se uma pessoa quiser, durante muito tempo e persistentemente, parecer alguma coisa, consegue-o pois acaba por se lhe tornar difícil ser qualquer outra coisa. A profissão de quase toda a gente, até do artista, começa com hipocrisia, com uma imitação a partir do exterior, com um copiar de aquilo que é eficaz. Aquele, que traz sempre a máscara das expressões fisionómicas amistosas, tem de acabar por adquirir poder sobre as disposições anímicas benévolas, sem as quais não é possível forçar a expressão da afabilidade –
O Homem Perfeito
A virtude subdivide-se em quatro aspectos: refrear os desejos, dominar o medo, tomar as decisões adequadas, dar a cada um o que lhe é devido. Concebemos assim as noções de temperança, de coragem, de prudência e de justiça, cada qual comportando os seus deveres específicos. A partir de quê, então, concebemos nós a virtude? O que no-la revela é a ordem por ela própria estabelecida, o decoro, a firmeza de princípios, a total harmonia de todos os seus actos, a grandeza que a eleva acima de todas as contingências. A partir daqui concebemos o ideal de uma vida feliz, fluindo segundo um curso inalterável, com total domínio sobre si mesma. E como é que este ideal aparece aos nossos olhos? Vou dizer-te.
O homem perfeito, possuidor da virtude, nunca se queixa da fortuna, nunca aceita os acontecimentos de mau humor, pelo contrário, convicto de ser um cidadão do universo, um soldado pronto a tudo, aceita as dificuldades como uma missão que lhes é confiada. Não se revolta ante as desgraças como se elas fossem um mal originado pelo azar, mas como uma tarefa de que ele é encarregado. «Suceda o que suceder», — diz ele — «o caso é comigo;
Porquê Confiar em Si Mesmo?
A confiança só será possível se primeiro tiver confiança em si próprio. E isto deve começar por acontecer dentro de si. Se tiver confiança em si próprio, poderá ter confiança em mim, poderá ter confiança nas pessoas, poderá ter confiança na existência. Mas, se não tiver confiança em si próprio, então nunca mais será possível ter confiança em mais ninguém. E a sociedade corta a confiança pela raiz. Não permite que você confie em si próprio. Ensina-lhe todo o tipo de confiança – confiança nos pais, confiança na Igreja, confiança no Estado, confiança em Deus, ad infinitum. Mas a confiança básica é completamente destruída. E depois qualquer outra confiança será uma impostura, estará destinada a ser uma impostura. E então qualquer outra confiança não passará de meras flores de plástico. Não há em si raízes verdadeiras que lhe permitam fazer nascer flores verdadeiras.
A sociedade faz isso deliberadamente, de propósito, porque um homem que confie em si próprio é perigoso para a sociedade – uma sociedade que depende da escravidão, uma sociedade que investiu demasiadamente na escravidão. Um homem que confie em si próprio é um homem independente. É impossível fazer previsões a seu respeito, ele movimentar-se-á conforme quiser.
O Tipo de Homem que Eu Sou
Agora é necessário que eu deva dizer que tipo de homem sou. O meu nome não importa, nem qualquer outro pormenor exterior particular acerca de mim. Do meu carácter alguma coisa deve ser dita.
Toda a constituição do meu espírito é de hesitação e dúvida. Nada é ou pode ser positivo para mim, todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas, uma incerteza para mim próprio. Tudo para mim é incoerência e mudança. Tudo é mistério e tudo é significado. Todas as coisas são «desconhecidos» simbólicos do Desconhecido. Consequentemente horror, mistério, medo supra-inteligente.
Pelas minhas próprias tendências naturais, pelo enquadramento da minha juventude, pela influência dos estudos realizados sob o impulso delas (dessas mesmas tendências), por tudo isso eu sou das espécies internas de caráter, auto-centrado, mudo, não auto-suficiente mas auto-perdido. Toda a minha vida tem sido de passividade e sonho. Todo o meu carácter consiste no ódio, no horror de, na incapacidade que permeia tudo o que me é, fisicamente e mentalmente, por actos decisivos, por pensamentos definidos. Eu nunca tive uma resolução nascida de uma auto-determinação, nunca uma traição externa de uma vontade consciente. Nenhum dos meus escritos foi terminado;
Posse Cega
Afligir-se com o que se perdeu e não se rejubilar com o que foi salvo é necedade; só uma criança faria berreiro e atiraria fora o restante dos seus brinquedos se um lhe fosse tomado. Assim procedemos nós, quando a Fortuna nos é adversa num particular: tomamos o resto improfícuo com chorar e lamentarmo-nos.
