O Homem é o Animal Menos Preparado
A capacidade do homem para o pensamento abstracto, que parece faltar à maioria dos outros mamíferos, conferiu-lhe sem dúvida o seu actual domínio sobre a superfície da Terra – um domínio disputado apenas por centenas de milhares de tipos de insectos e organismos microscópicos. Este pensamento abstracto é o responsável pela sua sensação de superioridade e pelo que, sob esta sensação, corresponde a uma certa medida de realidade, pelo menos dentro de estreitos limites. Mas o que é frequentemente subestimado é o facto de que a capacidade de desempenhar um acto não é, de forma alguma, sinónima de seu exercício salubre. É fácil observar que a maior parte do pensamento do homem é estúpida, sem sentido e injuriosa para ele. Na realidade, de todos os animais, ele parece o menos preparado para tirar conclusões apropriadas nas questões que afectam mais desesperadamente o seu bem-estar.
Tente imaginar um rato, no universo das ideias dos ratos, chegando a noções tão ocas de plausibilidade como, por exemplo, o Swedenborgianismo, a homeopatia ou a telepatia mental. O instinto natural do homem, de facto, nunca se dirige para o que é sólido e verdadeiro; prefere tudo que é especioso e falso. Se uma grande nação moderna se confrontar com dois problemas antagónicos – um deles baseado em argumentos prováveis e racionais,
Passagens sobre Multidão
224 resultadosSer Português, Ainda
Para ser português, ainda, vive-se entre letras de poemas e esperanças, cantigas e promessas, de passados esquecidos e futuros desejados, sem presente, sem pensamento, sem Portugal. Para ser português, ainda, aprende-se a existir no gume da tristeza, como um equilibrista num andaime de navalhas levantadas, numa obra que se vai construindo sob uma arquitectura de demolição. Tínhamos direito a um Portugal inteiro, com povo e com a terra, mas o povo enlouqueceu e a terra foi arrasada e tudo o que era pátria, doce e atrevida, se afasta à medida que olhamos para ela, tal é a ânsia de apagamento e de perdição. Restam-nos sons e riscos. Portugal encolheu-se. Escondeu-se nos poetas e cantores. Recolheu-se nas vozes fundas de onde nasceu. Portugal abrigou-se em portugueses e portuguesas nos quais uma ideia de Portugal nunca se perdeu.
Para se ser português, ainda, é preciso estreitar os olhos e molhar a garganta com vinho tinto para poder gritar que isto assim não é Portugal, não é país, não é nada. Torna-se cada vez mais difícil que o povo e a terra e a ideia se possam alguma vez reunir.
É preciso defender violentamente as instituições: a Universidade, o Parlamento,
É por ter Espírito que me Aborreço
É preciso esconjurar, da forma que nos for possível, este diabo de vida que não sei porque é que nos foi dada e que se torna tão facilmente amarga se não opusermos ao tédio e aos aborrecimentos uma vontade de ferro. É preciso, numa palavra, agitar este corpo e este espírito que se delapidam um ao outro na estagnação e numa indolência que se confunde com um torpor. É preciso passar, necessariamente, do descanso ao trabalho – e reciprocamente: só assim estes parecerão, ao mesmo tempo, agradáveis e salutares. Um desgraçado que trabalhe sem cessar, sob o peso de tarefas inadiáveis, deve ser, sem dúvida, extremamente infeliz, mas um indivíduo que não faça mais do que divertir-se não encontrará nas suas distracções nem prazer nem tranquilidade; sente que luta contra o tédio e que este o prende pelos cabelos – como se fosse um fantasma que se colocasse sempre por detrás de cada distracção e espreitasse por cima do nosso ombro.
Não julgue, cara amiga, que eu só porque trabalho regularmente estou isento das investidas deste terrível inimigo; penso que, quando se tem uma certa disposição de espírito, é preciso termos uma imensa energia de forma a não nos deixarmos absorver e conseguir escapar,
Se nos amesquinharem a fama e cercearem a glória, desviando de nós as multidões, que não pensam e vão para onde as levam, melhor. Os que nos querem, os que nos amam, os que nos entendem, ficarão connosco. Os outros, deixando-nos, prestam-nos favor.
