Xácara do Infinito
Fazia papa-luaça
com lama azul dos paúis;
e embaciava a vidraça;
ou de olhos baços, azuis,
parados, largos, serenos,
como o silêncio dos mudos,
ou fitos, picos, pequenos,
venenos de ângulos agudos.Ou gargalhava estridente
como um riscar de repente
de uma faúlha de luz
em escuros de urros e uuus
que arrefecia os cabelos!
E a dissonância em novelos
rolava fundo e medonho
a meio do chão:.. Catrapuz!…
como um vómito de luz
a estoirar dentro dum sonho!Ou escancarava a vidraça
a rir pedradas de lata;
mas logo o feixe-desfeixe
porque a lata se desata
e cai em pata de pata
na lájea das cousas mortas
das mortas noites sem portas!E logo a Noite corria,
e a vista via… – não via:
porque entre o ver e o não ver
há uma distância a correr
que pode ser… – ou não ser
uma distância a valer!Aquele espaço intervalo
dum cabelo ou duma unha
à sensação de ter unha
é uma distância a cavalo
como a distância da unha
ao movimento da unha!
Longos
2409 resultadosAs Verdadeiras Necessidades não Têm Gostos
Nenhum conselho me parece mais útil para te dar do que este (e que nunca é demais repetir!): limita sempre tudo aos desejos naturais que tu podes satisfazer com pouca ou nenhuma despesa, evitando, contudo, confundir vícios com desejos. Porventura te interessa saber em que tipo de mesa, em que baixela de prata te é servida a refeição, ou se os escravos te servem com bom ritmo e solicitude? A natureza só necessita de uma coisa: a comida. (…) A fome dispensa pretensões, apenas reclama ser saciada, sem cuidar grandemente com quê. O triste prazer da gula vive atormentado na ânsia de continuar com vontade de comer mesmo quando saciado, de buscar o modo como atulhar, e não apenas encher o estômago, de achar maneira de excitar a sede extinta logo à primeira golada! Tem, por isso toda a razão Horácio quando diz que a sede não se interessa pela espécie de copo ou pela elegância da mão que o serve.
Se achas que têm para ti muita importância os cabelos encaracolados do escravo, ou a transparência do copo que te põe à frente, é porque não estás com sede. Entre outros benefícios que devemos à natureza conta-se este,
Num Bairro Moderno
Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama do papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.Como é saudável ter o seu conchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho da horta aglomerada
Pousara, ajoelhando, a sua giga.E eu, apesar do sol, examinei-a.
Pôs-se de pé, ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.Do patamar responde-lhe um criado:
“Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais.” È muito descansado,
Atira um cobre lívido, oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.
Quando Eu For Pequeno
Quando eu for pequeno, mãe,
quero ouvir de novo a tua voz
na campânula de som dos meus dias
inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
Subirás comigo as ruas íngremes
com a certeza dócil de que só o empedrado
e o cansaço da subida
me entregarão ao sossego do sono.Quando eu for pequeno, mãe,
os teus olhos voltarão a ver
nem que seja o fio do destino
desenhado por uma estrela cadente
no cetim azul das tardes
sobre a baía dos veleiros imaginados.Quando eu for pequeno, mãe,
nenhum de nós falará da morte,
a não ser para confirmarmos
que ela só vem quando a chamamos
e que os animais fazem um círculo
para sabermos de antemão que vai chegar.Quando eu for pequeno, mãe,
trarei as papoilas e os búzios
para a tua mesa de tricotar encontros,
e então ficaremos debaixo de um alpendre
a ouvir uma banda a tocar
enquanto o pai ao longe nos acena,
lenço branco na mão com as iniciais bordadas,
anunciando que vai voltar porque eu sou
[pequeno
e a orfandade até nos olhos deixa marcas.
Já Velho e Doente
«Seja a terra da Terceira
A minha coberta de alma»,
Disse eu na idade fagueira,
Em que tudo é força e calma.Mas hoje, já velho e doente,
Em que as almas não se cobrem,
Hoje sim, peço seriamente
Que os sinos por mim lá dobrem.Até já me aconselharam
Um quarto lá no Hospital,
Tanto caipora me acharam,
Escaveirado, mal, mal…Ali visitas teria
Por obra de misericórdia,
Embora comida fria,
Alguma vez, que mixórdia!Mas sempre era doce ao peito
Ir acabar os meus dias
Na Praia, de qualquer jeito,
Perto da casa das tias.Tive o exemplo resignado
Que me deu a prima Alzira
Num lençolinho lavado
Com rendas limpas na vira.Ali matámos saudades,
Ela alegre e penteadinha,
Mal pensando eu que as idades
Não perdoam. Hoje é a minha.Também cheguei a pensar
No Asilo, talvez com um biombo.
