GRITO
De ti que inventaste
a paz
a ternura
e a paixão
o beijo
o beijo fundo intenso e louco
e deixaste lá para trás
a côncava do medo
à hora entre cão e lobo
à hora entre lobo e cão.De ti que em cada ano
cada dia cada mês
não paraste de acender
uma e outra vez
a flor eléctrica
do mais desvairado
coração.De ti que fugiste à estepe
e obrigaste
à ordem dos caminhos
o pastor
a cabra e o boi
e do fundo do tempo
me chamaste teu irmão.De ti que ergueste a casa
sobre estacas
e pariste
deuses e linguagens
guerras
e paisagens sem alento.De ti que domaste
o cavalo e os neutrões
e conquistaste
o lírico tropel
das águas e do vento.De ti que traçaste
a régua e esquadro
uma abóboda inquieta
semeada de nuvens e tritões
santidades e tormentos.De ti que levaste
a volupta da ambição
a trepar erecta
contra as leis do firmamento.
Passagens sobre Horas
1043 resultadosTu e Eu Meu Amor
Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.Nua a mão que segura
outra mão que lhe é dada
nua a suave ternura
na face apaixonada
nua a estrela mais pura
nos olhos da amada
nua a ânsia insegura
de uma boca beijada.Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.Nu o riso e o prazer
como é nua a sentida
lágrima de não ver
na face dolorida
nu o corpo do ser
na hora prometida
meu amor que ao nascer
nus viemos à vida.Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.Nua nua a verdade
tão forte no criar
adulta humanidade
nu o querer e o lutar
dia a dia pelo que há-de
os homens libertar
amor que a eternidade
é ser livre e amar.
Colhe o Dia, porque És Ele
Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem: outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.Por que tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.
Cantigas
1
Não há pressas, nem demoras,
No coração das cantigas;
Nem os relógios dão horas
Quando cantam raparigas.2
Como algum dia ando hoje;
Sou o mesmo apaixonado;
Quem disser que o tempo foge
É de nunca ter amado.3
A saudade é queda d’água
Que ao longe quebra, ao bater;
É um compasso de mágoa
Marcado por te não ver.4
Como um adeus de saudade
Não há palavra tão louca:
Dizer adeus, ninguém há-de
Ouvi-lo da minha boca.5
Quem ama liga-se à terra,
Quem canta, ao reino dos céus;
Quem pára que Deus o salve,
Quem anda que vá com Deus.
A Voz que Ouço quando Leio
Quando leio, há uma voz que lê dentro de mim. Paro o olhar sobre o texto impresso, mas não acredito que seja o meu olhar que lê. O meu olhar fica embaciado. É essa voz que lê. Quando é séria, ouço-a falar-me de assuntos sérios. Às vezes, sussurra-me. Às vezes, grita-me. Essa voz não é a minha voz. Não é a voz que, em filmagens de festas de anos e de natais, vejo sair da minha boca, do movimento dos meus lábios, a voz que estranho por, num rosto parecido com o meu, não me parecer minha. A voz que ouço quando leio existe dentro de mim, mas não é minha. Não é a voz dos meus pensamentos. A voz que ouço quando leio existe dentro de mim, mas é exterior a mim. É diferente de mim. Ainda assim, não acredito que alguém possa ter uma voz que lê igual à minha, por isso é minha mas não é minha. Mas, claro, não posso ter a certeza absoluta. Não só porque uma voz é indescritível, mas também porque nunca ninguém me tentou descrever a voz que ouve quando lê e porque eu nunca falei com ninguém da voz que ouço quando leio.
Os Dois Horizontes
Dois horizontes fecham nossa vida:
Um horizonte, — a saudade
Do que não há de voltar;
Outro horizonte, — a esperança
Dos tempos que hão de chegar;
No presente, — sempre escuro,—
Vive a alma ambiciosa
Na ilusão voluptuosa
Do passado e do futuro.Os doces brincos da infância
Sob as asas maternais,
O vôo das andorinhas,
A onda viva e os rosais;
O gozo do amor, sonhado
Num olhar profundo e ardente,
Tal é na hora presente
O horizonte do passado.Ou ambição de grandeza
Que no espírito calou,
Desejo de amor sincero
Que o coração não gozou;
Ou um viver calmo e puro
À alma convalescente,
Tal é na hora presente
O horizonte do futuro.No breve correr dos dias
Sob o azul do céu, — tais são
Limites no mar da vida:
Saudade ou aspiração;
Ao nosso espírito ardente,
Na avidez do bem sonhado,
Nunca o presente é passado,
Nunca o futuro é presente.Que cismas, homem? – Perdido
No mar das recordações,
Poema para Galileo
Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…
Eu sei… Eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar – que disparate, Galileo!
