A beleza é o acordo entre o conteúdo e a forma.
Passagens sobre Forma
1366 resultadosA Quimera da Felicidade
(…) do alto de uma montanha, inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma cousa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das cousas. Tal era o espectáculo, acerbo e curioso espectáculo. A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que não lhe podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, – flagelos e delícias, – desde essa cousa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba,
A multidão: esse enorme pedaço de monstruosidade que, considerada a partir dos seus elementos, parece feita de homens e das criaturas sensatas de Deus; mas, considerada como um todo, forma uma enorme besta e uma monstruosidade mais horrível do que Hidra.
O Que é a Inspiração?
Eu não sei o que é a inspiração. Mas também a verdade é que às vezes nós usamos conceitos que nunca paramos a examinar. Vamos lá a ver: imaginemos que eu estou a pensar determinado tema e vou andando, no desenvolvimento do raciocínio sobre esse tema, até chegar a uma certa conclusão. Isto pode ser descrito, posso descrever os diversos passos desse trajecto, mas também pode acontecer que a razão, em certos momentos, avance por saltos; ela pode, sem deixar de ser razão, avançar tão rapidamente que eu não me aperceba disso, ou só me aperceba quando ela tiver chegado ao ponto a que, em circunstâncias diferentes, só chegaria depois de ter passado por todas essas fases.
Talvez, no fundo, isso seja inspiração, porque há algo que aparece subitamente; talvez isso possa chamar-se também intuição, qualquer coisa que não passa pelos pontos de apoio, que saltou de uma margem do rio para a outra, sem passar pelas pedrinhas que estão no meio e que ligam uma à outra. Que uma coisa a que nós chamamos razão funcione desta maneira ou daquela, que funcione com mais velocidade ou que funcione de forma mais lenta e que eu posso acompanhar o próprio processo,
Ser leal a si mesmo é a única forma de chegar a ser leal com os demais.
Ódio a si próprio de forma parcial na base de tudo o que constitui fracasso.
Títulos e Diplomas
Parece que a humanidade só se esforça enquanto tem a esperar diplomas idiotas, que pode exibir em público para obter proveitos, mas, quando já tem na mão tais diplomas idiotas em número suficiente, deixa-se levar. Ela vive em grande parte só para obter diplomas e títulos, não por qualquer outra razão, e, depois de ter obtido o número de diplomas e títulos que, na sua opinião, é suficiente, deixa-se cair na cama macia desses diplomas e títulos. Ela não parece ter qualquer outro objectivo para a vida. Não tem, segundo parece, qualquer interesse numa vida própria, independente, numa existência própria, independente, mas apenas nesses diplomas e títulos, sob os quais a humanidade há já séculos ameaça sufocar.
As pessoas não procuram independência e autonomia, não procuram a sua própria evolução natural, mas apenas esses diplomas e títulos e estariam, a todo o momento, prontas a morrer por esses diplomas e títulos, se lhos entregassem e dessem sem qualquer condição, esta é que é a verdade desmascaradora e deprimente. Tão pouco estimam elas a vida em si que só vêem os diplomas e títulos e nada mais. Elas penduram nas paredes das suas casas os diplomas e títulos, nas casas dos mestres talhantes e dos filósofos,
O Que Mais Contribui para a Felicidade
Já reconhecemos em geral que aquilo que somos contribui muito mais para a felicidade do que aquilo que temos ou representamos. Importa saber o que alguém é e, por conseguinte, o que tem em si mesmo, pois a sua individualidade acompanha-o sempre e por toda a parte, e tinge cada uma das suas vivências. Em todas as coisas e ocasiões, o indivíduo frui, em primeiro lugar, apenas a si mesmo. Isso já vale para os deleites físicos e muito mais para os intelectuais. Por isso, a expressão inglesa to enjoy one’s self é bastante acertada; com ela, dizemos, por exemplo, he enjoys himself at Paris, portanto, não «ele frui Paris», mas «ele frui a si em Paris». Entretanto, se a individualidade é de má qualidade, então todos os deleites são como vinhos deliciosos numa boca impregnada de fel.
Assim, tanto no bem quanto no mal, tirante os casos graves de infelicidade, importa menos saber o que ocorre e sucede a alguém na vida, do que a maneira como ele o sente, portanto, o tipo e o grau da sua susceptibilidade sob todos os aspectos. O que alguém é e tem em si mesmo, ou seja, a personalidade e o seu valor,
A Prática Fomenta a Vontade
Se desejamos tornar-nos fortes, temos, primeiro, de comprender o que é a vontade. A vontade não é nenhuma entidade mística, que presida aos outros elementos do carácter, qual mestre de banda – sim, a soma, a substância de todos os nossos impulsos e disposições. Essa energia formadora do carácter não tem senhor a quem obedeça além de si própria; e é graças a ela que algum poderoso impulso pode vir a dominar e unificar o complexo. Isto forma a «força de vontade» – um supremo desejo que se ergue acima dos mais para arrastá-los num mesmo sentido ou para uma dada meta. Se não descobrimos essa meta não alcançaremos a unidade – e seremos simples pedra de que outro homem se utiliza nas suas construções.
