A impunidade não salva da pena e castigo merecido; retarda-o para o fazer mais grave pela reincidência e agravação das culpas e crimes subseqüentes.
Passagens sobre Culpa
226 resultadosUm Outro que Não Eu
um outro que não eu
bem mais voraz
concreto
e subtil
te poderá depois talvez contar
destes momentos cúmplices de agora
perfeitos na intimidade
da vaga dor de cabeçanão te posso adiar por minha culpa
não te posso invocar
por excesso de altruísmo ou de rancorarquitectura fria
dum gesto quase orgulho
do que já lá não coube
se nutre a tua imagemmais fácil do que tudo
seria perdoar-meperde-se o vício
por falta de virtude
Ninguém Tem Pena das Pessoas Felizes
Ninguém tem pena das pessoas felizes. Os Portugueses adoram ter angústias, inseguranças, dúvidas existenciais dilacerantes, porque é isso que funciona na nossa sociedade. As pessoas com problemas são sempre mais interessantes. Nós, os tontos, não temos interesse nenhum porque somos felizes. Somos felizes, somos tontaços, não podemos ter graça nem salvação. Muitos felizardos (a própria palavra tem um soar repelente, rimador de «javardo») vêem-se obrigados a fingir a dor que deveras não sentem, só para poderem «brincar» com os outros meninos.
É assim. Chega um infeliz ao pé de nós e diz que não sabe se há-de ir beber uma cerveja ou matar-se. E pergunta, depois de ter feito o inventário das tristezas das últimas 24 horas: «E tu? Sempre bem disposto, não?». O que é que se pode responder? Apetece mentir e dizer que nos morreu uma avó, que nos atraiçoou uma namorada, que nos atropelaram a cadelinha ali na estrada de Sines.
E, no entanto, as pessoas felizes também sofrem muito. Sofrem, sobretudo, de «culpa». Se elas estão felizes, rodeadas de pessoas tristes, é lógico que pensem que há ali qualquer coisa que não bate certo. As infelizes acusam sempre os felizes de terem a culpa.
O Homem Cruel
Quando o rico tira um pertence ao pobre (por exemplo, um príncipe que tira a amante ao plebeu), então gera-se um erro no pobre; este acha que aquele tem de ser absolutamente infame, para lhe tirar o pouco que ele tem. Mas aquele não sente de modo algum tão profundamente o valor de um único pertence, porque está habituado a ter muitos: portanto, não se pode transpor para o espírito do pobre e não comete tal uma injustiça tão grande como este julga. Ambos têm um do outro uma concepção errada. A injustiça do poderoso, a que mais indigna na História, não é assim tão grande como parece. O mero sentimento hereditário de ser um ser superior, com direitos superiores, torna uma pessoa bastante fria e deixa-lhe a consciência tranquila: até todos nós, se a distância entre nós e um outro ente for muito grande, já não sentimos absolutamente nada de injusto e matamos um mosquito, por exemplo, sem qualquer remorso.
Assim, não é sinal de maldade em Xerxes (a quem mesmo todos os Gregos descrevem como eminentemente nobre) quando ele tira a um pai o seu filho e o manda esquartejar, porque este havia manifestado uma inquieta e ominosa desconfiança em relação a toda a expedição militar: neste caso,
Lusos Heróis, Cadáveres Cediços
Lusos heróis, cadáveres cediços,
Erguei-vos dentre o pó, sombras honradas,
Surgi, vinde exercer as mãos mirradas
Nestes vis, nestes cães, nestes mestiços.Vinde salvar destes pardais castiços
As searas de arroz, por vós ganhadas;
Mas ah! Poupai-lhe as filhas delicadas,
Que. Elas culpa não têm, têm mil feitiços.De pavor ante vós no chão se deite
Tanto fusco rajá, tanto nababo,
E as vossas ordens, trémulo, respeite.Vão para as várzeas, leve-os o Diabo;
Andem como os avós, sem mais enfeite
Que o langotim, diámetro do rabo.
Orientar Filosoficamente a Vida
A ânsia de uma orientação filosófica da vida nasce da obscuridade em que cada um se encontra, do desamparo que sente quando, em carência de amor, fica o vazio, do esquecimento de si quando, devorado pelo afadigamento, súbito acorda assustado e pergunta: que sou eu, que estou descurando, que deverei fazer?
O auto-esquecimento é fomentado pelo mundo da técnica. Pautado pelo cronómetro, dividido em trabalhos absorventes ou esgotantes que cada vez menos satisfazem o homem enquanto homem, leva-o ao extremo de se sentir peça imóvel e insubstituivel de um maquinismo de tal modo que, liberto da engrenagem, nada é e não sabe o que há-de fazer de si. E, mal começa a tomar consciência, logo esse colosso o arrasta novamente para a voragem do trabalho inane e da inane distracção das horas de ócio.
Porém, o pendor para o auto-esquecimento é inerente à condição humana. O homem precisa de se arrancar a si próprio para não se perder no mundo e em hábitos, em irreflectidas trivialidades e rotinas fixas.
Filosofar é decidirmo-nos a despertar em nós a origem, é reencontrarmo-nos e agir, ajudando-nos a nós próprios com todas as forças.
Na verdade a existência é o que palpavelmente está em primeiro lugar: as tarefas materiais que nos submetem às exigências do dia-a-dia.
Ontem Pôs-se o Sol
Ontem pôs-se o sol, e a noute
cobriu de sombra esta terra.
