Longus
É de manhã, no outono. À luz, o orvalho
doira os mirtais de trĂŞmulas capelas.
e, sobre o solo, recobrindo o atalho,
há milhares de folhas amarelas…A Filetas, ao pĂ© de amplo carvalho,
ouvem as narrações e pastorelas,
um rapaz, aindaingĂŞnuo e sem trabalho,
e a mais linda de todas as donzelas…É a narrativa do florir dos prados,
que o mais doce dos velhos barbilongos
conta ao casal de jovens namorados…SilĂŞncio… Ouvi-lhe o beijo dos ditongos,
os silábicos sons, que musicados,
cantam na amável pastoral de Longus…
Passagens sobre Pés
670 resultadosO Sentimento dum Ocidental
I
Avé-Maria
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulĂcio, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifĂcios, com as chaminĂ©s, e a turba
Toldam-se duma cor monĂłtona e londrina.Batem carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, paĂses:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetĂŁo ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.E evoco, entĂŁo, as crĂłnicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu nĂŁo verei jamais!E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
O Homem Certo
Hoje, numa Ă©poca em que se misturam todos os discursos, em que profetas e charlatĂŁes usam as mesmas fĂłrmulas com mĂnimas diferenças, cujo percurso nenhum homem ocupado tem tempo de seguir, num tempo em que as redacções dos jornais sĂŁo constantemente incomodadas por gente que acha que Ă© um gĂ©nio, Ă© muito difĂcil ajuizar do valor de um homem ou de uma ideia. Temos de nos deixar guiar pelo ouvido para podermos perceber se os rumores, os sussurros e o raspar de pĂ©s diante da porta da redacção sĂŁo suficientemente fortes para poderem ser admitidos como voz da polis. A partir desse momento, porĂ©m, o gĂ©nio passa a outra condição. Deixa de ser matĂ©ria fĂştil da crĂtica literária ou teatral, cujas contradições os leitores que qualquer jornal deseja ter levam tĂŁo pouco a sĂ©rio como a tagarelice de uma criança, para aceder ao estatuto de factos concretos, com todas as consequĂŞncias que isso tem.
Certos fanáticos insensatos ignoram a necessidade desesperada de idealismo que se esconde por detrás de tal situação. O mundo dos que escrevem porque têm de escrever está cheio de grandes palavras e conceitos que perderam a substância. Os atributos dos grandes homens e das grandes causas sobrevivem ao que quer que seja que lhes deu origem,
Ad Instar Delphini
Teus pés são voluptuosos: é por isso
Que andas com tanta graça, ó Cassiopéia!
De onde te vem tal chama e tal feitiço,
Que dás idéia ao corpo, e corpo à idéia?Camões, valie-me! Adamastor, Magriço,
Dai-me força, e tu, Vênus Citeréia,
Essa doçura, esse imortal derriço…
Quero também compor minha epopéia!não cantarei Helena e a antiga Tróia,
Nem as Missões e a nacional Lindóia,
Nem Deus, nem Diacho! Quero, oh por quem és,Flor ou mulher, chave do meu destino,
Quero cantar, como cantou Delfino,
As duas curvas de dois brancos pés.
Resgate
Meus pĂ©s moĂdos na calçada,
minhas tardes envenenadas de álcoois nos cafés,
e o vazio por dentro
a encher o tédio das horas sem nome.Tudo isto
– moeda triste
que nem chega a pagar o sol da tardinha
e a poeira de feno que pontilhou de oiro
teu corpo entre trigais.
O Fim Justifica o Meio
Os meios virtuosos e bonacheirões não levam a nada. É preciso utilizar alavancas mais enérgicas e mais sábios enredos. Antes de te tornares célebre pela virtude e de atingires o teu objectivo, haverá cem que terão tempo de fazer piruetas por cima das tuas costas e de chegar ao fim da corrida antes de ti, de tal modo que deixará de haver lugar para as tuas ideias estreitas. É preciso saber abarcar com mais amplitude o horizonte do tempo presente.
Nunca ouviste falar, por exemplo, da glĂłria imensa que as vitĂłrias alcançam? E, no entanto, as vitĂłrias nĂŁo surgem sozinhas. É preciso que o sangue corra, muito sangue, para serem geradas e depostas aos pĂ©s dos conquistadores. Sem os cadáveres e os membros esparsos que vĂŞs na planĂcie onde se desenrolou sabiamente a carnificina, nĂŁo haverá guerra, e sem guerra nĂŁo haverá vitĂłria. EstĂŁo a ver que, quando alguĂ©m se quer tornar cĂ©lebre, tem que mergulhar graciosamente em rios de sangue, alimentados com carne para canhĂŁo. O fim justifica o meio.
