Ser Português, Ainda

Para ser português, ainda, vive-se entre letras de poemas e esperanças, cantigas e promessas, de passados esquecidos e futuros desejados, sem presente, sem pensamento, sem Portugal. Para ser português, ainda, aprende-se a existir no gume da tristeza, como um equilibrista num andaime de navalhas levantadas, numa obra que se vai construindo sob uma arquitectura de demolição. Tínhamos direito a um Portugal inteiro, com povo e com a terra, mas o povo enlouqueceu e a terra foi arrasada e tudo o que era pátria, doce e atrevida, se afasta à medida que olhamos para ela, tal é a ânsia de apagamento e de perdição. Restam-nos sons e riscos. Portugal encolheu-se. Escondeu-se nos poetas e cantores. Recolheu-se nas vozes fundas de onde nasceu. Portugal abrigou-se em portugueses e portuguesas nos quais uma ideia de Portugal nunca se perdeu.

Para se ser português, ainda, é preciso estreitar os olhos e molhar a garganta com vinho tinto para poder gritar que isto assim não é Portugal, não é país, não é nada. Torna-se cada vez mais difícil que o povo e a terra e a ideia se possam alguma vez reunir.
É preciso defender violentamente as instituições: a Universidade, o Parlamento, a Fundação Gulbenkian, o sistema judicial, a Igreja, as Forças Armadas e tudo o mais que segura Portugal. O povo em grande parte enlouqueceu. Tremo só de pensar no que diria se fosse consultado sobre o Código Penal, o Tratado de Maastricht, a política de imigração ou qualquer outra grande questão nacional. O que mais me assusta é o povo em armas, egoísta, xenófobo e prepotente. E maior é o susto quando há intelectuais que vão atrás dele. Ao pé do povo, os políticos são anjos. Ao pé do público, os artistas são modelos de bom gosto. Ao pé dos estudantes, os professores são todos sábios. Ao pé dos governados, até o Governo é bom.

Não se está a defender as elites. Está-se a defender a autoridade. Alguém que tenha coragem de ter mão em nós. A democracia liberal é obviamente o único sistema político que é aceitável, tem inúmeras qualidades, mas também são inumeráveis os defeitos. É, na verdade, a expressão institucional do ser humano. O pior é que os seres humanos, fora algumas excepções, são fracos, volúveis, egoístas, vaidosos, influenciáveis e maus. A única razão por que a liberdade tem de ser tão plena quanto é praticamente possível, é porque as alternativas, em vez de se limitarem a reflectir a humanidade, vão contra ela.
Se Portugal se perdeu, a culpa é nossa, mais do que quem manda em nós. Nos casos mais flagrantes de destruição, o poder político não tomou a iniciativa — fechou os olhos e, por subserviência ou suborno, tornou-se impotente, foi conivente —, deixou.

Para se ser português, ainda, temos de esquecer as facilidades abstractas, do povo, da governação, e fazer o esforço de localizar e escolher as «pessoas», aquelas que têm uma noção dos outros, das suas limitações e finitude, capazes de pensar e agir comunitariamente. São geralmente pessoas insatisfeitas e prejudicadas, perseguidas e ridicularizadas, admiradas por poucos e desprezadas ou desconhecidas da multidão, que se refugiam nas rochas duras das suas convicções, que não se cansam de exprimi-las, seja pela arte ou pela simples conversa. O povo tolera-os, mas dá-lhes um grande desconto, tornando-os inúteis, chamando-lhes líricos. Do que o povo gosta é de bajuladores. De quem diga que os portugueses são um grande povo e Portugal uma grande pátria e que, fora alguns ajustes, tudo há-de melhorar dentro de momentos. E, quando digo povo, incluo obviamente todos os portugueses.

Para se ser português é preciso, ainda, é preciso escolher, dizer, ouvir e fazer. Alguém há-de perceber. Não é fácil. Mas tem de se fazer um esforço. Tem de se ter consciência de que cada um teve uma parte na destruição, por indiferença ou ignorância, tanto faz.
Para se ser português, ainda, é preciso querer ser português outra vez. No meio de tantos males, só resta concluir e dizer, em voz alta: Ainda bem.