Vem daí a inutilidade da leitura de livros que apontam as estradas reais do carácter. Tenho diante de mim um volume de um tal Leland (Londres, 1912), intitulado Tendes a Vontade Forte? ou Como Desenvolver Qualquer Faculdade do Espírito pelo Fácil Processo do Auto-Hipnotismo. Existem centenas destas obras-primas ao alcance dos simplórios de todas as cidades. Mas o caminho é mais penoso e longo.
Esse caminho é o caminho da vida. Vontade, isto é,
O não é um sim a rejeição de algo, alguma coisa, alguma ação ou omissão, a algum pensamento ou forma de agir ou a alguém.
O desprezo é a forma mais subtil de vingança.
A originalidade é uma forma de se ser e ninguém pode ser por nós.
Dizem que em cada Coisa uma Coisa Oculta Mora
Dizem que em cada coisa uma coisa oculta mora.
Sim, é ela própria, a coisa sem ser oculta,
Que mora nela.Mas eu, com consciência e sensações e pensamento,
Serei como uma coisa?
Que há a mais ou a menos em mim?
Seria bom e feliz se eu fosse só o meu corpo –
Mas sou também outra coisa, mais ou menos que só isso.
Que coisa a mais ou a menos é que eu sou?O vento sopra sem saber.
A planta vive sem saber.
Eu também vivo sem saber, mas sei que vivo.
Mas saberei que vivo, ou só saberei que o sei?
Nasço, vivo, morro por um destino em que não mando,
Sinto, penso, movo-me por uma força exterior a mim.
Então quem sou eu?Sou, corpo e alma, o exterior de um interior qualquer?
Ou a minha alma é a consciência que a força universal
Tem do meu corpo por dentro, ser diferente dos outros?
No meio de tudo onde estou eu?Morto o meu corpo,
Desfeito o meu cérebro,
Em coisa abstracta,
O Romancista e o Escritor
Releio o curto ensaio de Sartre O Que é Escrever?. Nem uma vez ele utiliza as palavras romance, romancista. Fala apenas do escritor da prosa. Distinção justa. O escritor tem ideias originais e uma voz inimitável. Pode servir-se de qualquer forma (romance incluído) e tudo o que escreve, já que marcado pelo seu pensamento, levado pela sua voz, faz parte da sua obra. Rouseau, Goethe, ChateauBriand, Gide, Malraux, Camus, Montherland.
O romancista não liga muito às suas ideias. É um descobridor que, tacteando, se esforça por desvendar um aspecto desconhecido da existência. Não está fascinado pela sua voz mas por uma forma que persegue, e só as formas que respondem às exigências do seu sonho fazem parte da sua obra. Fielding, Sterne, Flaubert, Proust, Faulkner, Céline, Calvino.
O escritor inscreve-se na carta espiritual do seu tempo, da sua nação, na da história das ideias. O único contexto em que se pode apreender o valor de um romance é o da história do romance europeu. O romancista não tem contas a prestar a ninguém, excepto a Cervantes.
Luar
Pelas esferas, nuvens peregrinas,
Brandas de toques, encaracoladas,
Passam de longe, tímidas, nevadas,
Cruzando o azul sereno das colinas.Sombras da tarde, sombras vespertinas
Como escumilhas leves, delicadas,
Caem da serra oblonga nas quebradas,
Vão penumbrando as coisas cristalinas.Rasga o silêncio a nota chã, plangente,
Da Ave-Maria, — e então, nervosamente,
Nuns inefáveis, espontâneos jorrosEsbate o luar, de forma admirável,
Claro, bondoso, elétrico, saudável,
Na curvilínea compridão dos mortos.
O amor não se compra: as mulheres que se vendem apenas se alugam aos homens; mas compra-se o sonho – substância impalpável que se transaciona sob várias formas.
Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos
Como as palavras, os nossos nomes também estão sujeitos a ser moldados pela intenção e pelo tom. A intenção é o lugar onde nascem. O tom é a forma como se desenvolvem. Dependendo da intenção e do tom, muitas vezes somos os nossos nomes, noutras vezes não.
A Libertação do Pensamento
Conforme o leitor vai crescendo, forma uma imagem mental sobre quem é, com base no condicionamento pessoal e cultural a que está sujeito. Podemos chamar de ego a este eu ilusório. Ele consiste em atividade mental e só pode ser mantido através do pensamento constante. O termo ego significa coisas diferentes para pessoas diferentes, mas quando eu o utilizo neste livro tem o significado de um falso eu, criado pela identificação inconsciente com a mente.
Para o ego, o momento presente praticamente não existe. Só o passado e o futuro são tidos como importantes. Esta contraposição total da verdade explica o facto de no modo ego a mente ser tão disfuncional. Preocupa-se sempre em manter o passado vivo, porque sem ele… quem é você? Ele projeta-se constantemente no futuro para garantir a sua sobrevivência contínua e para procurar lá algum tipo de libertação ou realização. Diz: «Um dia, quando isto, aquilo ou tal acontecer, vou ficar bem, feliz, em paz.»
Até quando o ego parece estar virado para o presente, não é o presente que ele vê: o ego interpreta o presente de forma totalmente errada porque o observa com os olhos do passado. Ou reduz o presente a um meio para atingir um fim,
Não é o conteúdo, mas sim a forma de pensar que importa.