Alguns de nós são de tal modo constituídos, que são à tarde outra pessoa que a que foram de manhã, e perpetuamente se despedem de uma personalidade perpetuamente ilusória.
Passagens sobre Tarde
624 resultadosAssim, Sem Nada Feito e o Por Fazer
Assim, sem nada feito e o por fazer
Mal pensado, ou sonhado sem pensar,
Vejo os meus dias nulos decorrer,
E o cansaço de nada me aumentar.Perdura, sim, como uma mocidade
Que a si mesma se sobrevive, a esperança,
Mas a mesma esperança o tédio invade,
E a mesma falsa mocidade cansa.Tênue passar das horas sem proveito,
Leve correr dos dias sem ação,
Como a quem com saúde jaz no leito
Ou quem sempre se atrasa sem razão.Vadio sem andar, meu ser inerte
Contempla-me, que esqueço de querer,
E a tarde exterior seu tédio verte
Sobre quem nada fez e nada quere.Inútil vida, posta a um canto e ida
Sem que alguém nela fosse, nau sem mar,
Obra solentemente por ser lida,
Ah, deixem-se sonhar sem esperar!
Entardecer
Sol-posto ungindo o mar: incensos de ouro!
Recolhe funda a tarde em sonho e mágoa.
Surdina fluida: anda o silêncio a orar –
E há crepúsculos de asas e, na água,
O céu é mármore extático a cismar!E nas faces marmóreas dos rochedos
Esboçam-se perfis,
– Cintilações,
Penumbra de segredos!Ó painéis de nuvens sobre a terra,
Ogivas delirantes
Na água refractando…
Encheis de sombra o mar de espumas rasas,
Iniciando
A hora pânica das asas!E, à meia luz da tarde,
Na areia requeimada,
São vultos sonolentos
As proas dos navios…Ó tristeza dos balões
Iluminando,
Na água prateada,
Os pegos e baixios…Dormentes constelações
Que, em fundos lacustres
E musgosos,
Pondes reverberações
Em nossos olhos ansiosos.Ó tardes de aquático esplendor,
Descendo em meu olhar!Num sonho de regresso,
Numa ânsia de voltar,
Em mim todo me esqueço
E fico-me a cismar.A tarde é toda um sonho moribundo.
É já olor da cor que amorteceu.
Elegia
Vae em seis mezes que deixei a minha terra
E tu ficaste lá, mettida n’uma serra,
Boa velhinha! que eras mais uma criança…
Mas, tão longe de ti, n’este Payz de França,
Onde mal viste, então, que eu viesse parar,
Vejo-te, quanta vez! por esta sala a andar…
Bates. Entreabres de mansinho a minha porta.
Virás tratar de mim, ainda depois de morta?
Vens de tão longe! E fazes, só, essa jornada!
Ajuda-te o bordão que te empresta uma fada.
Altas horas, emquanto o bom coveiro dorme,
Escapas-teãda cova e vens, Bondade enorme!
Atravez do Marão que a lua-cheia banha,
Atravessas, sorrindo, a mysteriosa Hespanha,
Perguntas ao pastor que anda guardando o gado,
(E as fontes cantam e o céu é todo estrellado…)
Para que banda fica a França, e elle, a apontar,
Diz: «Vá seguindo sempre a minha estrella, no Ar!»
E ha-de ficar scismando, ao ver-te assim, velhinha,
Que és tu a Virgem disfarçada em probrezinha…
Mas tu, sorrindo sempre, olhando sempre os céus,
Deixando atraz de ti, os negros Pyrineus,
Sob os quaes rola a humanidade,
Em Tudo o que Fiz Bem Pus um Pouco de Ti
Eis o teu rosto iluminado por esta hora de maio.
Ao filho autêntico, basta fechar os olhos para encontrar o rosto da sua mãe.
A fronteira que separa o dentro do fora é vaga de propósito, mais exata é a fronteira dos meses.
Mãe, as tardes de maio não são um acaso.
Pus um pouco de ti naquilo que fiz de mais importante.
Onde existir terra estás tu, dás força e horizonte.
O ar não permitiria respiração se não te contivesse.
A água não seria capaz de alimentar sem a tua presença líquida.
O fogo não chegaria a acender se não incluísse o teu mistério no seu mistério.
Estavas já no primeiro início do firmamento, nesse rugido que encheu a superfície do céu e da terra, que rasgou as trevas; da mesma maneira, estarás no seu último fim.
Estás antes e depois.
Estás na lenta passagem da eternidade.
Mãe, atravessas a vida e a morte como a verdade atravessa o tempo, como os nomes atravessam aquilo que nomeiam.
Sabes que criei tudo o que há e sabes também que não criei tudo o que poderia haver.
Entre as faltas evidentes,
Tarde demais a conheci, por fim; cedo demais, sem conhecê-la, amei-a profundamente.
