Desastre
Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,
Soltando fundos ais e trêmulos queixumes;
Caíra dum andaime e dera com o peito,
Pesada e secamente, em cima duns tapumes.A brisa que balouça as árvores das praças,
Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,
E dentro eu divisei o ungido das desgraças,
Trazendo em sangue negro os membros ensopados.Um preto, que sustinha o peso dum varal,
Chorava ao murmurar-lhe: “Homem não desfaleça!”
E um lenço esfarrapado em volta da cabeça,
Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.***
Findara honrosamente. As lutas, afinal,
Deixavam repousar essa criança escrava,
E a gente da província, atônita, exclamava:
“Que providências! Deus! Lá vai para o hospital!”Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;
Mornas essências vêm duma perfumaria,
E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,
Numa travessa escura em que não entra o dia!Um fidalgote brada e duas prostitutas:
“Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!”
Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas
E conta-se o que foi na loja dum barbeiro.
Passagens sobre Cabeça
583 resultadosAs ideias envelhecem dentro dos livros, da mesma forma que envelhecem dentro da cabeça. Na cabeça, antes do mundo, e nos livros, depois do mundo, as ideias podem envelhecer e morrer ou, tantas vezes, podem envelhecer e só nesse momento serem reconhecidas como ideias, só nesse momento nascerem de facto.
A dor de cabeça minha, e as vacas nossas.
Dói-me o universo porque a cabeça me dói.
Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total.
O Segredo e o Mistério
Mistérios a pouco e pouco vão morrendo
e extenuados de vigília os anjos
são afinal a sussurrantes sibilinas vozes
que desvendam adivinham segredos
atrás de sentinelas
cuja ferocidade é uma ironia de ternura…
Na palidez da luz
cercando uma velha cabeça
a quem um sono de embrião já tolda os olhos
sorriem enigmáticos os sonhos.
Uma Boa Ideia
Não há nada mais prático do que uma boa ideia. Uma boa ideia não é apenas algo de interessante que nos vem à cabeça, mas é, sobretudo, um propósito que nos leva a fazer o bem e a querer ser bons. Há pessoas que ficam a discutir ideias até se desgastarem. E há outras que procuram confrontar as suas ideias na acção para mudar o mundo.
(
Boa e Má Literatura
O que acontece na literatura não é diferente do que acontece na vida: para onde quer que se volte, depara-se imediatamente com a incorrigível plebe da humanidade, que se encontra por toda a parte em legiões, preenchendo todos os espaços e sujando tudo, como as moscas no verão.
Eis a razão do número incalculável de livros maus, essa erva daninha da literatura que tudo invade, que tira o alimento do trigo e o sufoca. De facto, eles arrancam tempo, dinheiro e atenção do público – coisas que, por direito, pertencem aos bons livros e aos seus nobres fins – e são escritos com a única intenção de proporcionar algum lucro ou emprego. Portanto, não são apenas inúteis, mas também positivamente prejudiciais. Nove décimos de toda a nossa literatura actual não possui outro objectivo senão o de extrair alguns táleres do bolso do público: para isso, autores, editores e recenseadores conjuraram firmemente.
Um golpe astuto e maldoso, porém notável, é o que teve êxito junto aos literatos, aos escrevinhadores que buscam o pão de cada dia e aos polígrafos de pouca conta, contra o bom gosto e a verdadeira educação da época, uma vez que eles conseguiram dominar todo o mundo elegante,
Criança
Cabecinha boa de menino triste,
de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre, — e resiste,Cabecinha boa de menino ausente,
que de sofrer tanto se fez pensativo,
e não sabe mais o que sente…Cabecinha boa de menino mudo
que não teve nada, que não pediu nada,
pelo medo de perder tudo.Cabecinha boa de menino santo
que do alto se inclina sobre a água do mundo
para mirar seu desencanto.Para ver passar numa onda lenta e fria
a estrela perdida da felicidade
que soube que não possuiria.
A Um Epilético
Perguntarás quem sou?! – ao suor que te unta,
À dor que os queixos te arrebenta, aos trismos
Da epilepsia horrenda, e nos abismos
Ninguém responderá tua pergunta!Reclamada por negros magnetismos
Sua cabeça há de cair, defunta
Na aterradora operação conjunta
Da tarefa animal dos organismos!Mas após o antropófago alambique
Em que é mister todo o teu corpo fique
Reduzido a excreções de sânie e lodo,Como a luz que arde, virgem, num monturo,
Tu hás de entrar completamente puro
Para a circulação do Grande Todo!
