Poema Explicativo
Inúteis são os voos. Inúteis são os pássaros.
Silenciosas sombras tudo extinguem.
Como as vagas de um mar longínquo e frio,
são de inúteis palavras estes versos,
pois o calado tempo esmaga tudo.Moro num rio inútil que caminha
entre margens de musgo e subalternas
pontes e águas que reflectem
estrelas, luminárias, desencanto.Os peixes não obstante já não dormem.
São inúteis os sonhos e as amarras
que nos prendem ao cais.
E o sangue que nos leva
em artérias eléctricas de desejo.Já somos todos poetas — e a poesia é inútil —
antepassados simples de um futuro
remoto onde seremos sinais na rocha, apenas.Germinará o trevo entre os alexandrinos
e nenhum pássaro compreenderá o sentido
das páginas dispersas sobre a areia.Estas palavras nuas se transformarão
em pó, em lodo, em traças e raízes.
Passagens sobre Sangue
505 resultadosNem Sequer Sou Poeira
Não quero ser quem sou. A avara sorte
Quis-me oferecer o século dezassete,
O pó e a rotina de Castela,
As coisas repetidas, a manhã
Que, prometendo o hoje, dá a véspera,
A palestra do padre ou do barbeiro,
A solidão que o tempo vai deixando
E uma vaga sobrinha analfabeta.
Já sou entrado em anos. Uma página
Casual revelou-me vozes novas,
Amadis e Urganda, a perseguir-me.
Vendi as terras e comprei os livros
Que narram por inteiro essas empresas:
O Graal, que recolheu o sangue humano
Que o Filho derramou pra nos salvar,
Maomé e o seu ídolo de ouro,
Os ferros, as ameias, as bandeiras
E as operações e truques de magia.
Cavaleiros cristãos lá percorriam
Os reinos que há na terra, na vingança
Da ultrajada honra ou querendo impor
A justiça no fio de cada espada.
Queira Deus que um enviado restitua
Ao nosso tempo esse exercício nobre.
Os meus sonhos avistam-no. Senti-o
Na minha carne triste e solitária.
Seu nome ainda não sei. Mas eu, Quijano,
Serei o paladino.
A Perfeição
A Perfeição é a celeste ciência
Da cristalização de almos encantos,
De abandonar os mórbidos quebrantos
E viver de uma oculta florescência.Noss’alma fica da clarividência
Dos astros e dos anjos e dos santos,
Fica lavada na lustral dos prantos,
É dos prantos divina e pura essência.Noss’alma fica como o ser que às lutas
As mãos conserva limpas, impolutas,
Sem as manchas do sangue mau da guerra.A Perfeição é a alma estar sonhando
Em soluços, soluços, soluçando
As agonias que encontrou na Terra.!
Dulcineia
Quem tu és não importa, nem conheces
O sonho em que nasceu a tua face:
Cristal vazio e mudo.
Do sangue de Quixote te alimentas,
Da alma que nele morre é que recebes
A força de seres tudo.
Esta Noite Morrerás
Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e aquele que procurar a marca dos teus passos
encontra urtigas crescendo
por sobre o teu nome.
Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e uma gota de sangue ressequido
é a marca dos teus passos.
No coração do tempo pulsa um maquinismo ínscio
e na casa do tempo a hora é adorno.
Quando a lua vier tocar-me o rosto a tua sombra extinta marca
o fim de um eclipse horário de uma partida iminente e o tempo
apaga a marca dos teus passos sobre o meu nome.
Constante.
O mar é isso.
A lua vir tocar-me o rosto e encontrar urtigas crescendo
por sobre o teu nome.
O mar é tu morreste.
O mar é ser noite e vir a lua tocar-me o rosto quando tu par-
tiste e no meu leito crescem folhas sangue.
A febre é uma pira incompreensível como a aparição da lua
e a opacidade do mar.
No meu leito a lua vai tocar-me o rosto e a tua ausência é um
prisma,
Desesperança
Vai-te na aza negra da desgraça,
Pensamento de amor, sombra d’uma hora,
Que abracei com delírio, vai-te, embora,
Como nuvem que o vento impele… e passa.Que arrojemos de nós quem mais se abraça,
Com mais ancia, á nossa alma! e quem devora
D’essa alma o sangue, com que vigora,
Como amigo comungue á mesma taça!Que seja sonho apenas a esperança,
Enquanto a dor eternamente assiste.