Agora é já outro dia,
tudo torna, torna o sol;
só foi a minha vontade,
para não tornar c’o tempo!Tôdalas cousas, per tempo,
passam, como dia e noute;
ua só, minha vontade,
não, que a dor comigo a aterra;
nela cuido em quanto há sol,
nela enquanto não há dia.Mal quero per um só dia
a todo outro dia e tempo,
que a mim pôs-se-me o sol
onde eu só temia a noute;
tenho a mim sôbre a terra,
debaxo minha vontade.Dentro na minha vontade
não há momento do dia
que não seja tudo terra;
ora ponho a culpa ao tempo,
ora a torno a pôr à noute:
no milhor pon-se-me o sol!Primeiro não haverá sol
que eu descanse na vontade.
Pon-se-me ua escura noute
sôbre a lembrança de um dia…
Inda mal porque houve tempo
e porque tudo foi terra.Haver de ser tudo terra
quanto há debaixo do sol
me descansa,
Ser Português é Difícil
Os Portugueses têm algum medo de ser portugueses. Olhamos em nosso redor, para o nosso país e para os outros e, como aquilo que vemos pode doer, temos medo, ou vergonha, ou «culpa de sermos portugueses». Não queremos ser primos desta pobreza, madrinhas desta miséria, filhos desta fome, amigos desta amargura. Os Portugueses têm o defeito de querer pertencer ao maior e ao melhor país do mundo. Se lhes perguntarmos “Qual é actualmente o melhor e o maior país do mundo?”, não arranjam resposta. Nem dizem que é a União Soviética nem os Estados Unidos nem o Japão nem a França nem o Reino Unido nem a Alemanha. Dizem só, pesarosos como os kilogramas nos tempos em que tinham kapa: «Podia ter sido Portugal…» E isto que vai salvando os Portugueses: têm vergonha, culpa, nojo, medo de serem portugueses mas «também não vão ao ponto de quererem ser outra coisa».
Revela-se aqui o que nós temos de mais insuportável e de comovente: só nos custa sermos portugueses por não sermos os melhores do mundo. E, se formos pensar, verificamos que o verdadeiro patriotismo não é aquele de quem diz “Portugal é o melhor país do mundo” (esse é simplesmente parvo ou parvamente simples),
Ao menos o aldrabão, através das palavras que nos deixa, pode ser analisado e confrontado. O calado, em contrapartida, está protegido. Não tendo falado, não mentiu. Mantendo o silêncio, não induziu ninguém em erro. E, caso tenha induzido, a culpa obviamente não foi dele…
Sempre o medo nasceu da culpa.
Não somos pecadores somente por termos comido da árvore do conhecimento, mas também porque ainda não comemos da árvore da vida. O estado em que nos encontramos é pecaminoso independentemente da culpa.
A culpa é dos factos, meu amigo. Somos todos prisioneiros dos factos. Eu nasci, logo existo.
Cada Dia é Sempre Diferente dos Outros
Cada dia é sempre diferente dos outros, mesmo quando se faz aquilo que já se fez. Porque nós somos sempre diferentes todos os dias, estamos sempre a crescer e a saber cada vez mais, mesmo quando percebemos que aquilo em que acreditávamos não era certo e nos parece que voltámos atrás. Nunca voltamos atrás. Não se pode voltar atrás, não se pode deixar de crescer sempre, não se pode não aprender. Somos obrigados a isso todos os dias. Mesmo que, às vezes, esqueçamos muito daquilo que aprendemos antes. Mas, ainda assim, quando percebemos que esquecemos, lembramo-nos e, por isso, nunca é exactamente igual.
— Porquê, pai?
— Porque a memória não deixa que seja igual, mesmo que seja uma memória muito vaga, mesmo que seja só assim uma espécie de sensação muito vaga. É que a memória não é sempre aquilo que gostaríamos que fosse. Grande parte dos nossos problemas estão na memória volúvel que possuímos. Aquilo que é hoje uma verdade absoluta, amanhã pode não ter nenhum valor. Porque nos esquecemos, filho. Esquecemos muito daquilo que aprendemos. E cansamo-nos. E quando estamos cansados, deixamos de aprender. Queremos não aprender por vontade. Essa é a nossa maneira de resistir,
Rei que dissimula delitos de ministros, faz-se deles participante e torna própria a culpa alheia.
A culpa, não a tem o cão, mas quem lhe dá de comer.
Eu não tenho culpa nenhuma de ser português, mas sinto a força para não ter, como vós outros, a cobardia de deixar apodrecer a pátria.
Que desculpas comigo só buscava,
Quando o suave Amor me não sofria
Culpa na cousa amada, e tão amada!
O Machismo Português e as Traições Amorosas
Na gíria portuguesa, os palitos são a versão económica, e mais moderna, dos cornos. Os cornos, à semelhança do que aconteceu com os automóveis e os computadores, tornaram-se demasiado volumosos e pesados para as exigências do homem de hoje. Daí a crescente popularidade dos mais portáteis e menos onerosos palitos. Contudo, visto que se vive presentemente um período de transição, em que os novos palitos ainda se vêem lado a lado com os tradicionais cornos, continuam a existir algumas sobreposições. Uma delas, herdada do antigamente, deve-se ao facto dos palitos não se saldarem numa diminuição proporcional de sofrimento. Ou seja, não dão uma mera dor de palito — dão à mesma, incontrovertivelmente, dor de corno. Não é mais carinhoso, por isso, pôr os «palitos» a alguém — continua a ser exactamente o mesmo que pôr os outros.
Tudo isto vem a propósito da forma atípica, entre os povos latinos, que assume o machismo português. Não se trata do machismo triunfalmente dominador, género «Aqui quem manda sou eu!», do brutamontes que não dá satisfações à mulher. Não — o machismo português, imortalizado pelo fado «Não venhas tarde», é um machismo apologético, todo «desculpa lá ó Mafalda», que alcança os seus objectivos de uma maneira mais eficaz.
Em certas circunstâncias o silêncio de poucos é culpa ou delito de muitos.
Não seja o castigo maior do que foi a culpa.