Textos sobre Criados

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Textos de criados escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

O Prazer em Perspectiva: a Esperança

A esperança é filha do desejo, mas não é o desejo. Constitui uma aptidão mental, que nos fez crer na realização de um desejo. Podemos desejar uma coisa sem que a esperemos. Toda gente deseja a fortuna, muito poucos a esperam. Os sábios desejam descobrir a causa primitiva dos fenômenos; eles não têm nenhuma esperança de consegui-lo. O desejo aproxima-se algumas vezes da esperança, a ponto de confundir-se com ela. Na roleta, eu desejo e espero ganhar.
A esperança é uma forma de prazer em expectativa que, na sua atual fase de espera, constitui uma satisfação freqüentemente maior do que o contentamento produzido pela sua realização. A razão é evidente. O prazer realizado limita-se em quantidade e em duração, ao passo que nada limita a grandeza do sonho criado pela esperança. A força e o encanto da esperança consistem em conter todas as possibilidades de prazer. Ela constitui uma espécie de vara mágica que transforma tudo. Os reformadores nunca fizeram mais do que substituir uma esperança por outra.

Cada Indivíduo é Único

A vida é, intrinsecamente, uma tremenda aceitação inconsciente. Aceitou totalmente os seus olhos? Aceitou totalmente o seu corpo? Aceitou totalmente a vida que leva? Esta ideia de aceitação total que nos é imposta torna-nos infelizes, porque está continuamente a fazer comparações. Há sempre alguém que tem uns olhos mais bonitos, um corpo mais forte e que possui mais conhecimentos. E a pessoa sente-se sempre inferior e esta inferioridade vai-nos corroendo o coração. Tornamo-nos cada vez mais infelizes, mas o motivo foi criado desnecessariamente por nós. Não há necessidade de nos compararmos com os outros, porque não existe ninguém com quem nos possamos comparar.
Cada indivíduo é único. E seja o que for, é dessa maneira que a existência quer que esse indivíduo seja. Desfrute disso.
Substitua a palavra «aceitação», porque não é uma palavra muito feliz. Aceitação é uma coisa que tem de se fazer, não há alternativa. Há pessoas mais bonitas, há pessoas mais ricas, há pessoas mais fortes. E o que é que podemos fazer? Aceitar.
Eu não ensino a aceitação desta maneira. A minha ideia de aceitação é completamente diferente da de todas as religiões.
Eu proclamo a sua unicidade.
Cada um de nós é apenas aquela pessoa particular e não existe ninguém –

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A Alma Popular é Totalmente Dominada por Elementos Afectivos e Místicos

A acção cada vez mais considerável das multidões na vida política imprime especial importância ao estudo das opiniões populares. Interpretadas por uma legião de advogados e professores, que as transpõem e lhe dissimulam a mobilidade, a incoerência e o simplismo, elas permanecem pouco conhecidas. Hoje, o povo soberano é tão adulado quanto foram, outrora, os piores déspotas. As suas paixões baixas, os seus ruidosos apetites, as suas ininteligentes aspirações suscitam admiradores. Para os políticos, servidores da plebe, os factos não existem, as realidades não têm nenhum valor, a natureza deve-se submeter a todas as fantasias do número.
A alma popular (…) tem, como principal característica, a circunstância de ser inteiramente dominada por elementos afectivos e místicos. Não podendo nenhum argumento racional refrear nela as impulsões criadas por esses elementos, ela obedece-lhes imediatamente.
O lado místico da alma das multidões é, muitas vezes, mais desenvolvido ainda do que o seu lado afectivo. Daí resulta uma intensa necessidade de adorar alguma coisa: deus, feitiço, personagem ou doutrina.
(…) O ponto mais essencial, talvez, da psicologia das multidões é a nula influência que a razão exerceu nelas. As ideias susceptíveis de influenciar as multidões não são ideias racionais, porém sentimentos expressos sob forma de ideias.

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O Mais Leve Sinal de Significação

Às vezes esqueço-me disto. Mas sempre que me lembro e posso, maravilho-me a ver como esta inacreditável fauna humana germina. Sento-me num café e fico uma hora inteira a ver passar na rua as trinta mil pessoas da cidade. Convencidas, vencidas, alegres, tristes, inquietas, calmas, seguras, inseguras, deslizam como imagens num écran. Naquele momento, dir-se-ia que cada uma concentra em si o destino do mundo. E, afinal, um segundo depois, não fica no seu caminho o mais leve sinal de tanta significação que parecia ter. Representou apenas um papel semelhante ao daqueles protagonistas das tragédias e comédias contadas num jornal que a criada amarrota, mete no fogão e queima.