A razão pela qual as cabeças limitadas são tão propensas ao tédio provém do facto de que o seu intelecto nada mais ser senão o «intermediário dos motivos» para a vontade. Se não existirem motivos para serem levados em conta, então a vontade repousa e o intelecto folga; pois este, tão pouco quanto aquela, não entra em actividade por si próprio.
Retrato de D. Leonor de Sá
Criava-se Leonor, crescendo sempre
Em suma perfeição, suma beleza,
E crescendo só nela as outras graças
Por grandes fermosuras repartidas,
Produziam-se dos seus fermosos olhos
Efeitos mil, e extremos diferentes,
Que olhando davam vida, e outras vezes
Olhando cem mil vidas destruíam.
A branca cor do rosto acompanhada
De uma cor natural honesta e pura,
E a cabeça de crespo ouro coberta,
Lembrança do mais alto céu faziam.
Praxíteles nem Fídias não lavraram
De branquíssimo mármore igual corpo;
Nem aquele, que Zuxis entre tantas
Fermosuras deixou por mais perfeito,
Não se igualava a este, antes ficava
Abatido, e julgado em pouco preço;
Que mal pode igualar-se humano engenho
Co’aquilo, em que Deus tal saber nos mostra.
Da boca o suave riso alegra os ares,
Mostrando entre rubis orientais perlas
E sobre tudo, quanto a natureza
Lhe deu perfeito, a graça se avantaja.
No peito ebúrneo as pomas, que em brancura
Levam da neve o justo preço e a palma,
Apartando-se, deixam de açucena
Alvíssima um florido e fresco vale.
Quem pode (sem perder-se) louvar cousa
Onde não chega humano entendimento?
A loucura é inseparável do homem; umas vezes toma-lhe a cabeça e deixa-lhe em paz o coração, que nunca se empenha no desvairar a que ela é arrastada; outras vezes há na cabeça a frieza da razão e ao coração desce a loucura para o perturbar com afectos.
Aquele a quem se permite actuar à sua vontade em breve baterá com a cabeça contra um muro de tijolos de pura frustração.
Mergulho a cabeça nos lençóis a procura do seu cheiro, que também não está lá.
Tente colocar bom senso na cabeça de um tolo e ele dirá que é tolice.
Todo o discurso deve ser construído como uma criatura viva, dotado por assim dizer do seu próprio corpo; não lhe podem faltar nem pés nem cabeça; tem de dispor de um meio e de extremidades compostas de modo tal que sejam compatíveis uns com os outros e com a obra como um todo.
Entendimento Lúcido do Futuro
Uma diferença característica e muito frequente na vida diária entre as cabeças comuns e as sensatas é que as primeiras, na sua ponderação e avaliação sobre possíveis perigos, querem saber e levam em conta apenas o que de semelhante já terá acontecido. As outras, pelo contrário, ponderam o que possivelmente poderia acontecer. É como se tivessem em mente o provérbio espanhol: «O que não acontece num ano, acontece num instante». Decerto, a diferença em questão é natural, pois, para abarcar com a vista aquilo que pode acontecer, é preciso entendimento; já para ver aquilo que aconteceu, são suficientes os sentidos.
A nossa máxima, então, é: sacrifica-te aos demónios malignos. Por outras palavras, não se deve temer uma certa perda de esforço, tempo, desconforto, transtorno, dinheiro ou privação, para fechar as portas à possibilidade de uma desgraça. E quanto maior a desgraça, tanto menor, mais remota e improvável a sua possibilidade. O exemplo mais claro desta regra é o prémio do seguro. Ele é um sacrifício público oferecido por todos no altar dos demónios malignos.
Prosema II
Para iludir a dúvida, privado de equipagens, nenhum dos habituais pontos de referência vem em meu auxílio. Procuro um ancoradouro distante, fora do estreito mundo em que me movo.
Inútil: bichos, objectos minúsculos, paredes brancas pontilhadas, o botão da campainha à minha esquerda. A memória retira-me a sua cobertura instantânea. Tento galgar esta padiola dentro da minha cabeça e daí lançar-me à desfilada sobre uma estepe daninha ou cair do alto da montanha onde guardo o meu ninho de águia. Digo-vos que só pretendo A Grande Casa Alugada da Minha Infância, o vapor ronceiro em que apenas um velho missionário se lembrara de que uma criança existia. O velho desapareceu inesperadamente num pequeno porto do Zaire e deixou-me só.(
A cabeça do vadio é hospedaria do diabo.