Soneto, às Cinco Horas da Tarde
Agora que me instigo e me arremesso
ao branco ofício de prender meu sono
e depois atirá-lo em seu vestido
feito de céu e restos de incerteza,recolho inutilmente de seus lábios
a precisão do sangue do silêncio
e inauguro uma tarde em suas mãos
grávidas de gestos e de rumos.Pelo temor e o débil sobressalto
de encontrar sua ausência numa esquina
quando extingui canção e permanência,guardei todo o impossível de seus olhos,
embora ouvisse, longe, além dos mapas,
bruscos mastins de cedro em seus cabelos.
O Dia Segue o Curso Itinerante
I
Assim te amei, amada, assim te amei
de amor tão grande e puro que secou
no peito meu o rio que corria
submisso e atento para os braços teus.
Nos ermos vales agora percorro
os gestos esquecidos, densas brumas
do rio que fui, o rio que fomos,
largas águas seguindo o mar da noite.
Assim te amei o amor maior que pude.
E, mais ainda, a minha vida foi
uma desfeita nau vagando a esmo
o mar do tempo, o mar janeiro, o mar
que perdi. E agora, de ti disperso,
nos desertos de mim, sem fim, caminho.II
E vou por outras águas procurando
o manso pouco, o malvo campo onde
apascentar o rebanho de mágoas,
o carro de afectos que mantenho
guardados no denso peito, tangidos
pelo vento no dorso do horizonte.
Largos desertos! abrandai a pena
sem fim que me domina! Alvos lírios,
rosas, boninas, nardos e outras flores!
Vinde ao menos cobrir-me a branda fronte
de púrpura, de orvalho e calmaria.
Eis que me vou por este vasto mar
de afagos e carícias inconstantes,
O que chamamos democracia começa a assemelhar-se tristemente ao pano solene que cobre a urna onde já está apodrecendo o cadáver. Reinventemos, pois, a democracia antes que seja demasiado tarde.
Momentos de ternura e reconciliação valem sempre a pena ser vividos, ainda que a separação tenha que vir, mais tarde ou mais cedo.
Quantas Loucuras há num Homem!
Há tantos amores na vida de um homem! Aos quatro anos, ama-se os cavalos, o sol, as flores, as armas que brilham, os uniformes de soldado; aos dez, ama-se a menina que brinca connosco.; aos treze, ama-se uma mulher de colo túrgido, porque me lembro de que o que os adolescentes amam loucamente é um colo de mulher, branco e mate, e como diz Marot:
Tetin refaict plus blanc qu’un oeuf
Tetin de satin blanc tout neuf.Quase me senti mal quando vi pela primeira vez os seis desnudados de uma mulher. Por fim, aos catorze ou quinze anos, ama-se uma jovem que vem a nossa casa, e que é um pouco mais que uma irmã, menos que uma amante; depois, aos dezasseis anos, ama-se uma outra mulher, até aos vinte e cinco; depois, talvez se ame a mulher com quem casamos. Cinco anos mais tarde, ama-se a dançarina que faz saltar o seu vestido sobre as suas coxas carnudas; por fim, aos trinta e seis, ama-se a deputação, a especulação, as honrarias; aos cinquenta, ama-se o jantar do ministro ou do presidente da câmara; aos sessenta, ama-se a prostituta que nos chama através dos vidros e a quem se lança um olhar de impotência,
O Sagrado e o Alcançável
Sem uma palavra a escrever, Martim no entanto não resistiu à tentação de imaginar o que lhe aconteceria se o seu poder fosse mais forte que a prudência. «E se de repente eu pudesse?», indagou-se ele. E então não conseguiu se enganar: o que quer que conseguisse escrever seria apenas por não conseguir escrever «a outra coisa». Mesmo dentro do poder, o que dissesse seria apenas por impossibilidade de transmitir uma outra coisa. A Proibição era muito mais funda…, surpreendeu-se Martim.
Como se vê, aquele homem terminara por cair na profundeza que ele sempre sensatamente evitara.
E a escolha tornou-se ainda mais funda: ou ficar com a zona sagrada intacta e viver dela – ou traí-la pelo que ele certamente terminaria conseguindo e que seria apenas isso: o alcançável.
Como quem não conseguisse beber a água do rio senão enchendo o côncavo das próprias mãos – mas já não seria a silenciosa água do rio, não seria o seu movimento frígido, nem a delicada avidez com que a água tortura pedras, não seria aquilo que é um homem de tarde junto do rio depois de ter tido uma mulher. Seria o côncavo das próprias mãos. Preferia então o silêncio intacto.
Mas, ah tirano Amor! Ou cedo ou tarde
É forçoso aos mortais sofrer teu jugo;
Amor, tu és um mal que fere a todos:
Longa experiência contra ti não vale,
Ou Virtude, ou Razão, só vale a Morte.
A Utilidade dos Inimigos
A utilidade dos inimigos é um daqueles temas cruciais em que um compilador de lugares-comuns como Plutarco pôde dar a mão a um arguto preceptor de heróis como Gracian y Morales e a um paradoxista como Nietzsche. Os argumentos são sempre esses – e todos o sbaem.
