Da Simpatia Sublime
É a simpatia um dos prodígios selados da natureza; mas os seus efeitos são matéria do pasmo, são assunto da admiração. Consiste num parentesco dos corações, se a antipatia for um divórcio das vontades.
Alguns dão-lhe origem na correspondência em temperamentos; outros, na irmandade dos astros. Aspira aquela a obrar milagres, e esta monstruosidades. São prodígios da simpatia os que a comum ignorância reduz a efeitos e a vulgaridade a encantos.
A mais culta perfeição sofreu desprezos da antipatia, e a mais inculta fealdade logrou finezas da simpatia. Até entre pais e filhos pretendem jurisdição e executam a cada dia a sua potência, atropelando leis e frustrando privilégios de natureza e política. Perde reinos a antipatia de um pai e dá-os uma simpatia.
Tudo alcançam os méritos da simpatia; persuade sem eloquência e recolhe quanto queira, presenteando memoriais de harmonia natural. A simpatia realçada é carácter, é estrela de heroicidade; mas alguns há de gosto íman, que mantêm antipatia com o diamante e simpatia com o ferro. Monstruosidade da natureza, apetecer escória e asquear o luzimento.
Passagens sobre Matéria
253 resultadosA Inveja Passeia pelas Ruas
O homem que não tiver virtude própria sempre invejará a virtude dos outros. A razão disso é que a alma humana nutre-se do bem próprio ou do mal alheio, e aquela que carece de um, aspira a obter o outro, e aquele que está longe de esperar obter méritos de outrem, procurará nivelar-se com ele, destruindo-lhe a fortuna.
As pessoas que são curiosas e indiscretas são geralmente invejosas; porque conhecer muito a respeito da vida alheia não pode resultar do que concerne os próprios negócios. Isso deve provir, portanto, de tomar uma espécie de prazer teatral a admirar a fortuna dos outros. Aliás, quem não se ocupa senão dos próprios negócios não encontra matéria para invejas. Porque a inveja é uma paixão calaceira, isto é, passeia pelas ruas e não fica em casa.
Aquilo a que chamamos espírito parece-me muito mais material do que aquilo a que chamamos matéria; sinto a minha alma mais manifesta e mais sensível do que o meu corpo.
Satisfazer-se mais com Intensidade do que com Quantidade
A perfeição não consiste na quantidade, mas na qualidade. Tudo o que é muito bom sempre foi pouco e raro: o muito é descrédito. Mesmo entre os homens, os gigantes costumam ser os verdadeiros anões. Alguns avaliam os livros pela corpulência, como se escritos para exercitar mais os braços do que os engenhos. A extensão sozinha nunca pôde exceder a mediocridade, e essa é a praga dos homens universais: por quererem estar em tudo, estão em nada. A intensidade dá eminência, e é heróica se em matéria sublime.
Retrocesso Civilizacional
São talvez as prioridades dos nossos tempos que acarretam um retrocesso e uma eventual depreciação da vida contemplativa. Mas há que confessar que a nossa época é pobre em grandes moralistas, que Pascal, Epicteto, Séneca, Plutarco pouco são lidos ainda, que o trabalho e o esforço – outrora, no séquito da grande deusa Saúde – parecem, por vezes, grassar como uma doença. Porque faltam tempo para pensar e sossego no pensar, já não se examina as opiniões diferentes: a gente contenta-se em odiá-las. Dada a enorme aceleração da vida, o espírito e o olhar são acostumados a ver e a julgar parcial ou erradamente, e toda a gente se assemelha aos viajantes que ficam a conhecer um país e um povo, vendo-os do caminho-de-ferro.
Uma atitude independente e cautelosa em matéria de conhecimento é menosprezada quase como uma espécie de tolice, o espírito livre é difamado, nomeadamente, por eruditos que, na sua arte de observar as coisas, sentem a falta da minúcia e do zelo de formigas que lhes são próprios, e bem gostariam de bani-lo para um canto isolado da ciência: quando ele tem a missão, completamente diferente e superior, de comandar, a partir de uma posição solitária,
Pacto Das Almas (II) Longe De Tudo
É livre, livre desta vã matéria,
Longe, nos claros astros peregrinos
Que havereemos de encontrar os dons divinos
E a grande paz, a grande paz sidérea.Cá nesta humana e trágica miséria,
Nestes surdos abismos assassinos
Termos de colher de atros destinos
A flor apodrecida e deletéria.O baixo mundo que troveja e brama
Só nos mostra a caveira e só a lama,
Ah! só a lama e movimentos lassos…Mas as almas irmãs, almas perfeitas,
Hão de trocar, nas Regiões eleitas,
Largos, profundos, imortais abraços!