E só engano nunca a desventura!Se era silêncio sofrer fora vingança!..
Envolve-te em ti mesma, ó alma triste,
Talvez sem esperança haja ventura!
Ser Feliz é uma Responsabilidade Muito Grande
Ser feliz é uma responsabilidade muito grande. Pouca gente tem coragem. Tenho coragem mas com um pouco de medo. Pessoa feliz é quem aceitou a morte. Quando estou feliz demais, sinto uma angústia amordaçante: assusto-me. Sou tão medrosa. Tenho medo de estar viva porque quem tem vida um dia morre. E o mundo me violenta. Os instintos exigentes, a alma cruel, a crueza dos que não têm pudor, as leis a obedecer, o assassinato — tudo isso me dá vertigem como há pessoas que desmaiam ao ver sangue: o estudante de medicina com o rosto pálido e os lábios brancos diante do primeiro cadáver a dissecar. Assusta-me quando num relance vejo as entranhas do espírito dos outros. Ou quando caio sem querer bem fundo dentro de mim e vejo o abismo interminável da eternidade, abismo através do qual me comunico fantasmagórica com Deus.
Coda
Inútil escapar. A presença perdura.
Desde que sinto chão
ou de verde
ou de pedraé teu rastro que encontro e encontro em ti meu chão.
E quando te pressinto
o de verde é mais terno
e o de mais dura pedra
um sensível durâmen.Tu que arrancas até da rocha viva o sangue,
tu que vens pela foz destes veios de eu te amo:
— Em que século, amor, nossas almas se fundem?
Em que terra?Através de que mar? Ah que céu
velho céu já chorou por nós — perdidos cúmulos —
guaiando em nosso mundo impossíveis azuis?
E desde quando o amor se abriu aos nossos olhos?
De que abrolhos e sal de amar nos marejou?Em meu solo és madeiro
e nave
e asa que sonha.
Em todo canto te acho e onde é teu canto eu sou.
Tédio
Sobre minh’alma, como sobre um trono,
Senhor brutal, pesa o aborrecimento.
Como tardas em vir, último outono,
Lançar-me as folhas últimas ao vento!Oh! dormir no silêncio e no abandono,
Só, sem um sonho, sem um pensamento,
E, no letargo do aniquilamento,
Ter, ó pedra, a quietude do teu sono!Oh! deixar de sonhar o que não vejo!
Ter o sangue gelado, e a carne fria!
E, de uma luz crepuscular velada,Deixar a alma dormir sem um desejo,
Ampla, fúnebre, lúgubre, vazia
Como uma catedral abandonada!…
A honra se lava é com sangue.
A paciência depura o sangue e anima o espírito.
Conta Comigo Sempre
Conta comigo sempre. Desde a sílaba inicial até à última gota de sangue. Venho do silêncio incerto do poema e sou, umas vezes constelação e outras vezes árvore, tantas vezes equilíbrio, outras tantas tempestade. A nossa memória é um mistério, recordo-me de uma música maravilhosa que nunca ouvi, na qual consigo distinguir com clareza as flautas, os violinos, o oboé.
O sonho é, e será sempre e apenas, dos vivos, dos que mastigam o pão amadurecido da dúvida e a carne deslumbrada das pupilas. Estou entre vazios e plenitudes, encho as mãos com uma fragilidade que é um pássaro sábio e distraído que se aninha no coração e se alimenta de amor, esse amor acima do desejo, bem acima do sofrimento.
Conta comigo sempre. Piso as mesmas pedras que tu pisas, ergo-me da face da mesma moeda em que te reconheço, contigo quero festejar dias antigos e os dias que hão-de vir, contigo repartirei também a minha fome mas, e sobretudo, repartirei até o que é indivisível. Tu sabes onde estou.
Sabes como me chamo. Estarei presente quando já mais ninguém estiver contigo, quando chegar a hora decisiva e não encontrares mais esperança, quando a tua antiga coragem vacilar.
