No fundo, agradece-se que não haja grandes governantes; eles trazem a ordem, portanto a proibição de escolha a uma consciência em estado de profunda reprovação. Um governante iluminado causa mais males do que duzentos que estejam pouco empenhados na felicidade humana.
Passagens sobre Fundo
685 resultadosAs Frágeis Hastes
Não voltarei à fonte dos teus flancos
ao fogo espesso do verão
a escorrer infatigável
dos espelhos, não voltarei.Não voltarei ao leito breve
onde quebrámos uma a uma
todas as frágeis
hastes do amor.Eis o outono: cresce a prumo.
Anoitecidas águas
em febre em fúria em fogo
arrastam-me para o fundo.
A Doutrina do Objectivo da Vida
Quer considere os homens com bondade ou malevolência, encontro-os sempre, a todos e a cada um em particular, empenhados na mesma tarefa: tornar-se úteis à conservação da espécie. E isto não por amor a essa espécie, mas simplesmente porque não há neles nada mais antigo, mais poderoso, mais impiedoso e mais invencível do que esse instinto… porque esse instinto é propriamente a essência da nossa espécie, do nosso rebanho.
Se bem que se chegue assaz rapidamente, com a miopia ordinária, a separar a cinco passos os nossos semelhantes em úteis e em prejudiciais, em seres bons e maus, quando fazemos o nosso balanço final e reflectimos sobre o conjunto acabamos por desconfiar destas depurações, destas distinções, e acabamos por renunciar a elas.
Talvez o homem mais prejudicial seja ainda, no fim de contas, o mais útil à conservação da espécie; porque sustenta em si mesmo, ou nos outros, com a sua acção, instintos sem os quais a humanidade estaria há muito tempo mole e corrompida. O ódio, o prazer de prejudicar, a sede de tomar e de dominar, e, de uma maneira geral, tudo aquilo a que se dá o nome de mal, não passam no fundo de um dos elementos da espantosa economia da conservação da espécie;
Ode Marítima
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Visão
(A J. M. Eça de Queiroz)
Eu vi o Amor — mas nos seus olhos baços
Nada sorria já: só fixo e lento
Morava agora ali um pensamento
De dor sem trégua e de íntimos cansaços.Pairava, como espectro, nos espaços,
Todo envolto n’um nimbo pardacento…
Na atitude convulsa do tormento,
Torcia e retorcia os magros braços…E arrancava das asas destroçadas
A uma e uma as penas maculadas,
Soltando a espaços um soluço fundo,Soluço de ódio e raiva impenitentes…
E do fantasma as lágrimas ardentes
Caíam lentamente sobre o mundo!
Silêncios
Largos Silêncios interpretativos,
Adoçados por funda nostalgia,
Balada de consolo e simpatia
Que os sentimentos meus torna cativos.Harmonia de doces lenitivos,
Sombra, segredo, lágrima, harmonia
Da alma serena, da alma fugidia
Nos seus vagos espasmos sugestivos.Ó Silêncios! ó cândidos desmaios,
Vácuos fecundos de celestes raios
De sonhos, no mais límpido cortejo…Eu vos sinto os mistérios insondáveis,
Como de estranhos anjos inefáveis
O glorioso esplendor de um grande beijo!
GRITO
De ti que inventaste
a paz
a ternura
e a paixão
o beijo
o beijo fundo intenso e louco
e deixaste lá para trás
a côncava do medo
à hora entre cão e lobo
à hora entre lobo e cão.De ti que em cada ano
cada dia cada mês
não paraste de acender
uma e outra vez
a flor eléctrica
do mais desvairado
coração.De ti que fugiste à estepe
e obrigaste
à ordem dos caminhos
o pastor
a cabra e o boi
e do fundo do tempo
me chamaste teu irmão.De ti que ergueste a casa
sobre estacas
e pariste
deuses e linguagens
guerras
e paisagens sem alento.De ti que domaste
o cavalo e os neutrões
e conquistaste
o lírico tropel
das águas e do vento.De ti que traçaste
a régua e esquadro
uma abóboda inquieta
semeada de nuvens e tritões
santidades e tormentos.De ti que levaste
a volupta da ambição
a trepar erecta
contra as leis do firmamento.
O Caixão Fantástico
Célere ia o caixão, e, nele, inclusas,
Cinzas, caixas cranianas, cartilagens
Oriundas, como os sonhos dos selvagens,
De aberratórias abstrações abstrusas!Nesse caixão iam talvez as Musas,
Talvez meu Pai! Hoffmânnicas visagens
Enchiam meu encéfalo de imagens
As mais contraditórias e confusas!A energia monástica do Mundo,
À meia-noite, penetrava fundo
No meu fenomenal cérebro cheio…Era tarde! Fazia muito frio.