Aos Mortos
Oh! não é bom rir-se de um morto — brusca
Pois deve ser a sensação que aumenta
Desoladora, vagarosa, lenta
Da negra morte tétrica velhusca…Tudo que em vida, como um sol, corusca,
Que nos aquece, que nos acalenta,
Tudo que a dor e a lágrima afugenta,
O olhar da morte nos apaga e ofusca…Nunca se deve desprezar os mortos…
Nos regelados e sombrios portos,
Onde a matéria se transforma e urgeExuberar na planturosa leiva,
Vivem os mortos no vigor da seiva,
Porque dão vida ao que da vida surge!…
O Amolecimento pela Sociedade de Consumo
Nos países subdesenvolvidos, a arte (literatura, pintura, escultura) entra quase sempre em conflito com as classes possidentes, com o poder instituído, com as normas de vida estabelecidas. Em revolta aberta, o artista, originário por via de regra da média e da pequena burguesia ou mais raramente das classes proletárias, contesta o statu quo, propõe soluções revolucionárias ou, quando estas não podem sequer divisar-se, limita-se a derruir (ou a tentar fazê-lo pela crítica, violenta ou irónica) o baluarte dos preconceitos, das defesas que os beneficiários do sistema de produção ergueram contra as aspirações da maioria. Nas sociedades industriais mais adiantadas, o artista pode permanecer numa atitude idêntica de inconformismo; porém, os resultados da sua actividade de criação e reflexão tornam-se matéria vendável e, nalguns casos, matéria integrável.
O consumo do objecto artístico, seja ele o livro, o quadro ou o disco, quando feito sob uma tutela de opinião, que os meios de comunicação de massa, em escala larguíssima , exercem, torna-se, senão totalmente inócuo, pelo menos parcialmente esvaziado do seu conteúdo crítico. Despotencializa-se. Amolece. É o que se verifica, por exemplo, em boa parte, nos Estados Unidos. A ideologia repressiva da liberdade no mundo capitalista monopolista torna-se tanto mais perigosa quanto aborve,
O Engano do Imediato
É preciso dominar a impressão produzida pelo que é visível e presente; tal impressão tem uma força extraordinária se for confrontada com o que é meramente pensado e sabido, não em virtude de sua matéria e seu conteúdo, frequentemente insignificantes, mas da sua forma, da clareza e do imediatismo por meio dos quais ela se impõe ao espírito, perturbando a sua paz ou até mesmo fazendo vacilar os seus propósitos. É assim que algo agradável, ao qual renunciamos depois de reflectir, nos estimula quando o temos diante dos olhos; assim nos magoa um julgamento cuja incompetência é do nosso conhecimento, irrita-nos uma ofensa cujo carácter desprezível compreendemos; da mesma maneira, dez razões contra a existência de um perigo são sobrepujadas pela falsa aparência da sua real presença etc.
(…) Quando todos os que nos circundam têm uma opinião diferente da nossa e se comportam em conformidade com ela, é difícil não ficarmos abalados, por mais que estejamos convencidos do erro dessas pessoas. Pois o que é presente, o visível, por estar facilmente ao alcance da vista, age sempre com toda a sua força; em contrapartida, pensamentos e causas requerem tempo e calma para serem analisados com cuidado, razão pela qual não podemos tê-los presentes a todo o instante.
Câmara Escura
A meu pai
3
A biografia. Revejo-a em tecidos
fibrosos, retraindo-se. É já visível
a anquilose o vento austero
disperso pelos gestos, mais lentose difíceis. A migração das aves
inicia-se. Junto à costa
atlântica, falava-me do tempo, a viração
nefasta, o nevoeiroporoso, sobre os ossos. Era o período
de estado: rajadas cubitais, golpes
de vento, as migrações da dor, articulares…
As metáforas clínicas. Procura,apesar disso, algum sossego. Invoca ainda
o elemento natal, o livro prematuro
do inverno. E a dureza da neve,
os domínios do gelo, imprevisíveis.Com as chuvas de abril, a migração
atinge órgãos vitais. A violência
perdida pelos móveis, nas janelas
translúcidas, no rumo vagarosoda voz. Vigia os gestos, os indícios de
pânico, a previsível eclosão
da crise. Deformações, desvio dos
dedos no lado cubital, arthritis– o peso das noções.