Os inimigos como os únicos verdadeiros; como aqueles que, conservando os olhos sempre voltados para cima, obrigam à circunspecção e ao caminho rectilíneo; como auxiliares de grandeza, porque obrigam a superar as más vontades e os obstáculos; como estímulos do aperfeiçoamento de si e da vigilância; como antagonistas que impelem para a competição, a fecundidade, a superação contínua. Mas são bem vistos, sobretudo, como prova segura da grandeza e da fortuna.
Quem não tem inimigos é um santo – e às vezes os santos têm inimigos – ou uma nulidade ambulante, o último dos últimos. E alguns, por arrogância, imaginam ter mais inimigos do que na realidade têm ou tentam consegui-los, para obter, pelo menos por esse caminho, a certeza da sua superioridade.
Mas todos os registadores utilitários da utilidade de inimigos esquecem que essas vantagens são pagas por um preço elevado e só constituem vantagens enquanto somos, e não sabemos ser,
O resultado de uma vida em silêncio é, mais tarde ou mais cedo, uma indisposição constante que levará o seu hospedeiro a vomitar todas as emoções apodrecidas durante anos e anos na cara dos outros, como se os outros fossem os verdadeiros culpados dessa agonia.
As boas resoluções estão sujeitas a uma fatalidade – são sempre tomadas demasiado tarde.
Não é fácil queimarmos documentos íntimos que nos são queridos, é como se confessássemos a nós próprios que já não temos tempo, que vamos morrer amanhã; assim vamos sempre adiando o ato de destruição, e um dia é já tarde demais. Contamos com a imortalidade e esquecemo-nos de contar com a morte.
O Nosso Código Ético e Moral Desculpabiliza-nos Perante a Recusa de Aliviarmos o Sofrimento Alheio
Eu não desviava os olhos de minha mãe, sabia que, quando estivessem à mesa, não me seria permitido ficar até ao fim da refeição, e que, para não contrariar meu pai, a mamã não me deixaria beijá-la várias vezes diante dos outros, como se fosse no meu quarto.
(…) antes de tocarem a sineta para o jantar, meu avô teve a ferocidade inconsciente de dizer: «O pequeno parece cansado; deveria ir deitar-se. E depois, jantamos tarde hoje.» E meu pai,(…) disse: «Sim. Anda, vai deitar-te.» Eu quis beijar a mamã; nesse instante ouviu-se a sineta do jantar. «Não, não, deixa a tua mãe em paz, vocês já se despediram bastante, essas demonstrações são ridículas. Anda, sobe!» E eu tive de partir sem viático; tive de subir cada degrau «contra o coração», subindo contra o meu coração, que desejava voltar para junto de minha mãe porque ela não lhe havia dado, com um beijo, licença de me acompanhar.
(…) Já no meu quarto, tive de (…) cerrar os postigos, cavar o meu próprio túmulo enquanto virava as cobertas, vestir o sudário da minha camisa de dormir. Mas antes de sepultar-me no leito de ferro (…), veio-me um impulso de revolta e resolvi tentar um ardil de condenado.
Em Horas inda Louras, Lindas
Em horas inda louras, lindas
Clorindas e Belindas, brandas,
Brincam no tempo das berlindas,
As vindas vendo das varandas,
De onde ouvem vir a rir as vindas
Fitam a fio as frias bandas.Mas em torno à tarde se entorna
A atordoar o ar que arde
Que a eterna tarde já não torna!
E o tom de atoarda todo o alarde
Do adornado ardor transtorna
No ar de torpor da tarda tarde.E há nevoentos desencantos
Dos encantos dos pensamentos
Nos santos lentos dos recantos
Dos bentos cantos dos conventos….
Prantos de intentos, lentos, tantos
Que encantam os atentos ventos.
Indigno do Amor
Não se pode amar uma pessoa que se detesta a si própria. E nesta terra desgraçada, quase toda a gente se detesta a si própria, toda a gente se condena a si própria. Como poderá você amar uma pessoa que se condena a si própria? Essa pessoa não acreditará em si. Ela não se pode amar a si própria — como é que você se atreve? A pessoa não se pode amar a si própria — como pode você amá-la? Suspeitará de que se trata de uma brincadeira, de um embuste, de uma rasteira. Suspeitará que você tenta enganá-la em nome do amor. Será muito cautelosa, vigilante, e a sua suspeita envenenará o seu ser. Quando você ama uma pessoa que se detesta a si própria, está a tentar destruir o conceito que ela faz de si própria. E ninguém deixa facilmente cair o conceito que faz de si mesmo; esse conceito é a sua identidade. Enfrentá-lo-á, provar-lhe-á de que ela tem razão e você não.
É o que está a acontecer a todos os relacionamentos de amor — ou antes a todos os assim-chamados relacionamentos de amor. Acontece entre marido e mulher, entre amante e amado, entre homem e mulher.