Esse método estóico de bastar às nossas necessidades suprimindo os nossos desejos equivale a cortarmos os pés para já não precisarmos de calçado.
Não me façam ser quem não sou. Não me convidem a ser igual, porque sinceramente sou diferente. Não sei amar pela metade. Não sei viver de mentira. Não sei voar de pés no chão.
A Bicicleta pela Lua Dentro – MĂŁe, MĂŁe
A bicicleta pela lua dentro – mĂŁe, mĂŁe –
ouvi dizer toda a neve.
As árvores crescem nos satélites.
Que hei-de fazer senĂŁo sonhar
ao contrário quando novembro empunha –
mĂŁe, mĂŁe – as tellhas dos seus frutos?
As nuvens, aviões, mercúrio.
Novembro – mĂŁe – com as suas praças
descascadas.A neve sobre os frutos – filho, filho.
Janeiro com outono sonha entĂŁo.
Canta nesse espanto – meu filho – os satĂ©lites
sonham pela lua dentro na sua bicicleta.
Ouvi dizer novembro.
As praças estão resplendentes.
As grandes letras descascadas: Ă© novo o alfabeto.
Aviões passam no teu nome –
minha mĂŁe, minha máquina –
mercúrio (ouvi dizer) está cheio de neve.Avança, memória, com a tua bicicleta.
Sonhando, as árvores crescem ao contrário.
Apresento-te novembro: aviĂŁo
limpo como um alfabeto. E as praças
dĂŁo a sua neve descascada.
Mãe, mãe — como janeiro resplende
nos satélites. Filho — é a tua memória.E as letras estão em ti, abertas
pela neve dentro. Como árvores, aviões
sonham ao contrário.
De Esquecer
Demorei-me muito tempo ao pé de ti.
As portas fechadas por dentro, como se encerrasses
o amor e a lei. Demorei-me demais. Ao fim da tarde,
nesse mesmo dia que já morreu,
olhámo-nos devagar, mas distraĂdos. Diria atĂ© que anoiteceu.Nunca falámos do amor que chega tarde.
Nem o interpelámos (como se já não pudesse
ter nome). Fingia ter esquecido o teu corpo
nas muralhas. Nas areias.Vês aqui alguma figura? Ninguém vê.
Repara no ponto preto que alastra na margem do quadro,
nas minhas lágrimas desse tempo.
RelĂŞ.
No fundo, o amor tem pouco a ver com a presença, com a convivĂŞncia, com o tempo e as experiĂŞncias por que se passa. Quantas vezes acontece amar alguĂ©m sem suportar estar ao pĂ© dela? NĂŁo Ă© sĂł na famĂlia.
Autor de obras-primas, o homem é incapaz de fazer um pé de couve.
Os Doentes
Como uma cascavel que se enroscava
A cidade dos lázaros dormia…
Somente, na metrĂłpole vazia,
Minha cabeça autônoma pensava!Mordia-me a obsessão má de que havia,
Sob os meus pés, na terra onde eu pisava,
Um fĂgado doente que sangrava
E uma garganta de ĂłrfĂŁ que gemia!Tentava compreender com as conceptivas
Funções do encéfalo as substâncias vivas
Que nem Spencer, nem Haeckei compreenderam…E via em mim, coberto de desgraças,
O resultado de biliões de raças
Que há muitos anos desapareceram!
Os Ses Importantes da Vida
Hoje escrevo-te sobre os ses importantes da vida. Agarra-te bem a eles, e depois, quando te sentires assustada em algum momento, volta a agarrar-te a eles. Vais ver que nunca te vai faltar nada. Prometo.
Se amares com toda a segurança, desiste de amar, porque, ficas agora a saber, quando se ama com toda a segurança não se ama coisa nenhuma.
Se não tiveres medo de dizer que amas, como se sentisses que estavas a expor o mais imenso lado de ti, desiste de amar, porque, ficas agora a saber, é só o que nos faz ter medo que vale a pena ter medo perder.Se não adormeceres todos os dias com uma inexplicável vontade de voltar a acordar só para estares nos braços da pessoa com quem adormeceste, desiste de amar, porque, ficas agora a saber, só o que nos faz adormecer felizes sem deixar de nos fazer ter vontade de acordar felizes é que é mesmo amor.