O que é para um homem a vergonha abstracta de um país quando comparada com a sua vergonha pessoal, as dores silenciosas da sua humilhação? No grande plano da História, o sofrimento é sobrevalorizado pelo colectivo e diluído na multidão. No plano fechado do indivíduo, as angústias têm de ser digeridas a frio, na solidão, sem que ninguém nos possa valer.
O riso é a mais útil forma da crítica, porque é a mais acessível à multidão. O riso dirige-se não ao letrado e ao filósofo, mas à massa, ao imenso público anónimo.
Filosofia Simplificada
É uma objecção pobre contra um filósofo dizer que é ininteligível. Ininteligibilidade é um conceito relativo, e aquilo que o Caio ou Ticiano frequentemente louvado não entende nem por isso é ininteligível. E mesmo a filosofia tem, de facto, algo que segundo a sua natureza sempre permanecerá ininteligível à grande multidão. Mas é algo inteiramente outro se a ininteligibilidade está na coisa mesma. – Ocorre frequentemente que cabeças que, com grande exercício e habilidade, mas sem possuirem propriamente inventividade para tarefas mecânicas, se dispõem, por exemplo, a inventar uma máquina de tornear garrafas – fabricam perfeitamente uma, mas o mecanismo é tão difícil e artificioso ou as engrenagens rangem tanto, que se prefere voltar a tornear garrafas com as mãos, à moda antiga. O mesmo pode perfeitamente passar-se na filosofia. O sofrimento com a ignorância sobre os objectos primeiros, sobre os maiores, para todos os homens que sentem, que não são embotados ou estreitamente auto-suficientes, é grande e pode aumentar até se tornar insuportável. Mas se o martírio de um sistema antinatural é maior do que aquele fardo da ignorância, prefere-se no entanto continuar a suportar este. Pode-se bem admitir que também a tarefa da filosofia, se é em geral resolúvel,
A Moralidade Pública Degradada
As crianças ficam todas contentes quando encontram na praia alguns calhaus coloridos; nós preferimos enormes colunas variegadas, importadas das areias do Egipto ou dos desertos do Norte de África para a construção de algum pórtico ou de um salão de banquetes com capacidade para uma multidão. Olhamos com admiração paredes recobertas de placas de mármore, embora cientes do material que lá está por baixo. Iludimos os nossos próprios olhos: quando recobrimos os tectos a ouro o que fazemos senão deleitar-nos com uma mentira ? Sabemos bem que por baixo desse ouro se oculta reles madeira! Mas não são só as paredes ou os tectos que se recobrem de uma ligeira camada: também a felicidade destes aparentes grandes da nossa sociedade é uma felicidade «dourada»! Observa atentamente, e verás a corrupção que se esconde sob essa leve capa de dignidade. Desde que o dinheiro (que tanto atrai a atenção de inúmeros magistrados e juízes e tantos mesmo promove a magistrados e juízes!…), desde que o dinheiro, digo, começou a merecer honras, a honra autêntica começou a perder terreno; alternadamente vendedores ou objectos postos à venda, habitua-mo-nos a perguntar pela quantidade, e não pela qualidade das coisas. Somos boas pessoas por interesse,
Portugal
Maior do que nós, simples mortais, este gigante
foi da glória dum povo o semideus radiante.
Cavaleiro e pastor, lavrador e soldado,
seu torrão dilatou, inóspito montado,
numa pátria… E que pátria! A mais formosa e linda
que ondas do mar e luz do luar viram ainda!
Campos claros de milho moço e trigo loiro;
hortas a rir; vergéis noivando em frutos de oiro;
trilos de rouxinóis; revoadas de andorinhas;
nos vinhedos, pombais: nos montes, ermidinhas;
gados nédios; colinas brancas olorosas;
cheiro de sol, cheiro de mel, cheiro de rosas;
selvas fundas, nevados píncaros, outeiros
de olivais; por nogais, frautas de pegureiros;
rios, noras gemendo, azenhas nas levadas;
eiras de sonho, grutas de génios e de fadas:
riso, abundância, amor, concórdia, Juventude:
e entre a harmonia virgiliana um povo rude,
um povo montanhês e heróico à beira-mar,
sob a graça de Deus a cantar e a lavrar!