Sou biqueiro. Mas jantar?
Todos ali, lombo a lombo.Como outrora o Tintaleis,
Três-Quinze, Manuel de Deus
Eram duas vezes seis,
A Vida em Conformidade com Princípios mais Elevados
Se a pessoa der ouvidos às subtis mas constantes sugestões do seu espírito, sem dúvida autênticas, não vê a que extremos, e até loucura, ele pode levá-la; contudo, por aí envereda o seu caminho à medida que cresce em resolução e fé. A mais leve objecção segura que um homem sadio fizer, com o tempo prevalecerá sobre os argumentos e costumes da humanidade. Nenhum homem jamais seguiu a sua índole a ponto de esta o extraviar. Embora o resultado fosse fraqueza física, ainda assim talvez ninguém pudesse dizer que as consequências eram lamentáveis, já que representariam a vida em conformidade com princípios mais elevados. Se o dia e a noite são de tal natureza que vós os saudais com alegria, se a vida emite uma fragrância de flores e ervas aromáticas e se torna mais elástica, mais cintilante e mais imortal – aí está o vosso êxito.
A natureza inteira é a vossa congratulação e tendes motivos terrenos para bendizer-vos. Os maiores lucros e valores estão ainda mais longe de serem apreciados. Chegamos facilmente a duvidar de que existam. Logo os esquecemos. Constituem, entretanto, a realidade mais elevada.
Talvez os factos mais estarrecedores e verdadeiros nunca sejam comunicados de homem a homem.
Aborrecido de Estudar
Enfastiavam-me as aulas, salvo as de literatura — que aprendia de cor — e tinha nelas um protagonismo único. Aborrecido de estudar, deixava tudo à mercê da boa sorte. Tinha um instinto próprio para pressentir os pontos álgidos de cada matéria e quase adivinhar os que mais interessavam aos professores para não estudar o resto. A realidade é que não entendia por que devia sacrificar engenho e tempo em matérias que não me interessavam e, pela mesma razão, não me iam servir para nada numa vida que não era minha.
Atrevi-me a pensar que a maioria dos meus professores me classificava mais pela minha maneira de ser do que pelos meus exames. Salvavam-me as minhas respostas imprevistas, as minhãs ideias dementes, as minhas invenções irracionais. No entanto, quando acabei o quinto ano, com sobressaltos académicos que não me sentia capaz de superar, tomei consciência dos meus limites. O bacharelato tinha sido até então um caminho empedrado de milagres, mas avisava-me o coração que no final do quinto me esperava uma muralha intransponível. A verdade sem adornos era que me faltava já a vontade, a vocação, a ordem, o dinheiro e a ortografia para embarcar numa carreira académica. Melhor dizendo: os anos voavam e não fazia a mínima ideia do que ia fazer da minha vida,
A Força da Intuição
Para adquirirmos o bilhete de ida ao amor que somos basta estarmos atentos e confiarmos nos sinais que recebemos de dentro e de fora. São pistas, são oportunidades, autênticos tesouros que nos devolvem a casa. Será que estás desperto para isto? Será que consegues reconhecer-te enquanto sabedoria superior? Repito, todos os dias te surgem novas oportunidades. Todos os dias! Se existe força que nunca desiste é a nossa intuição. Todos os dias se faz ouvir e pode manifestar-se nas mais simples sensações.
Desde cedo que aprendi a escutar-me e a interpretar os sinais que a vida me dava. Não me sinto superior a ninguém, mas a consciencialização desta verdade coloca-nos num patamar distinto, de visibilidade maior e certezas absolutas. Certezas próprias, a nosso respeito, claro está. Convicções que nos catapultam para estados prolongados de felicidade e que nos permitem antecipar acontecimentos, habilitando-nos com um apurado leque de escolhas acertadas e condizentes com aquilo que verdadeiramente somos. Ou seja, já não vamos a todas, só vamos onde sentimos que devemos ir e onde sabemos que se encontram fragmentos nossos. Isto é ser espiritual.