Se não acordares todos os dias com uma vontade inexplicável de voltar a adormecer só para poderes adormecer em paz ao lado de quem amas, desiste de amar, porque, ficas agora a saber, só o que nos faz acordar felizes sem deixar de nos fazer ter vontade de adormecermos felizes é que é mesmo amor.
Arrojos
Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.Se ela deixasse, extático e suspenso
Tomar-lhe as mĂŁos mignonnes e aquecĂŞ-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos noturnos.Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabĂŁo das criancinhas.Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos rĂłseos paraĂsos
E a Lua afogaria nos meus braços.Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cĂtaras estranhas,
Como a gente se perde! A linguagem que o meu sangue entende — Ă© esta. A comida que o meu estĂ´mago deseja — Ă© esta. O chĂŁo que os meus pĂ©s sabem pisar — Ă© este. E, contudo, eu nĂŁo sou já daqui. Pareço uma destas árvores que se transplantam, que tĂŞm má saĂşde no paĂs novo, mas que morrem se voltam Ă terra natal.
Posto me tem Fortuna em tal estado
Posto me tem Fortuna em tal estado,
E tanto a seus pés me tem rendido!
Não tenho que perder já, de perdido;
Não tenho que mudar já, de mudado.Todo o bem pera mim é acabado;
Daqui dou o viver já por vivido;
Que, aonde o mal Ă© tĂŁo conhecido,
Também o viver mais será escusado,Se me basta querer, a morte quero,
Que bem outra esperança não convém;
E curarei um mal com outro mal.E, pois do bem tĂŁo pouco bem espero,
Já que o mal este só remédio tem,
Não me culpem em querer remédio tal.
Os cĂŁes sĂŁo o nosso elo com o paraĂso. Eles nĂŁo conhecem a maldade, a inveja ou o descontentamento. Sentar-se com um cĂŁo ao pĂ© de uma colina numa linda tarde, Ă© voltar ao Éden onde ficar sem fazer nada nĂŁo era tĂ©dio, era paz.
Dava a Vida para te Apertar Contra o Meu Peito
Nunca te vira tĂŁo linda e sedutora ao mesmo tempo como ontem Ă noite. Dava a vida para te apertar contra o meu peito. Diz-me, era o amor que eu te inspiro que te fazia assim tĂŁo bela? Seria a paixĂŁo que me abrasa que te tornava tĂŁo atraente a meus olhos? Bem viste: nĂŁo podia deixar de olhar para ti, nem de beijar a candeiazinha de oiro. Quanto tu saĂste tive vontade de me prosternar a teus pĂ©s e de te adorar como a uma divindade. Ah! Se tu me quisesses metade do que eu te quero! Deste volta Ă minha pobre cabeça; repara no mal que me fizeste querendo-me como me queres. Ă€s oito, esperar-te-ei numa ansiedade.
O Irracional no Amor
Se Ă© ridĂculo beijar uma mulher feia, tambĂ©m Ă© ridĂculo dar um beijo a uma beleza. A presunção de que amando de uma certa maneira se tem o direito de rir do vizinho que tem outra maneira de amar, nĂŁo vale mais do que a arrogância de certo meio social. Tal soberba nĂŁo põe ninguĂ©m ao abrigo do cĂłmico universal, porque todos os homens se encontram na impossibilidade de explicar a praxe a que se submetem, a qual pretende ter um alcance universal, pretende significar que os amantes querem pertencer um ao outro por toda a eternidade, e, o que mais divertido Ă©, pretende tambĂ©m convencĂŞ-los de que hĂŁo-de cumprir fielmente o juramento.
Que um homem rico, muito bem sentado na sua poltrona, acene com a cabeça, ou volte a cara para a direita e para a esquerda, ou bata fortemente com um pé no chão, e que, uma vez perguntado pela razão de tais actos, me responda: «não sei; apeteceu-me de repente; foi um movimento involuntário», compreendo isso muito bem. Mas se ele me respondesse o que costumam responder os amantes, quando lhes pedem que expliquem os seus gestos e as suas atitudes, se me dissesse que em tais actos consistia a sua maior felicidade,