O Amor E A Morte
(com tema de Augusto dos Anjos)
Sobre essa estrada ilumineira e parda
dorme o Lajedo ao sol, como uma Cobra.
Tua nudez na minha se desdobra
— ó Corça branca, ó ruiva Leoparda.O Anjo sopra a corneta e se retarda:
seu Cinzel corta a pedra e o Porco sobra.
Ao toque do Divino, o bronze dobra,
enquanto assolo os peitos da javarda.Vê: um dia, a bigorna desses Paços
cortará, no martelo de seus aços,
e o sangue, hão de abrasá-lo os inimigos.E a Morte, em trajos pretos e amarelos,
brandirá, contra nós, doidos Cutelos
e as Asas rubras dos Dragões antigos.
As ligações de amizade são mais fortes que as do sangue da família.
Tese e Antítese
I
Já não sei o que vale a nova idéia,
Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
Torva no aspecto, à luz da barricada,
Como bacchante após lúbrica ceia…Sanguinolento o olhar se lhe incendeia;
Respira fumo e fogo embriagada:
A deusa de alma vasta e sossegada
Ei-la presa das fúrias de Medeia!Um século irritado e truculento
Chama à epilepsia pensamento,
Verbo ao estampido de pelouro e obuz…Mas a idea é n’um mundo inalterável,
N’um cristalino céu, que vive estável…
Tu, pensamento, não és fogo, és luz!II
N’um céu intemerato e cristalino
Pode habitar talvez um Deus distante,
Vendo passar em sonho cambiante
O Ser, como espectáculo divino.Mas o homem, na terra onde o destino
O lançou, vive e agita-se incessante:
Enche o ar da terra o seu pulmão possante…
Cá da terra blasfema ou ergue um hino…A idéia encarna em peitos que palpitam:
O seu pulsar são chamas que crepitam,
Paixões ardentes como vivos sóis!Combatei pois na terra árida e bruta,
Se as minhas mãos em garra se cravassem sobre um amor em sangue a palpitar… Quantas panteras bárbaras mataram só pelo raro gosto de matar!
A honra lava-se com sangue.
Lubricidade
Quisera ser a serpe venenosa
Que dá-te medo e dá-te pesadelos
Para envolverem, ó Flor maravilhosa,
Nos flavos turbilhões dos teus cabelos.Quisera ser a serpe veludosa
Para, enroscada em múltiplos novelos,
Saltar-te aos seios de fluidez cheirosa
E babujá-los e depois mordê-los…Talvez que o sangue impuro e flamejante
Do teu lânguido corpo de bacante,
Da langue ondulação de águas do RenoEstranhamente se purificasse…
Pois que um veneno de áspide vorace
Deve ser morto com igual veneno…
Tomamos a Vila depois de um Intenso Bombardeamento
A criança loura
Jaz no meio da rua.
Tem as tripas de fora
E por uma corda sua
Um comboio que ignora.A cara está um feixe
De sangue e de nada.
Luz um pequeno peixe
— Dos que bóiam nas banheiras —
À beira da estrada.Cai sobre a estrada o escuro.
Longe, ainda uma luz doura
A criação do futuro…E o da criança loura?
O Fim Justifica o Meio
Os meios virtuosos e bonacheirões não levam a nada. É preciso utilizar alavancas mais enérgicas e mais sábios enredos. Antes de te tornares célebre pela virtude e de atingires o teu objectivo, haverá cem que terão tempo de fazer piruetas por cima das tuas costas e de chegar ao fim da corrida antes de ti, de tal modo que deixará de haver lugar para as tuas ideias estreitas. É preciso saber abarcar com mais amplitude o horizonte do tempo presente.
Nunca ouviste falar, por exemplo, da glória imensa que as vitórias alcançam? E, no entanto, as vitórias não surgem sozinhas. É preciso que o sangue corra, muito sangue, para serem geradas e depostas aos pés dos conquistadores. Sem os cadáveres e os membros esparsos que vês na planície onde se desenrolou sabiamente a carnificina, não haverá guerra, e sem guerra não haverá vitória. Estão a ver que, quando alguém se quer tornar célebre, tem que mergulhar graciosamente em rios de sangue, alimentados com carne para canhão. O fim justifica o meio.