Esquecimento Esvaziante
A variedade das nossas emoções torna claro que cada homem guarda dentro de si os celeiros do contentamento e do descontentamento: os jarros das coisas boas e más não estão depositados «na soleira de Zeus», mas na alma. O néscio negligencia e desdenha as coisas boas que lá estão porque a sua imaginação acha-se sempre voltada para o futuro; o sensato, porém, torna os factos pregressos vividamente presentes com recordá-los. O presente oferece-se ao toque da nossa mão apenas por um instante e logo nos ilude os sentidos; os tolos julgam que ele não é mais nosso, que não mais nos pertence.
Há a pintura de um cordoeiro no inferno, com um asno a engolir toda a corda feita por ele, à medida que ele a entretece; assim é a multidão acometida e dominada pelo esquecimento insensato e ingrato, que apaga cada acto, cada sucesso, cada experiência aprazível de bem-estar, de camaradagem e de deleite.
O esquecimento não consente à vida desenvolver-se unitariamente, o passado entretecido com o presente, mas separa o ontem do hoje, como se fossem de diferente substância, e o hoje do amanhã, como se não fossem o mesmo; transforma toda a ocorrência em não-ocorrência.
Passagens sobre Ato
492 resultadosHino à Beleza
Onde quer que o fulgor da tua glória apareça,
— Obra de génio, flor de heroísmo ou santidade, —
Da Gioconda imortal na radiosa cabeça,
Num acto de grandeza augusta ou de bondade,— Como um pagão subindo à Acrópole sagrada,
Vou de joelhos render-te o meu culto piedoso,
Ou seja o Herói que leva uma aurora na Espada,
Ou o Santo beijando as chagas do Leproso.Essa luz sem igual com que sempre iluminas
Tudo o que existe em nós de grande e puro, veio
Do mesmo foco em mil parábolas divinas:
— Raios do mesmo olhar, ânsias do mesmo seio.Alta revelação que, baixando em segredo,
O prisma humano quebra em ângulos dispersos,
Como a água a cair de rochedo em rochedo
Repete o mesmo som, mas em modos diversos.É audácia no Herói; resignação no Santo;
Som e Cor, ondulando em formas imortais;
No mármore rebelde abre em folhas de acanto,
E esmalta de candura a flora dos vitrais.Ó Beleza! Ó Beleza! as Horas fugitivas
Passam diante de ti, aladas como sonhos…
Necessitamos de luz para os atos cotidianos, mas a dispensamos em circunstâncias especiais.
A Firmeza é um Atributo Essencial de Morte
Não somos firmes no amor, porque em nada podemos ser constantes: continuamente nos vai mudando o tempo; uma hora de mais é mais em nós uma mudança. A cada passo que damos no decurso da vida, imos nascendo de novo, porque a cada passo imos deixando o que fomos, e começamos a ser outros: cada dia nascemos, porque cada dia mudamos, e quanto mais nascemos desta sorte, tanto mais nos fica perto o fim, que nos espera. A inconstância, que é um acto da alma, ou da vontade, não se faz sem movimento; a natureza não se conserva, e dura, senão porque se muda, e move.
O mundo teve o seu princípio no primeiro impulso, que lhe deu o supremo Artífice; a mesma luz, que é uma bela imagem da Omnipotência, toda se compõe de uma matéria trémula, inconstante, e vária. Tudo vive enfim do movimento; a falta de mudança é o mesmo que falta de vida, e de existência, e assim a firmeza é como um atributo essencial de morte.
A confiança é um ato de fé, e esta dispensa raciocínio.
Ira Induzida
O melhor remédio para a ira é fazer uma pausa. Pede-a não para perdoares, mas para reflectires: os primeiros impulsos da ira são os mais graves; ela desaparece se tiver que esperar. Não tentes afastá-la por inteiro: conseguirás vencê-la por completo se a arrancares por partes.