Pátria feita lavrando e batalhando: aldeias
conchegadinhas sempre ao torreão de ameias.
Cada vila um castelo. As cidades defesas
por muralhas, bastiões, barbacãs, fortalezas;
e, a dar fé, a dar vigor,
O Artista e a sua Obra
O artista tem pois essa experiência com a sua obra: ele não produziu uma essência igual a ele mesmo. Sem dúvida, da sua obra retorna para ele uma consciência, pois uma multidão admirativa honra a obra como o espírito que é a essência deles. Essa admiração, porém, ao lhe restituir a sua consciência de si apenas como admiração é antes uma confissão feita ao artista de que ela não é igual a ele. Uma vez que o seu Si retorna para ele como júbilo em geral, ali ele não encontra nem a dor da sua formação e da sua produção, nem o esforço do seu trabalho. Os outros podem de facto julgar a obra ou trazer-lhe oferendas, conceber, de algum modo, que ela seja a sua consciência; se eles se colocam com o seu saber acima dela, o artista, pelo contrário, sabe o quanto a sua operação vale mais do que a compreensão e o discurso deles; se eles se colocam abaixo dela e nela reconhecem a essência deles que os domina, ele conhece-a, pelo contrário, como o seu senhor.
Muitas vezes há mais bom senso numa única pessoa do que numa multidão.
Opinião Independente
É fácil viver no mundo conforme a opinião do mundo: é fácil na solidão viver conforme a própria opinião; mas grande homem é o que, no meio da multidão, conserva com plena serenidade a independência da solidão.
A Multidão Embrutece
Assim que muitos homens se encontram juntos, perdem-se. A multidão transporta as suas unidades do presente para o passado e precipita-as de cima para baixo: trata-se de um recuo e uma decadência.
Todo o homem, lá dentro, converte-se noutro – mas pior. Nas multidões, a união é constituída pelos inferiores e fundada nas partes inferiores de todas as almas. São florestas em que os ramos altos não se entrelaçam, mas apenas, em baixo na escuridão, as raízes terrosas. Todos perdem o que os torna diferentes e melhores, enquanto o antigo rústico – que, entre obstáculos, mordaças e açaimos, parecia aniquilado – acorda e muge. Em todas as multidões, como em toda a Humanidade, os medíocres são infinitamente mais que os grandes, os calmos que os violentos, os simples que os profundos, os primitivos que os civilizados, e é a maioria que cria a alma comum que imbrica e nivela todo o agrupamento de homens.
Aquele que em cada um forma o seu superior não pode conformar-se e fundir-se – é a pessoa única e, portanto, incomunicável. Toda a pessoa se opõe às outras, existe enquanto é diferente, não se pode liquefazer num todo. Mas há em cada um de nós,
Ninguém pode, por muito tempo, ter um rosto para si mesmo e outro para a multidão sem no final confundir qual deles é o verdadeiro.
A Tranquilidade do Assumir da Nossa Condição
Temos pelos nobres e para as pessoas de destaque um cíume estéril, ou um ódio impotente que não nos vinga de seu esplendor e elevação, e só faz acrescentar à nossa própria miséria o peso insuportável da felicidade alheia: que fazer contra uma doença de alma tão inveterada e contagiosa? Contentemo-nos com pouco e com menos ainda, se possível; saibam perder na ocasião; a receita é infalível, e concordo em experimentá-la: evito com isso ser empurrado na porta pela multidão de clientes ou cortesãos que a casa de um ministro despeja diversas vezes por dia; penar na sala de audiência, pedir tremendo ou balbuciando uma coisa justa; suportar a gravidade do ministro, o seu riso amargo, e o seu laconismo. Então não o odeio mais, e não o invejo mais; ele não me faz nenhuma súplica, eu não lhe faço nenhuma; somos iguais, a não ser no facto dele não estar tranquilo, e eu estar.
(…) Deve-se silenciar sobre os poderosos; há quase sempre adulação ao dizer bem deles; há perigo em dizer mal enquanto vivem, e cobardia quando já morreram.
