A Génese de um Poema
A maior parte dos escritores, sobretudo os poetas, preferem deixar supor que compõem numa espécie de esplêndido frenesim, de extática intuição; literalmente, gelar-se-iam de terror à ideia de permitir ao público que desse uma espreitadela por detrás da cena para ver os laboriosos e incertos partos do pensamento, os verdadeiros planos compreendidos só no último minuto, os inúmeros balbucios de ideias que não alcançaram a maturidade da plena luz, as imaginações plenamente amadurecidas e, no entanto, rejeitadas pelo desespero de as levar a cabo, as opções e as rejeições longamente ponderadas, as tão difíceis emendas e acrescentas, numa palavra, as rodas e as empenas, as máquinas para mudança de cenário, as escadas e os alçapões, o vermelhão e os postiços que em 99% dos casos constituem os acessórios do histrião literário.
(…) No que a mim diz respeito, não compartilho da repugnância de que falei e nunca senti a mínima dificuldade em rememorar a marcha progressiva de todas as minhas obras. Escolho O Corvo por ser a mais conhecida. Proponho-me demonstrar claramente que nenhum pormenor da sua composição se pode explicar pelo acaso ou pela intuição, que a obra se desenvolveu, a par e passo, até à sua conclusão com a precisão e o rigor lógico de um problema matemático.
Passagens sobre Obras
616 resultadosA Verdadeira Leitura
As obras dos grandes poetas até hoje não foram lidas pela humanidade, porque só grandes poetas podem lê-las. Só foram lidas como a multidão lê as estrelas, quando muito astrologicamente, e não astronomicamente. A maioria dos homens aprendeu a ler tendo em vista a utilidade mesquinha, do mesmo modo que aprendeu a calcular para tomar nota das receitas e despesas e não ser trapaceado nos negócios; mas da leitura como exercício intelectual nobre, pouco ou nada sabe; contudo isso é que é leitura em accepção elevada, não aquela que nos embala como um luxo e adormenta as nossas mais nobres faculdades, e sim a que nos mantém expectantes e à qual devotamos as nossas horas mais alertas e despertas.
Delirio
Não posso crêr na morte do Menino!
E julgo ouvi-lo e vê-lo, a cada passo…
É ele? Não. Sou eu que desatino;
É a minha dôr soffrida, o meu cansaço.Delirio que me prendes num abraço,
Emendarás a obra do Destino?
Vê-lo-ei sorrir, de novo, no regaço
Da mãe? Verei seu rosto pequenino?Misterio! Sombra imensa! Alto segredo!
Jamais! jamais! Quem sabe? Tenho mêdo!
Que vejo em mim? A treva? a luz futura?Ah, que a dôr infinita de o perder
Seja a alegria de o tornar a ver,
Meu Deus, embora noutra creatura!
Em havendo olhos maus, não há obras boas.
Álvaro
… Diabo de homem, este Álvaro… Agora chama-se Álvaro de Silva… Vive em Nova Iorque… Passou quase toda a vida na selva nova-iorquina… Imagino-o a comer laranjas a horas insólitas, queimando com o fósforo o papel dos cigarros, fazendo perguntas vexatórias a toda a gente… Foi sempre um mestre desordenado, possuidor de uma brilhante inteligência, inteligência inquiridora que parecia não o levar a pparte nenhuma, excepto a Nova Iorque. Era em 1925…
Entre as violetas que se lhe escapavam da mão quando corria para as entregar a uma transeunte desconhecida, com a qual queria logo ir deitar-se, sem saber como ela se chamava nem donde era, e as suas intermináveis leituras de Joyce, revelou-me a mim e a muitos outros insuspeitadas opiniões, pontos de vist-a de grande cidadão que vive dentro da urbe, na sua cova, e sai a explorar a música, a pintura, os livros, a dança… Sempre a comer laranjas, a descascar maçãs, insuportável dietético, assombrosamente intrometido em tudo, víamos nele, por fim, o sonhado antiprovinciano que todos nós, os provincianos, tínhamos querido ser, sem as etiquetas coladas nas malas, antes circulando dentro de si próprio, com uma mistura de países e concertos, de cafés ao alvorecer,
Da Poesia e da Tragédia
Parece que a poesia tem inteiramente a sua origem em duas causas, ambas naturais. Porque a imitação é natural ao homem desde a infância, e nisto difere dos outros animais, pois que ele é o mais imitador de todos, aprende as primeiras coisas por meio da imitação, e todos se deleitam com as imitações. É prova disto o que acontece a respeito dos artífices, porque nós contemplamos com prazer as imagens mais exactas daqueles mesmos objectos para que olhamos com repugnância; por exemplo, a representação de animais ferocíssimos e de cadáveres. E a razão disto é porque o aprender é coisa que muito apraz não só aos filósofos, mas também igualmente aos demais homens, posto que estes sejam menos instruídos. Por isso se alegram de ver as imagens, pois que, olhando para elas, podem aprender e discorrer o que uma delas é e dizer, por exemplo: isto é tal; porque, se suceder que alguém não tenha visto o original, não recebe então prazer da imitação, mas ou da beleza da obra, ou das cores, ou de outro algum motivo semelhante.
Sendo, pois, própria da nossa natureza a imitação, também o é a harmonia e o ritmo (porque é claro que os metros são parte do ritmo).
Todo o Leitor é Leitor de si Mesmo
Na realidade, todo leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo. A obra não passa de uma espécie de instrumento óptico oferecido ao leitor a fim de lhe ser possível discernir o que, sem ela, não teria certamente visto em si mesmo.