– e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação –
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.
Uma Vida Feliz
Uma condição de exaltado prazer somente se mantém por momentos ou, em alguns casos, e com algumas interrupções, por horas ou dias. Ela é o brilhante clarão ocasional da alegria, e não a sua chama firme e constante. Disso sempre estiveram tão cientes os filósofos que ensinaram ser a felicidade a finalidade da vida como aqueles que a eles se opuseram. A felicidade que concebiam não era a do arrebatamento, mas de momentos assim em meio a uma existência constituída de poucas e transitórias dores, muitos e variados prazeres, com um predomínio decidido do componente activo sobre o passivo, e tendo como fundamento do todo não esperar da vida mais do que ela é capaz de oferecer. Uma vida assim constituída, para aqueles que tiveram a boa fortuna de obtê-la, sempre pareceu merecedora da designação de feliz. E uma existência assim é, mesmo hoje em dia, o destino de muitos durante uma parte considerável de suas vidas. A educação falida e os arranjos sociais falidos são os únicos obstáculos reais que impedem que isso esteja ao alcance de quase todos.
Evocação
Levanta-te Romeu do túmulo em que dormes
E vem sorrir de novo à boa, à eterna luz!
De noite, ouço dizer que há sombras desconformes
E as noites do passado, oh, devem ser enormes
Na atonia fatal das larvas e da cruz!Conchega gentilmente ao peito carcomido
Os restos do teu manto: — assim, que bem que estás!Na terra hão de julgar-te um grande Aborrecido
Que busca desdenhoso o centro do ruído
Nas horas vis do tedio e das insonias más.O mundo transformou-se; aquele fundo abismo
Do antigo amor fatal, fechou-se d’uma vez,
E tu filho gentil do velho romantismo,
Tu vens achar dormindo o rude prozaismo
No berço onde sonhava a doce candidez!No entanto pódes crer; faz muito menos frio
Á luz do novo sol; do gaz provocador;
E o século apesar de gasto e doentio,
Não pode já escutar o cântico sombrio
Que fala de edeaes e cousas sem valor!Em paz deixa dormir a terna Julieta
Que aos céus ainda por ti levanta as brancas mãos;
E enquanto por mim corre a tétrica ampulheta,
O Brasil é feito por nós. Está na hora de desatar esses nós.
O varão mais forte é aquele que sabe dominar-se na hora da ira
O varão mais forte é aquele que sabe dominar-se na hora da ira.
Balada para um Homem na Multidão
Este homem que entre a multidão
enternece por vezes destacar
é sempre o mesmo aqui ou no japão
a diferença é ele ignorar.Muitos mortos foram necessários
para formar seus dentes um cabelo
vai movido por pés involuntários
e endoidece ser eu a percebê-lo.Sentam-no à mesa de um café
num andaime ou sob um pinheiro
tanto faz desde que se esqueça
que é homem à espera que cresça
a árvore que dá dinheiro.Alimentam-no do ar proibido
de um sonho que não é dele
não tem mais que esse frasco de vidro
para fechar a estrela do norte.
E só o seu corpo abolido
lhe pertence na hora da morte.
Sem dúvida Ovídio: Não é a arte que faz vogar os barcos rápidos com o auxílio da vela e do remo? que guia na carreira os carros ligeiros? A arte também deve governar o amor… Não abandona em meio caminho tua amante, desfraldando sozinho tuas velas. É lado a lado que se arriba ao porto, quando soa a hora da volúpia plena e,vencidos a um só tempo, jazem a mulher e o homem lado a lado. Foge ao medo que apressa, à obra furtiva.
A João De Deus
Se é lei, que rege o escuro pensamento,
Ser vã toda a pesquisa da verdade,
Em vez da luz achar a escuridade,
Ser uma queda nova cada invento;É lei também, embora cru tormento,
Buscar, sempre buscar a claridade,
E só ter como certa realidade
O que nos mostra claro o entendimento.O que há de a alma escolher, em tanto engano?
Se uma hora crê de fé, logo duvida;
Se procura, só acha… o desatino!Só Deus pode acudir em tanto dano:
Esperemos a luz duma outra vida,
Seja a terra degrêdo, o céu destino.
Não deve causar surpresa o facto de que as crianças nascidas fora do casamento sejam geralmente as melhores cabeças; são o resultado de uma hora espirituosa. Os filhos legítimos muitas vezes resultam do tédio.
