Ah Deixem-me Dormir!
O Poeta
Olá, bom velho! é aqui o Hotel da Cova,
Tens algum quarto ainda para alugar?
Simples que seja, basta-me uma alcova…
(Como eu estou molhado! é de chorar…)
O povoO luar averte as orvalhadas sobre a rua!
Jezus! que lindo…Vamos! depressa! Vem, faze-me a cama,
Que eu tenho somno, quero-me deitar!
Ó velha Morte, minha outra ama!
Para eu dormir, vem dar-me de mamar…
A Sra JuliaSão as Janeiras da Lua!
O CoveiroOs quartos, meu senhor, estão tomados
Mas se quizer na valla (que é de graça…)
Dormem, alli, somente os desgraçados:
Têm bom dormir… bom sitio… ninguem passa…
O Zé dos LodosA lua é a nossa vacca, ó Maria!
Mugindo…Ainda lá, hontem, hospedei um moço
E não se queixa… E ha-de poupal-o a traça,
Porque esses hospedes só trazem osso,
E a carne em si, valha a verdade, é escassa.
O Dr. DelegadoA noite parece dia!
O PoetaEscassa, sim! mas tenho ossada ainda,
Emquanto que a alma, ai de mim! nada tem…
Guia-me ao quarto… (a lua vae tão linda!)
Dize-me: quantos annos me dás? Cem?
O Sr. AbbadeE esta? Em vez de trazer a opa que é de logar
Trouxe a d’anjinho!
A Mulher do MoleiroÉ o luar, Sr. Abbade, é o luar…
Oh cem! E os que eu não mostro e o peito guarda…
Os teus mortinhos, sim! dormem tão bem:
«Dormi, dormi! que vossa mãe não tarda,
Foi lavar á Fontinha de Belem…»
O AstronomoIsto lunar assim! Isto é o verao
De S. Martinho!
O CoveiroAqui. Fica melhor do que em 1^a:
Colxão assim não acha em parte alguma!
Os outros são de chumbo, de madeira,
Mas este, veja bem, é sumauma…
O Cego do CazalFaz solzinho, que horas são?
Cantando:«Colxão de raizes e de folhas, lizo,
Lençoes de terra brandos como espuma,
Dal-os-ei ao rol, no Dia de Juizo…»
Prompto. Quer mais alguma coiza? Fuma?
CarlotaÓ luar, anda mais devagarinho!
Deixa dormir o meu menino…
Coitadinho!
O PoetaMais nada. Boas-noites. Fecha a porta.
(Que linda noite! Os cravos vão a abrir…
Faz tanto frio)! Apaga a luz! (Que importa?
A roupa chega para me cobrir…)
A Mãe do PoetaAqui, espero-te, ha que tempo enorme!
Tens o logar quentinho…Toma lá para ti, guarda. E ouve: na hora
Final, quando a Trombeta além se ouvir,
Tu não me venhas acordar, embora
Chamem… Ah! deixa-me dormir, dormir!
DeusDorme, dorme.