Balada para um Homem na Multidão
Este homem que entre a multidão
enternece por vezes destacar
é sempre o mesmo aqui ou no japão
a diferença é ele ignorar.Muitos mortos foram necessários
para formar seus dentes um cabelo
vai movido por pés involuntários
e endoidece ser eu a percebê-lo.Sentam-no à mesa de um café
num andaime ou sob um pinheiro
tanto faz desde que se esqueça
que é homem à espera que cresça
a árvore que dá dinheiro.Alimentam-no do ar proibido
de um sonho que não é dele
não tem mais que esse frasco de vidro
para fechar a estrela do norte.
E só o seu corpo abolido
lhe pertence na hora da morte.
A Cidade de Palaguin
Na cidade de Palaguin
o dinheiro corrente era olhos de crianças.
Em todas as ruas havia um bordel
e uma multidão de prostitutas
frequentava aos grupos casas de chá.
Havia dramas e histórias de era uma vez
havia hospitais repletos:
o pus escorria da porta para as valetas.
Havia janelas nunca abertas
e prisões descomunais sem portas.
Havia gente de bem a vagabundear
com a barba crescida.
Havia cães enormes e famélicos
a devorar mortos insepultos e voantes.
Havia três agências funerárias
em todos os locais de turismo da cidade.
Havia gente a beber sofregamente
a água dos esgotos e das poças.
Havia um corpo de bombeiros
que lançava nas chamas gasolina.Na cidade de Palaguin
havia crianças sem braços e desnudas
brincando em parques de pântanos e abismos.
Havia ardinas a anunciar
a falência do jornal que vendiam;
havia cinemas: o preço de entrada
era o sexo dum adolescente
(as mães cortavam o sexo dos filhos
para verem cinema).
Havia um trust bem organizado
para a exploração do homossexualismo.
A Vaidade Cega a Sabedoria
Os sábios da terra não são os mais próprios para o governo dela. As Repúblicas, que se fundaram, ou se quiseram governar por sábios, perderam-se, acabaram-se; temos notícia delas pelo que foram, e não pelo que são. (…) As maiores crueldades, ou foram feitas, ou aconselhadas pelos Sábios; estes quando persuadem o mal, é com tanta veemência, e tão eficazmente, que as gentes na boa fé, buscam, e particam esse mal, como por entusiasmo, e sem advertirem nele. A impiedade, é uma das coisas que a ciência ensina; não porque seja o seu objecto, ou instituto, mas porque quando a impiedade é útil, à força de a ornar, se lhe tira o horror. A vaidade das ciências não consente, que haja cousa de que ela não possa, nem se saiba aproveitar.
Os erros comummente são partos da sabedoria humana; o errar propriamente é dos sábios, porque o erro supõe conselho, e premeditação; os ignorantes quási que obram por instinto; a ciência sabe legitimar o erro, a ignorância não; por isso nesta não há perigo de que ninguém o aprove; ao passo que naquela há o perigo de que a multidão o siga. O erro na mão de um sábio é como uma lança penetrante,
Aplausos passam, troféus empoeiram-se, ganhadores, esquecidos. As pessoas que mais significam, são as que encantam. Não são as que movem multidões, são as que marcam do jeito que são.
O Criador de Opinião
O papel de criador e director de movimentos de opiniões pertence aos homens de Estado em todas as questões que interessam a vida exterior de um país. A sua tarefa é extremamente penosa. Eles devem possuir, com efeito, uma mentalidade bastante desenvolvida para que a lógica racional lhes sirva de guia, devendo, no entanto, actuar nos homens por influências afectivas e místicas, estranhas à razão, únicas, porém, capazes de acarretá-los.
Esses grandes elementos morais, que cumpre saber manejar, serão durante muito tempo ainda os mais possantes factores aptos a dirigir os povos. Eles não criam os navios e os canhões, mas, como se exprimiu o almirante Togo, «são a alma dos navios e dos canhões». As influências irracionais, que provocam os movimentos de opiniões, incessantemente mudam, conforme a luz variável que banha as coisas. Deve-se saber adivinhá-las, quando se as quer dominar e não esquecer que uma opinião qualquer universalmente aceite constituirá sempre, para a multidão, uma verdade.