Na rua apenas o caixão sombrio
Ia continuando o seu passeio!
Poema de Amor
O céu, as linhas de luz na água,
caminhos diferentes para o coração.
A queda de sons diversos na atenta coincidência
dos ouvidos. A relação de uma límpida tarde
com um movimento de ombros junto do teu corpo,
na luminosa sequência da tua voz.
Um andar divino de transparente espectro
sobre o fundo de árvores;
o acentuar da impressão dos teus olhos
na quente atmosfera estagnada.
Mas o súbito levantar do vento dissipou
a primitiva aparência. Um canto lívido
de mortas recordações apenas subsistiu,
o indefinido desgosto dos teus braços,
o remorso de gestos incompletos
que a memória suspende.
Nem me espanto já com a tua proximidade.
Bem vindos, decompostos lábios!
O ranger da cama sobrepõe-se
ao ruído das cigarras.
A Alma Esférica
Considero que a alma tem forma esférica (se é que tem alguma forma). Uma esfera em que uma luz fraca penetra ligeiramente – mas só ligeiramente – sob a superfície matizada, onde sensações e actos de consciência, como bolas de sabão, rodopiam mudando constantemente de cor.
Mais abaixo há apenas um leve vestígio de luz, como no fundo do mar, e depois a escuridão. Escuridão, escuridão.
Mas não é uma escuridão ameaçadora. É uma escuridão maternal.
Tema o homem a mulher, quando a mulher odeia: porque, no fundo, o homem é simplesmente mau; mas a mulher é perversa.
Cega
Parece-me que a luz imaculada
Que vem do teu olhar, todo doçuras,
Não verte no meu ser aquelas puras
Delícias de outra era já passada.Eu creio que essa pálpebra adorada
Não mais um flóreo empíreo de venturas
Descobre-me — na noite de amarguras,
De dúvidas intérminas cortada.Não olhas como olhavas, rindo, outrora,
Não abres a pupila, como a aurora
Nascendo, abre, feliz, radiosa e calma.A sombra, nos teus olhos, funda, existe!…
Tu’alma deve ser bem negra e triste
Se os olhos são, decerto, o espelho d’alma.
Evocação
Levanta-te Romeu do túmulo em que dormes
E vem sorrir de novo à boa, à eterna luz!
De noite, ouço dizer que há sombras desconformes
E as noites do passado, oh, devem ser enormes
Na atonia fatal das larvas e da cruz!Conchega gentilmente ao peito carcomido
Os restos do teu manto: — assim, que bem que estás!Na terra hão de julgar-te um grande Aborrecido
Que busca desdenhoso o centro do ruído
Nas horas vis do tedio e das insonias más.O mundo transformou-se; aquele fundo abismo
Do antigo amor fatal, fechou-se d’uma vez,
E tu filho gentil do velho romantismo,
Tu vens achar dormindo o rude prozaismo
No berço onde sonhava a doce candidez!No entanto pódes crer; faz muito menos frio
Á luz do novo sol; do gaz provocador;
E o século apesar de gasto e doentio,
Não pode já escutar o cântico sombrio
Que fala de edeaes e cousas sem valor!Em paz deixa dormir a terna Julieta
Que aos céus ainda por ti levanta as brancas mãos;
E enquanto por mim corre a tétrica ampulheta,
Existência, Corpo e Costumes, Como Eixos do Gosto
Na nossa actual maneira de ser, a nossa alma aprecia três tipos de prazer: aqueles que ela retira do próprio fundo da sua existência; outros que resultam da sua união com o corpo; e por fim, outros que radicam nos costumes e preconceitos que certas instituições, certos usos e certos hábitos lhe levam a apreciar.
São esses diferentes prazeres da nossa alma que constituem os objectos do gosto, como o belo, o bom, o agradável, o cândido, o delicado, o terno, o gracioso, o não sei o quê, o nobre, o grande, o sublime, o majestoso, etc. Por exemplo, quando sentimos prazer ao ver uma coisa que possui uma utilidade para nós, dizemos que ela é boa; quando sentimos prazer ao vê-la, sem dela abstrairmos uma utilidade manifesta, chamamo-la bela.
Nascer em Nós
Depositamos pouca fé em nós mesmos. Acreditamos que as boas soluções só podem chegar-nos de fora, como se fossemos incapazes de as criar… Quantas vezes a fé e a esperança aparecem como uma desculpa confortável em que nos instalamos e desistimos de trabalhar!? Queremos muito que tudo mude (para melhor), de uma vez só, com uma só chave milagrosa e… enquanto estamos a dormir.