Alegria e Tranquilidade
A alegria pode sofrer interrupções no caso de pessoas ainda insuficientemente avançadas, enquanto, no caso do sábio, o bem estar é um tecido contínuo que nenhuma ocorrência, nenhum acidente pode romper; em todo o tempo, em todo o lugar o sábio goza de tranquilidade! Porquê? Porque o sábio não depende de factores externos, não está à espera dos favores da fortuna ou dos outros homens. A sua felicidade está dentro dele; fazê-la vir de fora seria expulsá-la da alma, que é onde, de facto, a felicidade nasce! Pode uma vez por outra surgir qualquer ocorrência que lembre ao sábio a sua condição de mortal, mas ocorrências deste tipo são de somenos importância e não o atingem mais do que à flor da pele. O sábio, insisto, pode ser tocado ao de leve por um ou outro contratempo, mas para ele o sumo bem permanece inalterável. Volto a dizer que lhe podem ocorrer contratempos provindos do exterior, tal como um homem de físico robusto não está livre de um furúnculo ou de uma ferida superficial; em profundidade, porém, não há mal que o atinja.
A diferença existente, insisto ainda outra vez, entre o homem que atingiu a plenitude da sabedoria e aquele que ainda lá não chegou é a mesma que se verifica entre um homem são e um convalescente de doença grave e prolongada.
O Prazer no Costume
Uma importante variedade do prazer e, com isso, fonte da moralidade, provém do hábito. O usual faz-se mais facilmente, melhor, portanto, com mais agrado, sente-se nisso um prazer e sabe-se, por experiência, que o habitual deu bom resultado, daí é útil; um costume, com o qual se pode viver, está provado que é salutar, proveitoso, ao contrário de todas as tentativas novas, ainda não comprovadas. O costume é, por conseguinte, a união do agradável e do útil; além disso, não exige reflexão. Assim que o homem pode exercer coacção, exerce-a para impor e introduzir os seus costumes, pois para ele, eles são a comprovada sabedoria prática. De igual modo, uma comunidade de indivíduos obriga cada um deles ao mesmo costume.
Aqui está a conclusão errada: porque uma pessoa se sente bem com um costume ou, pelo menos, porque por intermédio do mesmo assegura a sua existência, então esse costume é necessário, pois passa por ser a única possibilidade de uma pessoa se conseguir sentir bem; o agrado da vida parece emanar exclusivamente dele. Esta concepção do habitual como uma condição da existência é aplicada até aos mais pequenos pormenores do costume: dado que o conhecimento da verdadeira causalidade é muito escasso entre os povos e as civilizações que se encontram a um nível baixo,
A Leitura é a Maior das Amizades
A amizade, a amizade que diz respeito aos indivíduos, é sem dúvida uma coisa frívola, e a leitura é uma amizade. Mas pelo menos é uma amizade sincera, e o facto de ela se dirigir a um morto, a uma pessoa ausente, confere-lhe algo de desinteressado, de quase tocante. E além disso uma amizade liberta de tudo quanto constitui a fealdade dos outros. Como não passamos todos, nós os vivos, de mortos que ainda não entraram em funções, todas essas delicadezas, todos esses cumprimentos no vestíbulo a que chamamos deferência, gratidão, dedicação e a que misturamos tantas mentiras, são estéreis e cansativas. Além disso, — desde as primeiras relações de simpatia, de admiração, de reconhecimento, as primeiras palavras que escrevemos, tecem à nossa volta os primeiros fios de uma teia de hábitos, de uma verdadeira maneira de ser, da qual já não conseguimos desembaraçar-nos nas amizades seguintes; sem contar que durante esse tempo as palavras excessivas que pronunciámos ficam como letras de câmbio que temos que pagar, ou que pagaremos mais caro ainda toda a nossa vida com os remorsos de as termos deixado protestar. Na leitura, a amizade é subitamente reduzida à sua primeira pureza.
Com os livros,
Ouvir a Voz Interior
Não preste atenção ao que os outros dizem, ao que eles lhe dizem para ser. Escute sempre a sua voz interior, aquilo que gostaria de ser; de outro modo desperdiçará toda a sua vida. A sua mãe quer que seja engenheiro, o seu pai quer que seja médico e você quer ser poeta. Que fazer? É evidente que a mãe tem razão, porque ser engenheiro é mais interessante do ponto de vista económico e financeiro. O pai também tem razão; ser médico é uma boa mercadoria, tem um valor de mercado. Um poeta? Enlouqueceste? És doido? Os poetas são uma raça maldita. Ninguém os quer. Não há necessidade nenhuma deles; o mundo pode existir sem poesia — não haverá qualquer problema lá por não haver poesia. O mundo não pode existir sem engenheiros; o mundo precisa de engenheiros. Quando se é necessário, tem-se um valor. Quando não se é necessário, não se tem qualquer valor.
Mas se você quiser ser poeta, seja poeta. Poderá ser um pedinte – óptimo. Poderá não vir a ser muito rico, mas não se preocupe – porque de outro modo poderá vir a ser um grande engenheiro e poderá ganhar muito dinheiro, mas nunca se sentirá realizado.