– Que é que possuímos? – pode-se perguntar.
Que é que não possuímos? Este homem uma reputação, esse uma família, aquele uma esposa, aquele outro um amigo. No seu leito de morte, Antipater de Tarso fez um inventário das boas coisas que lhe haviam sucedido na vida e nele incluiu, mesmo, uma viagem feliz, que fizera de Cilícia a Atenas. As coisas simples não devem ser negligenciadas, mas levadas em conta. Devemo-nos sentir gratos por estarmos vivos, bem, e por nos ser dado ver o sol; por não haver guerra nem revolução; por a terra e o mar estarem ao dispor de quem deseje plantar ou velejar; por nos ser consentido escolher entre falar e agir ou ficar quietos, em paz, gozando do nosso repouso.
A presença destas bençãos aumentará ainda mais o nosso contentamento se imaginarmos como seria se não estivessem presentes;
A Juventude e a Literatura
Os jovens são, geralmente, melhores juízes das obras destinadas a estimular sentimentos e imagens do que os homens maduros ou velhos. Mas por outro lado, vê-se que os jovens que não são educados para a leitura procuram nela um prazer mais do que humano, infinito, e de características absurdas; e não encontrando isso nela, desprezam os escritores; o que por vezes acontece também noutras idades, por razões idênticas, com os iliteratos.
E aqueles jovens que se dedicam às letras facilmente preferem, não só quando escrevem mas também quando avaliam as obras dos outros, o excessivo ao moderado, a sumptuosidade ou a afectação das expressões e dos ornamentos ao simples e ao natural, e as belezas ilusórias às verdadeiras, em parte devido à sua pouca experiência e em parte ao arrebatamento próprio da idade. Donde se deduz que os jovens, que são sem dúvida, entre todos os homens, aqueles que estão mais dispostos a louvar o que lhes parece bom, por serem mais sinceros e ingénuos, raramente são capazes de apreciar a hábil e perfeita boa qualidade das obras literárias. Com o avançar dos anos, aumenta a capacidade que se adquire com o treino e diminui a natural. Contudo,
A Função do Escritor
Que o mundo «está infestado com a escória do género humano» é perfeitamente verdade. A natureza humana é imperfeita. Mas pensar que a tarefa da literatura é separar o trigo do joio é rejeitar a própria literatura. A literatura artística é assim chamada porque descreve a vida como realmente é. O seu objectivo é a verdade – incondicional e honestamente. O escritor não é um confeiteiro, um negociante de cosméticos, alguém que entretém; é um homem constrangido pela realização do seu dever e a sua consciência. Para um químico, nada na terra é puro. Um escritor tem de ser tão objectivo como um químico.
Parece-me que o escritor não deveria tentar resolver questões como a existência de Deus, pessimismo, etc. A sua função é descrever aqueles que falam, ou pensam, acerca de Deus e do pessimismo, como e em que circunstâncias. O artista não deveria ser juiz dos seus personagens e das suas conversas, mas apenas um observador imparcial.
Têm razão em exigir que um artista deva ter uma atitude inteligente em relação ao seu trabalho, mas confundem duas coisas: resolver um problema e enunciar correctamente um problema. Para o artista, só a segunda cláusula é obrigatória.
Acusam-me de ser objectivo,
Liberdade é Pouco
Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome. — Sou pois um brinquedo a quem dão corda e que terminada esta não encontrará vida própria, mais profunda. Procurar tranquilamente admitir que talvez só a encontre se for buscá-la nas fontes pequenas. Ou senão morrerei de sede. Talvez não tenha sido feita para as águas puras e largas, mas para as pequenas e de fácil acesso. E talvez meu desejo de outra fonte, essa ânsia que me dá ao rosto um ar de quem caça para se alimentar, talvez essa ânsia seja uma ideia – e nada mais. Porém – os raros instantes que às vezes consigo de suficiência, de vida cega, de alegria tão intensa e tão serena como o canto de um órgão – esses instantes não provam que sou capaz de satisfazer minha busca e que esta é sede de todo o meu ser e não apenas uma ideia? Além do mais, a ideia é a verdade! grito-me. São raros os instantes.