O Dia Segue o Curso Itinerante

I

Assim te amei, amada, assim te amei
de amor tão grande e puro que secou
no peito meu o rio que corria
submisso e atento para os braços teus.
Nos ermos vales agora percorro
os gestos esquecidos, densas brumas
do rio que fui, o rio que fomos,
largas águas seguindo o mar da noite.
Assim te amei o amor maior que pude.
E, mais ainda, a minha vida foi
uma desfeita nau vagando a esmo
o mar do tempo, o mar janeiro, o mar
que perdi. E agora, de ti disperso,
nos desertos de mim, sem fim, caminho.

II

E vou por outras águas procurando
o manso pouco, o malvo campo onde
apascentar o rebanho de mágoas,
o carro de afectos que mantenho
guardados no denso peito, tangidos
pelo vento no dorso do horizonte.
Largos desertos! abrandai a pena
sem fim que me domina! Alvos lírios,
rosas, boninas, nardos e outras flores!
Vinde ao menos cobrir-me a branda fronte
de púrpura, de orvalho e calmaria.
Eis que me vou por este vasto mar
de afagos e carícias inconstantes,
vivendo sonho e morte a cada instante.

III

E sempre neste calmo amor prestante
o peito nu crescendo em solidão.
A tarde passa, tudo passa quando
amor refaz o pó de que foi feito.
O dia segue o curso itinerante
e é sempre neste ocaso o tom de afago,
o ar desfeito, o mundo ignorado
apascentando o peito de quem ama.
É o vago som de um gesto soluçante.
Amor, um nome, o deus que nasce e vai,
o passo incerto em direcção da noite
que vem. É treva, é o sono agonizante
de quem, por muito amar, deixou o mundo
inerte e foi empós do amor errante.

IV

E em cada instante o sonho que não cessa.
O coração que diz: o amor não basta!
O peito se alargando na amplidão
da tarde, o frio, o mundo vasto e o sangue
que circula omnipotente, destino!
Distantes e vaguíssimos contornos
do ser que por meus olhos se derrama!
O corpo é lenta força que palpita,
é paz, é mundo, é vida que desvia
o inconstante curso e brota em cada
pensamento, emoção, transborda e vai
pela foz destas águas perguntando.
É sono, é pausa, ali onde resume
o humano amor a mágoa que é divina.