Endurecem os sons, as linhas vistas
até ao declínio, o vento imóvel
semeado nos campos. Todo o regressopersiste na matéria: os vários
motores de frio,
Em matéria de religião, não deve o sábio ser nem supersticioso, nem ímpio.
Nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos.
Os que falam em matérias que não entendem parecem fazer gala da sua própria ignorância.
Mesmo que abandones todos os bens materiais, se continuas pensando que o homem é existência material, permaneces apegado à matéria; mesmo possuindo bens materiais, se compreendes que a matéria não é existência verdadeira, estás plenamente desapegado da matéria e és livre.
A Superficialidade dos Grandes Espíritos
Não há nada de mais perigoso para o espírito do que a sua relação com as grandes coisas. Alguém deambula por uma floresta, sobe a um monte e vê o mundo estendido a seus pés, olha para um filho que lhe colocam pela primeira vez nos braços, ou desfruta da felicidade de assumir uma posição invejada por todos. Perguntamos: o que se passa nele em tais momentos? Ele próprio certamente pensa que são muitas coisas, profundas e importantes; mas não tem presença de espírito suficiente para, por assim dizer, as tomar à letra. O que há de admirável, diante dele e fora dele, que o encerra numa espécie de gaiola magnética, arranca os pensamentos do seu interior. O seu olhar perde-se em mil pormenores, mas ele tem a secreta sensação de ter esgotado todas as munições. Lá fora, esse momento inspirado, solar, profundo, essa grande hora, recobre o mundo com uma camada de prata galvanizada que penetra todas as folhinhas e veias; mas na outra extremidade em breve se começa a notar uma certa falta de substância interior, e nasce aí uma espécie de grande «O», redondo e vazio. Este estado é o sintoma clássico do contacto com tudo o que é eterno e grande,
Em matérias e opiniões políticas os crimes de um tempo são algumas vezes virtudes em outro.
Os Amantes Obscuros
Nossos sentidos juntos fazem chama:
e as fantasias nossas vão soltar
os desejos desertos de quem ama
e em verso ou coração se quis tornar.Nossos sentidos são matéria prima
de um canto que é mais leve do que o ar;
o mundo todo não nos adivinha:
somos sombra sem luz, sequer luar.Que o corpo quebre a noite desolada,
que o corvo ceda a voz à escuridão:
mil luzes são o nome da amada;
quem se perdeu no verso é sem perdão.
Para criar uma idade de ouro para o seu cérebro, tem de usar o dom com que a natureza o dotou de uma nova maneira. Não é o número de neurónios ou algum passe de mágica dentro da sua matéria cinzenta que torna a vida mais vital, inspiradora e bem-sucedida.
Os povos livres são os únicos a ter uma história; os outros possuem apenas crónicas: são matéria para o erudito, e o género humano não os conhece.
A Firmeza é um Atributo Essencial de Morte
Não somos firmes no amor, porque em nada podemos ser constantes: continuamente nos vai mudando o tempo; uma hora de mais é mais em nós uma mudança. A cada passo que damos no decurso da vida, imos nascendo de novo, porque a cada passo imos deixando o que fomos, e começamos a ser outros: cada dia nascemos, porque cada dia mudamos, e quanto mais nascemos desta sorte, tanto mais nos fica perto o fim, que nos espera. A inconstância, que é um acto da alma, ou da vontade, não se faz sem movimento; a natureza não se conserva, e dura, senão porque se muda, e move.
O mundo teve o seu princípio no primeiro impulso, que lhe deu o supremo Artífice; a mesma luz, que é uma bela imagem da Omnipotência, toda se compõe de uma matéria trémula, inconstante, e vária. Tudo vive enfim do movimento; a falta de mudança é o mesmo que falta de vida, e de existência, e assim a firmeza é como um atributo essencial de morte.