Não te Arruínes, Alma, Enriquece
Centro da minha terra pecadora,
alma gasta da própria rebeldia,
porque tremes lá dentro se por fora
vais caiando as paredes de alegria?Para quê tanto luxo na morada
arruinada, arrendada a curto prazo?
Herdam de ti os vermes? Na jornada
do corpo te consomes ao acaso?Não te arruínes, alma, enriquece:
vende as horas de escória e desperdício
e compra a eternidade que mereces,sem piedade do servo ao teu serviço.
Devora a Morte e o que de nós terá,
que morta a Morte nada morrerá.Tradução de Carlos de Oliveira
Devo à Paisagem as Poucas Alegrias que Tive no Mundo
Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam. Até os mais próximos, os mais amigos, me cravaram na hora própria um espinho envenenado no coração. A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa. É claro que nunca um panorama me interessou como gargarejo. É mesmo um favor que peço ao destino: que me poupe à degradação das habituais paneladas de prosa, a descrever de cor caminhos e florestas. As dobras, e as cores do chão onde firmo os pés, foram sempre no meu espírito coisas sagradas e íntimas como o amor. Falar duma encosta coberta de neve sem ter a alma branca também, retratar uma folha sem tremer como ela, olhar um abismo sem fundura nos olhos, é para mim o mesmo que gostar sem língua, ou cantar sem voz. Vivo a natureza integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espectáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno. Bem sei que há gente que encontra o mesmo universo no jogo dum músculo ou na linha dum perfil.
Use a sua erudição como se fosse um relógio de bolso: não saque dela para mostrar as horas, mas diga que horas são se alguém lhe perguntar.
Nós Nunca Nos Entendemos
Após uma boa hora de conversa, entendemo-nos perfeitamente. Amanhã vem ter comigo com as mãos na cabeça, gritando:
– Como é possível? O que é que você percebeu? Não me disse isto e isto?
Isto e isto, perfeitamente. Mas o problema é que você, meu caro, nunca saberá nem eu lhe poderei nunca dizer como se traduz, em mim, aquilo que você me disse. Não falou turco, não. Eu e você usámos a mesma língua, as mesmas palavras. Mas que culpa temos nós de que as palavras, em si, sejam vazias? Vazias, meu caro. Ao dizê-las a mim, você preenche-as com o seu sentido; e eu, ao recebê-las, inevitavelmente preencho-as com o meu sentido. Pensámos que nos entendíamos; de facto, não nos entendemos.
E conto velho também é o facto de o sabermos. Eu não pretendo dizer nada de novo. Apenas volto a perguntar-lhe:
– Porque continua, então, a proceder como se não o soubesse? Porque continua a falar-me de si se sabe que para ser para mim como é para você mesmo e para eu ser, para si, como sou para mim, seria preciso que eu, dentro de mim, lhe desse a mesma realidade que você dá a si mesmo,
Isto anda tudo ligado
Ainda não vi ainda não
a impressionante mariposa
a pretendente pesarosa
a tarde morna e vagarosa
as duas faces da provável solidão
Ainda não vi a bomba H
ainda não vi a de neutrões
ainda não vi os meus travões
a ver se paro antes de chegar lá
Ainda não vi ainda não
o riso que tudo desvenda
o reverendo e a reverenda
o leão ferido e a sua senda
a face clara da possível confusão
Ainda não vi a hora H
ainda não vi a mão em V
ainda não vi o dia D
em que a guerra final começaráQuando eu nascer para a semana ó mana
quando eu nascer para a semana
hei-de ouvir o teu parecer
hás-de me dizer
se é cada coisa para seu lado
ou se isto anda tudo ligado
Ainda não vi ainda não
as artimanhas da saudade
a caravana na cidade
a incorruptibilidade
as duas faces da provável solidão
Ainda não vi a bomba H
ainda não vi a de neutrões
ainda não vi os meus travões
a ver se paro antes de chegar lá
Ainda não vi ainda não
o abraço à porta da taberna
a ideológica lanterna
a mão que avança para a perna
a face clara da possível confusão
Ainda não vi a hora H
ainda não vi a mão em V
ainda não vi o dia D
em que a guerra final começaráQuando eu nascer para a semana ó mana
quando eu nascer para a semana
hei-de ouvir o teu parecer
hás-de me dizer
se é cada coisa para seu lado
ou se isto anda tudo ligado
Ainda não vi ainda não
a grossa lágrima ao espelho
o grande chefe e o seu grupelho
o azul-turquesa e o vermelho
as duas faces da provável solidão
Ainda não vi a bomba H
ainda não vi a de neutrões
ainda não vi os meus travões
a ver se paro antes de chegar lá