Outro é o desafio da existência humana. Para além de saber esperar, é preciso lutar e sofrer. Esperar não é ficar à espera, mas encontrar forma para que as coisas aconteçam. O melhor do mundo está no fundo de nós, mas é preciso que o façamos nascer e crescer…As soluções estão, na maior parte dos casos, no seio dos problemas, quase sempre no exato ponto onde eles nasceram. Os problemas não são becos sem saída, mas muros a transpor: não são algo acabado, mas sim processos… não são quês, são comos.
Deus pode nascer em nós, não vem de fora, como um forasteiro. É connosco. É-nos íntimo. São as nossas mãos que o encarnam… é pela nossa vida que Ele quer chegar ao mundo.
Há muitos que o querem no alto,
Do Fundo da Mesa
O jantar já tinha sido servido. No fundo da mesa,
os pratos amontoavam-se por entre restos ilesos
de comida. Era para ali que nos retirávamos, para
deixar de sentir por momentos, sobre os ombros,
o peso da literatura. A sua incomodidade. Não
seria possível dela extrair, agora, um novo uso?
Nessas alturas, a filosofia consolava-nos do ruído
das conversas, da própria ênfase a que recorríamos
para que, sobre a mesa, o poema ficasse escrito.
Porque o fazíamos? Tornar-se-ia o mundo
mais limpo depois de escrito? Como as mãos
que no rebordo da toalha, enxugávamos?
E no entanto era esse o melhor argumento
de que dispúnhamos: o das mulheres-escritoras
que, noutro século, fiéis ao desvelo dos armários,
reinventavam o mundo no aconchego das cozinhas.
A Solidão não Constitui Alimento, apenas Jejum
Se não temos aptidão para fazer amigos, remodelemo-nos até consegui-la. A solidão só vale como remédio, como jejum – não constitui alimento; o carácter, como Goethe o viu com tanta clareza, só se forma no tumulto da vida. Se nos tornamos excessivamente introspectivos, estamos na senda da perdição, ainda que o nosso negócio seja a psicologia; olhar com persistência excessiva para dentro de nós mesmos é provocar o desastre do jogador de ténis que conscientemente mede a distância, os ângulos e a força dos golpes, ou como o pianista que pensa nos dedos. Os amigos são necessários, não só porque nos ouvem, como porque se riem para nós; através dos amigos conseguimos um pouco de objectividade, um pouco de modéstia, um pouco de cortesia; com eles também aprendemos as regras da vida, tornando-nos melhores jogadores dos jogos que a compõem.
Se queres ser amado, sê modesto; se queres ser admirado, sê orgulhoso; se queres as duas coisas, usa externamente a modéstia e internamente o orgulho. Mas o próprio orgulho pode ser modesto, raramente se deixando ver, e nunca se deixando ouvir.
Não revelar muita agudeza: os epigramas tornam-se odiosos quando farpeiam fundo a carne; e adoptar como lema o De vivis nil nisi bonum.
Quando uma lancha se afunda
Nunca a culpa é do patrão
É sempre de quem se amola
Lá no fundo do porão.
As Culturas de Indivíduo, Grupo, e Sociedade
O termo cultura tem associações diferentes conforme temos em mente o desenvolvimento de um indivíduo, de um grupo ou classe ou de toda uma sociedade. É parte da minha tesse que a cultura do indivíduo está dependente da cultura de um grupo ou classe, e que a cultura do grupo ou classe está dependente da cultura de toda a sociedade a que esse grupo ou classe pertence. Por isso, é a cultura da sociedade que é fundamental, e é o significado do termo «cultura» em relação a toda a sociedade que se devia examinar primeiro. Quando o termo «cultura» se aplica à manipulação de organismos inferiores – ao trabalho do bacteriologista ou do agricultor – o significado é bastante claro porque podemos obter unanimidade a respeito dos fins a serem atingidos, e podemos concordar quanto a tê-los atingidos ou não. Quando se aplica ao aperfeiçoamento do intelecto e espíritos humanos, é menos provável que concordemos em relação ao que a cultura é. O termo em si, significando alguma coisa a que se deve conscientemente aspirar em assuntos humanos, não tem uma uma história longa.
Como alguma coisa a ser alcançada com esforço deliberado, a «cultura» é relativamente inteligível quando nos preocupamos com o acto do indivíduo se autocultivar,
Escrevemos Docemente
Escrevemos docemente. Se a figura
sobe de estar tão funda a essa mesa
é que escrever se lembra. E só da altura
de se lembrar percorre a linha acesaa ponta de escrever, que traça a pura
forma de rosto que abre na tristeza.
E a tristeza ilumina de escultura
penumbras de volumes com que pesa.Por isso é docemente que da linha
de estar ali aonde sempre esteve
aparece figura de rainhaque sempre foi e agora só se escreve.
E escrevermos é como se na vinha
o sol se iluminasse. E fosse breve.