Entre os actos que nos ofendem, uns são-nos narrados, outros são vistos ou ouvidos por nós mesmos. Não devemos acreditar prontamente naqueles que nos são narrados: muitos homens mentem para enganar, outros tantos mentem porque foram enganados; outros ganham favores com incriminações e inventam uma ofensa para se mostrarem indignados; outro é um homem maldoso e quer destruir amizades sólidas; outro não merece confiança e gosta de observar ao longe e em segurança as desavenças que cria.
Quando tens que emitir um juízo sobre um qualquer assunto, não poderás admitir os factos sem que deles haja uma testemunha, e a testemunha não tem validade se não houver um juramento; darás a palavra às duas partes, farás um intervalo, não as ouvirás uma vez apenas (a verdade manifesta-se àquele que mais vezes a toma em mãos): e condenas prontamente um amigo? Ficas irado antes de o ouvir, antes de interrogares, antes de permitires-lhe conhecer o acusador ou o crime?
Injustiça por si só não é um mal. O verdadeiro mal reside no receio desconfiado de que o ato possa vir a ser escondido do juiz competente.
As mulheres são uma população escravizada — a safra que nós colhemos são crianças, os campos em que nós trabalhamos são casas. As mulheres são forçadas a se submeterem em atos sexuais com homens que violam a integridade porque a religião universal — desprezo por mulheres — tem como seu primeiro mandamento que as mulheres existam puramente como forragem sexual para os homens.
Acontece-me às vezes, e sempre que acontece é quase de repente, surgir-me no meio das sensações um cansaço tão terrível da vida que não há sequer hipótese de ato com que dominá-lo.
A Utilidade dos Inimigos
A utilidade dos inimigos é um daqueles temas cruciais em que um compilador de lugares-comuns como Plutarco pôde dar a mão a um arguto preceptor de heróis como Gracian y Morales e a um paradoxista como Nietzsche. Os argumentos são sempre esses – e todos o sbaem.
Os inimigos como os únicos verdadeiros; como aqueles que, conservando os olhos sempre voltados para cima, obrigam à circunspecção e ao caminho rectilíneo; como auxiliares de grandeza, porque obrigam a superar as más vontades e os obstáculos; como estímulos do aperfeiçoamento de si e da vigilância; como antagonistas que impelem para a competição, a fecundidade, a superação contínua. Mas são bem vistos, sobretudo, como prova segura da grandeza e da fortuna.
Quem não tem inimigos é um santo – e às vezes os santos têm inimigos – ou uma nulidade ambulante, o último dos últimos. E alguns, por arrogância, imaginam ter mais inimigos do que na realidade têm ou tentam consegui-los, para obter, pelo menos por esse caminho, a certeza da sua superioridade.
Mas todos os registadores utilitários da utilidade de inimigos esquecem que essas vantagens são pagas por um preço elevado e só constituem vantagens enquanto somos, e não sabemos ser,
Nos Extremos é que Está a Sabedoria
Pode-se dizer que, muito plausivelmente, há uma ignorância abecedária que precede o saber e uma outra, doutoral, que se lhe segue, ignorância esta que o saber produz e engendra da mesma maneira que desfaz e destrói aqueloutra. Dos espíritos simples, menos curiosos e menos instruídos, fazem-se bons cristãos, que, por reverência e obediência, com simplicidade, crêem e mantêm-se submissos às leis. É nos espíritos de vigor e capacidade médios que se engendram as opiniões erróneas, pois eles seguem a aparência das suas primeiras impressões e têm pretextos para interpretar como simpleza e estultícia o nosso apego aos antigos usos, considerando que nós aí não chegámos por via do estudo dessas matérias.
Os grandes espíritos, mais avisados e clarividentes, constituem um outro género de bons crentes: por meio de uma aturada e escrupulosa investigação, penetram nas Escrituras até atingir uma luz mais profunda e abstrusa, e entendem o misterioso e divino segredo da nossa política eclesiástica. Vemos, porém, alguns, com maravilhoso proveito e com consolidação da sua fé, chegarem, através do segundo, a este último nível, como o extremo limite da inteligência cristã, e rejubilar na sua vitória com refrigério, acções de graças, reformas dos costumes e grande modéstia. Não entendo nesta categoria situar aqueloutros que,
Todo o gesto é um ato revolucionário.