A História e o Progresso ao Sabor do Vento
Na sua maior parte a história faz-se sem autores. Não acontece a partir de um centro, mas da periferia. De pequenas causas. Talvez não seja tão difícil como se pensa fazer do homem gótico ou do grego antigo o homem da civilização moderna. Porque a natureza humana é tão capaz do canibalismo como da crítica da razão pura; é capaz de realizar as duas coisas com as mesmas convicções e as mesmas qualidades, se as circunstâncias forem propícias, e nesses processos a grandes diferenças externas correspondem diferenças internas mínimas.
(…) O caminho da história não é o de uma bola de bilhar que, uma vez jogada, percorre uma determinada trajectória; assemelha-se antes ao caminho das nuvens, ou ao de um vagabundo a deambular pelas vielas, que se distrai a observar, aqui uma sombra, ali um magote de gente, mais adiante o recorte curioso das fachadas, até que por fim chega a um ponto que não conhece e por onde nem tencionava passar. Há no decurso da história universal um certo erro de percurso. O presente é sempre como a última casa de uma cidade, que de certo modo já não faz bem parte do casario dessa cidade. Cada geração pergunta,
Elementos de Vitória
Estão cheias as livrarias de todo o mundo de livros que ensinam a vencer. Muitos deles contêm indicações interessantes, por vezes aproveitáveis. Quase todos se reportam particularmente ao êxito material, o que é explicável, pois é esse o que supremamente interessa a grande maioria dos homens.
A ciência de vencer é, contudo, facílima de expor; em aplicá-la, ou não, é que está o segredo do êxito ou a explicação da falta dele. Para vencer – material ou imaterialmente – três coisas definíveis são precisas: saber trabalhar, aproveitar oportunidades, e criar relações. O resto pertence ao elemento indefinível, mas real, a que, à falta de melhor nome, se chama sorte.
Não é o trabalho, mas o saber trabalhar, que é o segredo do êxito no trabalho. Saber trabalhar quer dizer: não fazer um esforço inútil, persistir no esforço até o fim, e saber reconstruir uma orientação quando se verificou que ela era, ou se tornou, errada.
Aproveitar oportunidades quer dizer não só não as perder, mas também achá-las. Criar relações tem dois sentidos – um para a vida material, outro para a vida mental. Na vida material a expressão tem o seu sentido directo. Na vida mental significa criar cultura.
Como Queiras, Amor…
Como queiras, Amor, como tu queiras.
Entregue a ti, a tudo me abandono,
seguro e certo, num terror tranquilo.
A tudo quanto espero e quanto temo,
entregue a ti, Amor, eu me dedico.Nada há que eu não conheça, que eu não saiba,
e nada, não, ainda há por que eu não espere
como de quem ser vida é ter destino.As pequeninas coisas da maldade, a fria
tão tenebrosa divisão do medo
em que os homens se mordem com rosnidos
de malcontente crueldade imunda,
eu sei quanto me aguarda, me deseja,
e sei até quanto ela a mim me atrai.Como queiras, Amor, como tu queiras.
De frágil que és, não poderás salvar-me.
Tua nobreza, essa ternura tépida
quais olhos marejados, carne entreaberta,
será só escárneo, ou, pior, um vão sorriso
em lábios que se fecham como olhares de raiva.
Não poderás salvar-me, nem salvar-te.
Apenas como queiras ficaremos vivos.Será mais duro que morrer, talvez.
Entregue a ti, porém, eu me dedico
àquele amor por qual fui homem, posse
e uma tão extrema sujeição de tudo.
Moralidade e Felicidade
A felicidade é o estado em que se encontra no mundo um ser racional para quem, em toda a sua existência, tudo decorre conforme o seu desejo e a sua vontade; pressupõe, por consequência, o acordo da natureza com todo o conjunto dos fins deste ser, e simultaneamente com o fundamento essencial de determinação da sua vontade. Ora a lei moral, como lei da liberdade, obriga por meio de fundamentos de determinação, que devem ser inteiramente independentes da natureza e do acordo dela com a nossa faculdade de desejar (como motor). Porém, o ser agente racional que actua no mundo não é simultaneamente causa do mundo e da própria natureza. Assim, pois, na lei moral não há o menor fundamento para uma conexão necessária entre a moralidade e a felicidade, com ela proporcionada, num ser que, fazendo parte do mundo, dele depende; este ser, precisamente por isso, não pode ser voluntariamente a causa desta natureza nem, no que à felicidade respeita, fazer com que, pelas suas próprias forças, coincida perfeitamente com os seus próprios princípios práticos.