Não fiques satisfeito com tua obra, a não ser que tenhas empenhado força total. Não enganes a ti próprio. Quando começares a enganar a ti próprio, cessará o teu progresso.
O Embuste dos Artistas e Escritores
Estamos habituados, perante tudo o que é perfeito, a omitir a questão do seu processo evolutivo, regozijando-nos antes com a sua presença, como se ele tivesse saído do chão por artes mágicas. Provavelmente, estamos ainda, neste caso, sob o efeito residual de um antiquíssimo sentimento mitológico. Quase nos sentimos ainda (por exemplo, num templo grego como o de Pesto) como se, numa manhã, um deus, brincando, tivesse construído a sua morada com tão gigantescos fardos. Outras vezes, como se um espírito tivesse subitamente sido metido por encanto dentro duma pedra e quisesse, agora, falar através dela. O artista sabe que a sua obra só produz pleno efeito, se fizer crer numa improvisação, numa miraculosa instantaneidade da sua criação; e, assim, ele ajuda mesmo a essa ilusão, introduzindo na arte, ao começo da sua criação, aqueles elementos de entusiástica inquietação, de desordem que tacteia às cegas, de sonho atento, como forma de iludir, a fim de dispor o espírito do espectador ou do ouvinte de modo a que ele creia no súbito brotar da perfeição.
A ciência da arte, como é evidente, tem de contradizer essa ilusão da maneira mais determinada e apontar as conclusões erróneas e os maus hábitos do intelecto,
Não há Sabedoria sem Esforço
Certos vícios, temos o hábito de atribuí-los aos condicionalismos do lugar e do tempo, mas o certo é que, para onde quer que vamos, esses vícios nos acompanham. (…) Para quê iludirmo-nos? O nosso mal não vem do exterior, está dentro de nós, enraizado nas nossas vísceras, e, como ignoramos o mal de que sofremos, só com dificuldade recuperamos a saúde. E mesmo que já tenhamos iniciado o tratamento, quando nos será possível levar de vencida a enorme virulência de tão numerosas enfermidades? Nem sequer solicitamos a presença do médico, quando afinal é mais fácil tratar uma doença ainda no início. Almas ainda frescas e inexperientes obedecem sem tardar a quem lhes indique o justo caminho. Só é difícil reconduzir à via da natureza quem deliberadamente dela se apartou. Parece que temos vergonha de aprender a sabedoria! Pelos deuses, se acharmos que é vergonhoso buscar um mestre, então podemos perder a esperança de obter as vantagens da sabedoria por obra do acaso. A sabedoria só se obtém pelo esforço.
Para dizer a verdade, nem sequer é necessário grande esforço se, como disse, começarmos a formar e a corrigir a nossa alma antes que as más tendências cristalizem. Mas mesmo já empedernidas,
Mais importante do que a obra de arte propriamente dita é o que ela vai gerar. A arte pode morrer; um quadro desaparecer. O que conta é a semente.
A Obra o Leva
Depois de havê-lo feito, a obra o leva
pela tarefa maior
em que quase de si e dela se desprenda
para ampliar somente a solidão.
Mas uma solidão em que tropeça
a linha, às vezes, a descrever-se com
aquela claridade de paciência
que a leva além de onde jamais andou.
Oscila, treme, timbre de tristeza
o espaço à volta. E o sítio aonde for
será cidade surdida de uma mesa
que ele fez longínqua. E ela o coroou.
A obra clássica é um livro que todo mundo admira, mas que ninguém lê.
Há obras de arte que são como o vinho. O mais seguro é abster-se delas e ficar com a água clara. E depois, a essa água clara, pela chama e doçura interior da alma, transformá-la nós mesmos, incansavelmente, em vinho.
A revolução faz em dois dias a obra de cem anos e perde em dois anos a obra de cinco séculos.
As grandes obras são executadas, não pela força, mas pela perseverança.
A Outra Face da Inveja
Aqueles que são invejados entristecem-se com o rancor que sentem à sua volta; se são orgulhosos, por receio de algum prejuízo; se generosos, por compaixão dos que invejam. Mas depressa se alegram: se me invejam, isso quer dizer que tenho um valor, dos méritos, das graças; quer dizer que sentem e reconhecem a minha grandeza, o meu triunfo. A inveja é a sombra obrigatória do génio e da glória, e os invejosos não passam, de forma odiosa, de admiradores rebeldes e testemunhas involuntárias. Não custa muito perdoar-lhes, quando existe o direito de me comprazer e desprezá-los. Posso mesmo estar-lhes, com frequência, gratos pelo facto de o veneno da inveja ser, para os indolentes, um vinho generoso que confere novo vigor para novas obras e novas conquistas. A melhor vingança contra aqueles que me pretendem rebaixar consiste em ensaiar um voo para um cume mais elevado. E talvez não subisse tanto sem o impulso de quem me queria por terra.
O indivíduo verdadeiramente sagaz faz mais: serve-se da própria difamação para retocar melhor o seu retrato e suprimir as sombras que lhe afectam a luz. O invejoso torna-se, sem querer, o colaborador da sua perfeição.
A arte é a ideia da obra, a ideia que existe sem matéria.
Quando a obra dos melhores chefes fica concluída, o povo diz: fomos nós que a fizemos.
As artes não são concebidas como acções historicamente invariáveis do género humano, nem como um arsenal de ‘bens culturais’ que vivem uma existência sem tempo, mas como um processo que avança sem cessar, como um ‘work in progress’ do qual toda a obra participa.