Não é fácil queimarmos documentos íntimos que nos são queridos, é como se confessássemos a nós próprios que já não temos tempo, que vamos morrer amanhã; assim vamos sempre adiando o ato de destruição, e um dia é já tarde demais. Contamos com a imortalidade e esquecemo-nos de contar com a morte.
O génio reside no instinto e a bondade também. Não há um acto perfeito que não seja acto instintivo. Mesmo sob o ponto de vista moral, todo o pensamento consciente se reduz a uma simples tentativa, e é geralmente o contrário da moral.
As vontades débeis traduzem-se em palavras; as vontades fortes em atos.
A Grandeza de Carácter
Obedecer aos próprios sentimentos? Arriscar a vida ao ceder a um sentimento generoso ou a um impulso de momento… Isso não caracteriza um homem: todos são capazes de fazê-lo; neste ponto, um criminoso, um bandido, um corso certamente superam um homem honesto. O grau de superioridade é vencer em si esse elã e realizar o acto heróico, não por um impulso, mas friamente, razoavelmente, sem a expansão de prazer que o acompanha. Outro tanto acontece com a piedade: ela há-de ser habitualmente filtrada pela razão; caso contrário, é tão perigosa como qualquer outra emoção. A docilidade cega perante uma emoção – tanto importa que seja generosa ou piedosa como odienta – é causa dos piores males. A grandeza de carácter não consiste em não experimentar emoções; pelo contrário, estas são de ter no mais alto grau; a questão é controlá-las e, ainda assim, havendo prazer em modelá-las, em função de algo mais.
A virtude é o primeiro título de nobreza; eu não presto tanta atenção ao nome desta ou daquela pessoa, mas antes aos seus actos.
De Memória
Nunca te surpreendeu o sorriso estático
das imagens antigas? Alguma coisa aqui
tivemos de perder. Percorro dias e corpos na memória,
mas o que procuro mais é não te ver.Quem ama quem? As máscaras trocaram-se
e a tua voz ressoa neste palco.
Trouxe versos e música para te dar,
mas o rosto que tivemos já partiu;
fiquei eu só, à beira da memória,
água do mar que não serve para beber.Porque esta foi a paixão, o grande acto,
a tímida paixão de asas de chumbo.
Eu vi-te muitas vezes frente ao mar,
mas quem de nós para acender a cinza?
– ronda-nos a ave de presa despojada
sobre os malefícios. Aliás, coisas passadas.Não te surpreendeu? O amor
surpreende – não convém, desarruma.
E nunca se ama ao certo quem se ama.
Procuramos apenas um brilho,
um brilho muito intenso no olhar,
um brilho que não vamos definir
e que algum dia iremos renegar.
Não Amar nem Odiar
Se possível, não devemos alimentar animosidade contra ninguém, mas observar bem e guardar na memória os procedimentos de cada pessoa, para então fixarmos o seu valor, pelo menos naquilo que nos concerne, regulando, assim, a nossa conduta e atitude em relação a ela, sempre convencidos da imutabilidade do carácter. Esquecer qualquer traço ruim de uma pessoa é como jogar fora dinheiro custosamente adquirido. No entanto, se seguirmos o presente conselho, estaremos a proteger-nos da confiabilidade e da amizade tolas.
«Não amar, nem odiar», eis uma sentença que contém a metade da prudência do mundo; «nada dizer e em nada acreditar» contém a outra metade. Decerto, daremos de bom grado as costas a um mundo que torna necessárias regras como estas e como as seguintes.
Mostrar cólera e ódio nas palavras ou no semblante é inútil, perigoso, imprudente, ridículo e comum. Nunca se deve revelar cólera ou ódio a não ser por actos; e estes podem ser praticados tanto mais perfeitamente quanto mais perfeitamente tivermos evitado os primeiros. Apenas animais de sangue frio são venenosos.
Falar sem elevar a voz: essa antiga regra das gentes do mundo tem por alvo deixar ao entendimento dos outros a tarefa de descobrir o que dissemos.
Construir pode ser a tarefa lenta e difícil de anos. Destruir pode ser o ato impulsivo de um único dia.