Passagens sobre Mortos

709 resultados
Frases sobre mortos, poemas sobre mortos e outras passagens sobre mortos para ler e compartilhar. Leia as melhores citações em Poetris.

Ouvi-los a Todos, no Silêncio

Detesto a acção. A acção mete-me medo. De dia podo as minhas árvores, à noite sonho. Sinto Deus – toco-o. Deus é muito mais simples do que imaginas. Rodeia-me – não o sei explicar. Terra, mortos, uma poeira de mortos que se ergue em tempestades, e esta mão que me prende e sustenta e que tanta força tem…
Como em ti, há em mim várias camadas de mortos não sei até que profundidade. Às vezes convoco-os, outras são eles, com a voz tão sumida que mal a distingo, que desatam a falar. Preciso da noite eterna: só num silêncio mais profundo ainda, conto ouvi-los a todos.

Mensagem – Mar Português

MAR PORTUGUÊS

Possessio Maris

I. O Infante

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!

II. Horizonte

Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
’Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa —
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves,

Continue lendo…

Dia de Natal

Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?)
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente acotovela,

Continue lendo…

Tradição significa conceder votos à mais obscura de todas as classes: nossos ancestrais. É a democracia dos mortos. A tradição recusa submeter-se a essa arrogante oligarquia que meramente ocorre estar andando por aí.

Minha Mãe, Minha Mãe!

Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa,
Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti.
Caía mansa a noite; e andorinhas aos pares
Cruzavam-se voando em torno dos seus lares,
Suspensos do beiral da casa onde eu nasci.
Era a hora em que já sobre o feno das eiras
Dormia quieto e manso o impávido lebréu.
Vinham-nos da montanha as canções das ceifeiras,
E a Lua branca, além, por entre as oliveiras,
Como a alma dum justo, ia em triunfo ao Céu!…
E, mãos postas, ao pé do altar do teu regaço,
Vendo a Lua subir, muda, alumiando o espaço,
Eu balbuciava a minha infantil oração,
Pedindo ao Deus que está no azul do firmamento
Que mandasse um alívio a cada sofrimento,
Que mandasse uma estrela a cada escuridão.
Por todos eu orava e por todos pedia.
Pelos mortos no horror da terra negra e fria,
Por todas as paixões e por todas as mágoas…
Pelos míseros que entre os uivos das procelas
Vão em noite sem Lua e num barco sem velas
Errantes através do turbilhão das águas.

Continue lendo…

Lembranças Apagadas

Outros, mais do que o meu, finos olfatos,
Sintam aquele aroma estranho e belo
Que tu, ó Lírio lânguido, singelo,
Guardaste nos teus íntimos recatos.

Que outros se lembrem dos sutis e exatos
Traços, que hoje não lembro e não revelo
E se recordem, com profundo anelo,
Da tua voz de siderais contatos…

Mas eu, para lembrar mortos encantos,
Rosas murchas de graças e quebrantos,
Linhas, perfil e tanta dor saudosa,

Tanto martírio, tanta mágoa e pena,
Precisaria de uma luz serene,
De uma luz imortal maravilhosa!…

O homem tem um tecto, (que os gregos atingiram), para além disso, já não percebemos nada. Somos joguetes do destino. O Espinosa dizia: “Supomos que somos livres porque ignoramos as forças obscuras que nos manipulam”. E S. Paulo: “Se Cristo não ressuscitou, a nossa crença é vã”. Não sabemos: nenhum dos nossos mortos disse qualquer coisa.

Fim

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza…
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro.

Soneto de Mal Amar

Invento-te    recordo-te   distorço
a tua imagem mal e bem amada
sou apenas a forja em que me forço
a fazer das palavras tudo ou nada.

A palavra desejo incendiada
lambendo a trave mestra do teu corpo
a palavra ciúme atormentada
a provar-me que ainda não estou morto.

E as coisas que eu não disse? Que não digo:
Meu terraço de ausência    meu castigo
meu pântano de rosas afogadas.

Por ti me reconheço e contradigo
chão das palavras mágoa joio e trigo
apenas por ternura levedadas.