E, todavia, no problema prático que a razão pura nos prescreve, isto é, na prossecução do soberano bem, tal acordo é postulado como necessário: devemos procurar realizar o soberano bem,
Os Treze Anos
(Cantilena)
Já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro:
Madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.Já sou mulherzinha,
já trago sombreiro,
já bailo ao domingo
com as mais no terreiro.Já não sou Anita,
como era primeiro;
sou a Senhora Ana,
que mora no outeiro.Nos serões já canto,
nas feiras já feiro,
já não me dá beijos
qualquer passageiro.Quando levo as patas,
e as deito ao ribeiro,
olho tudo à roda,
de cima do outeiro.E só se não vejo
ninguém pelo arneiro,
me banho co’as patas
Ao pé do salgueiro.Miro-me nas águas,
rostinho trigueiro,
que mata de amores
a muito vaqueiro.Miro-me, olhos pretos
e um riso fagueiro,
que diz a cantiga
que são cativeiro.Em tudo, madrinha,
já por derradeiro
me vejo mui outra
da que era primeiro.O meu gibão largo,
de arminho e cordeiro,
já o dei à neta
do Brás cabaneiro,dizendo-lhe: «Toma
gibão,
Gosto das Belas Coisas Claras e Simples
Para quê alcançar os astros?! Para quê?! Para os desfolhar, por exemplo, como grandes flores de luz! Vê-los, vê-os toda a gente. De que serve então ser poeta se se é igual à outra gente toda, ao rebanho?… Eu não peço à Vida nada que ela me não tivesse prometido, e detesto-a e desdenho-a porque não soube cumprir nem uma das suas promessas em que, ingenuamente, acreditei, porque me mentiu, porque me traiu sempre. Mas não choro, não, como os portugueses chorões, não tenho nada de Jeremias, pareço-me antes com Job, revoltado, gritando imprecações no seu monte de estrume. Não gosto de lágrimas, de fados nem de guitarras, gosto das belas coisas claras e simples, das grandes ternuras perfeitas, das doces compreensões silenciosas, gosto de tudo, enfim, onde encontro um pouco de Beleza e de Verdade, de tudo menos do bípede humano, em geral, é claro, porque há ainda no mundo, graças a Deus, almas-astros onde eu gosto de me reflectir, almas de sinceridade e de pureza sobre as quais adoro debruçar a minha.
A Análise dos Sentimentos
Os sentimentos experimem a felicidade, fazem sorrir. A análise dos sentimentos exprime a felicidade, pondo de parte toda a personalidade; faz sorrir. Aqueles elevam a alma, dependentemente do espaço, do tempo, até à concepção da humanidade considerada em si mesma, nos seus membros ilustres! Esta eleva a alma, independentemete do tempo, do espaço, até à concepção da humanidade considerada na sua mais alta expressão, a vontade! Aqueles tratam dos vícios, das virtudes; esta trata apenas das virtudes. Os sentimentos não conhecem a ordem da sua marcha. A análise dos sentimentos ensina a fazê-la conhecer, aumenta o vigor dos sentimentos. Com eles, tudo é incerteza. São a expressão da felicidade e da infelicidade, dois extremos. Com ela, tudo é certeza. Ela é a expressão daquela felicidade que resulta, em determinado momento, de nos sabermos conter no meio das paixões boas ou más.
Ela utiliza a sua calma para fundir a descrição dessas paixões num princípio que circula através das páginas: a não-existência do mal. Os sentimentos choram quando lhes é preciso, tanto como quando lhes não é. A análise dos sentimentos não chora. Possui uma sensibilidade latente, que apanha desprevenido, arrasta por cima das misérias, ensina a dispensar guia, fornece uma arma de combate.
As Sete Penas do Amor Errante
Eu não sei se os teus olhos se gaivotas
mas era o mar e a Índia já perdida
as ilhas e o azul o longe e as rotas
minha vida em pedaços repartida.Eu não sei se o teu rosto se um navio
mas era o Tejo a mágoa a brisa o cais
meu amor a partir-se à beira-rio
em uma nau chamada nunca mais.Eu não sei se os teus dedos se as amarras
mas era algo que partia e que
ficava. Ou talvez cordas de guitarras
ó meu amor de embarque desembarque.Eu não sei se era amor ou se loucura
mas era ainda o verbo descobrir
ó meu amor de risco e de aventura
não sei se Ceuta ou Alcácer Quibir.Eu não sei se era perto se distante
mas era ainda o mar desconhecido
ou Camões a penar por Violante
as sete penas do amor proibido.Eu não sei se ventura se castigo
mas era ainda o sangue e a memória
talvez o último cantar de amigo
amor de perdição amor de glória.