Os Deuses Reclinados

… Por todos os lados as estátuas de Buda, de Lorde Buda… As severas, verticais, carcomidas estátuas, com um dourado de resplendor animal, com uma dissolução como se o ar as desgastasse… Crescem-lhes nas faces, nas pregas das túnicas, nos cotovelos, nos umbigos, na boca e no sorriso pequenas máculas: fungos, porosidades, vestígios excrementícios da selva… Ou então as jacentes, as imensas jacentes, as estátuas de quarenta metros de pedra, de granito areento, pálidas, estendidas entre as sussurrantes frondes, inesperadas, surgindo de qualquer canto da selva, de qualquer plataforma circundante… Adormecidas ou não adormecidas, estão ali há cem anos, mil anos, mil vezes mil anos… Mas são suaves, com uma conhecida ambiguidade ultraterrena, aspirando a ficar e a ir-se embora… E aquele sorriso de suavíssima pedra, aquela majestade imponderável, mas feita de pedra dura, perpétua, para quem sorriem, para quem, sobre a terra sangrenta?… Passaram as camponesas que fugiam, os homens do incêndio, os guerreiros mascarados, os falsos sacerdotes, os turistas devoradores…

E manteve-se no seu lugar a estátua, a imensa pedra com joelhos, com pregas na túnica de pedra, com o olhar perdido e não obstante existente, inteiramente inumana e de alguma forma também humana, de alguma forma ou de alguma contradição estatuária,

Continue lendo…

Vivemos de Matar

Os vivos alimentam-se e engordam às custas dos mortos. É a essência da natureza. Basta ver os documentários sobre a vida selvagem na televisão, aves corpulentas arrancando com o bico as tripas das vítimas, disputando-as entre si; a leoa de focinho enterrado na carne ensanguentada da zebra. Mas nem é preciso ir tão longe: as prateleiras dos supermercados são deprimentes cemitérios: paletes de cordeiro morto, ossos e costeletas de boi esfaqueado, vísceras de vaca sacrificada, lombo de porco eletrocutado, tudo isso em embalagens fabricadas com restos de árvores abatidas. Vivemos do que matamos. Vivemos de matar, ou do que nos é servido morto: os herdeiros consomem os despojos do predecessor, e isso nutre-os, fortalece-os no momento de levantar voo. Quanto maior a quantidade de carne consumida, mais alto e majestoso o voo. E mais elegante, claro. Nada que seja alheio às regras da natureza.

À Minha Mulher

Eu estava morto e vivo agora
Tu pegaste-me na mão

Eu morri cegamente
Tu pegaste-me na mão

Tu viste-me morrer
E encontraste-me a vida

Tu foste a minha vida
Quando eu morri

Tu és a minha vida
E assim eu vivo

Vita Nuova

Se ao mesmo gozo antigo me convidas,
Com esses mesmos olhos abrasados,
Mata a recordação das horas idas,
Das horas que vivemos apartados!

Não me fales das lágrimas perdidas,
Não me fales dos beijos dissipados!
Há numa vida humana cem mil vidas,
Cabem num coração cem mil pecados!

Amo-te! A febre, que supunhas morta,
Revive. Esquece o meu passado, louca!
Que importa a vida que passou? que importa,

Se inda te amo, depois de amores tantos,
E inda tenho, nos olhos e na boca,
Novas fontes de beijos e de prantos?!

O Tonel do Rancor

O Rancor é o tonel das Danaidas alvíssimas;
A Vingança, febril, grandes olhos absortos,
procura em vão encher-lhes as trevas profundíssimas,
Constante, a despejar pranto e sangue de mortos.

O Diabo faz-lhe abrir uns furos misteriosos
Por onde se estravasa o líquido em tropel;
Mil anos de labor, de esforços fatigosos,
Tudo seria vão para encher o tonel.

O Rancor é qual ébrido em sórdida taverna,
Que quanto mais bebeu inda mais sede tem,
Vendo-a multiplicar como a hidra de Lerna.

– Mas se o ébrio feliz sabe com quem se avém,
O Rancor, por seu mal, não logra conseguir,
Qual torvo beberrão, acabar por dormir.

Tradução de Delfim Guimarães

Ave Dolorosa

Ave perdida para sempre – crença
Perdida – segue a trilha que te traça
O Destino, ave negra da Desgraça,
Gêmea da Mágoa e núncia da Descrença!

Dos sonhos meus na Catedral imensa
Que nunca pouses. Lá, na névoa baça
Onde o teu vulto lúrido esvoaça,
Seja-te a vida uma agonia intensa!

Vives de crenças mortas e te nutres,
Empenhada na sanha dos abutres,
Num desespero rábido, assassino…

E hás de tombar um dia em mágoas lentas,
Negrejadas das asas lutulentas
Que te emprestar o corvo do Destino!