O Homem Deformado pela Sociedade

Formou Deus o homem, e o pôs num paraíso de delícias; tornou a formá-lo a sociedade, e o pôs num inferno de tolices. O homem — não o homem que Deus fez, mas o homem que a sociedade tem contrafeito, apertando e forçando em seus moldes de ferro aquela pasta de limo que no paraíso terreal se afeiçoara à imagem da divindade — o homem assim aleijado como nós o conhecemos, é o animal mais absurdo, o mais disparatado e incongruente que habita na terra.

Rei nascido de todo o criado, perdeu a realeza: príncipe deserdado e proscrito, hoje vaga foragido no meio de seus antigos estados, altivo ainda e soberbo com as recordações do passado, baixo, vil e miserável pela desgraça do presente.
Destas duas tão apostas actuações constantes, que já per si sós o tornariam ridículo, formou a sociedade, em sua vã sabedoria, um sistema quimérico, desarrazoado e impossível, complicado de regras a qual mais desvairada, encontrado de repugnâncias a qual mais aposta. E vazado este perfeito modelo de sua arte pretensiosa, meteu dentro dele o homem, desfigurou-o, contorceu-o, fê-lo o tal ente absurdo e disparatado, doente, fraco, raquítico; colocou-o no meio do Éden fantástico de sua criação — verdadeiro inferno de tolices — e disse-lhe,

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Conta-nos a Tua História

Será que não há nenhum contexto para as nossas vidas? Nenhuma canção, nenhuma literatura, nenhum poema cheio de vitaminas, nenhuma história ligada à tua experiência que possas passar para nos ajudarem a ficar mais fortes? Tu és um adulto. O mais velho, o mais sábio. Pára de pensar em salvar a tua imagem. Pensa sobre as nossas vidas e conta-nos sobre o teu mundo em particular. Desenvolve uma história. A narrativa é radical, cria-nos a nós próprios no momento exacto em que está a ser criada. Nós não te vamos culpar se o teu alcance excede a tua compreensão, se o amor incendeia as tuas palavras, se elas descem em chamas e nada deixam a não ser a queimadura. Ou se, com a reticência das mãos de um cirurgião, as tuas palavras apenas suturam os sítios por onde o sangue pode ter fluído. Sabemos que nunca o conseguirás fazê-lo correctamente – de uma vez por todas. A paixão nunca é suficiente; nem a habilidade. Mas tenta. Por nós, e por ti próprio, esquece o teu nome na rua; conta-nos aquilo que o mundo tem sido para ti, tantos nos bons como nos maus momentos. Não nos digas o que acreditar,

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Não há Casamento com Luxúria

No casamento a revitalização da luxúria só pode ser conseguida enfraquecendo e destruindo os seus laços. Quero dizer, amantes. É por isso que a luxúria se torna um pecado, pois está destinada a morrer, e se ainda se acende isso só acontece por causa das mulheres fora do casamento. É assim que chegamos à ideia original de pecado quando a luxúria é a inimiga do amor. A cópula entre marido e mulher não é pecaminosa porque é feita sem luxúria. Todos os casos extraconjugais são luxuriosos e por isso pecaminosos. Assim, todas as tentativas de reavivar a luxúria no casamento são más, incluindo o afastamento.
Porque reacender a luxúria por um curto período ameaça um casamento, sujeitando a esposa à tentação de adultério na separação. O casamento foi criado para destruir a paixão embora a princípio atraia com paixão. Calcar a paixão com a paixão.
O casamento seduz com a legitimidade e com a disponibilidade da luxúria. Ao fazermos o juramento de fidelidade, não suspeitamos que estamos também a renunciar à luxúria. O casamento foi criado para distrair as pessoas da luxúria com a ajuda da luxúria. Por isso, para bem de um casamento forte, tem se aguentar o seu desaparecimento.

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O Professor como Mestre

Não me basta o professor honesto e cumpridor dos seus deveres; a sua norma é burocrática e vejo-o como pouco mais fazendo do que exercer a sua profissão; estou pronto a conceder-lhe todas as qualidades, uma relativa inteligência e aquele saber que lhe assegura superioridade ante a classe; acho-o digno dos louvores oficiais e das atenções das pessoas mais sérias; creio mesmo que tal distinção foi expressamente criada para ele e seus pares. De resto, é sempre possível a comparação com tipos inferiores de humanidade; e ante eles o professor exemplar aparece cheio de mérito. Simplesmente, notaremos que o ser mestre não é de modo algum um emprego e que a sua actividade se não pode aferir pelos métodos correntes; ganhar a vida é no professor um acréscimo e não o alvo; e o que importa, no seu juízo final, não é a ideia que fazem dele os homens do tempo; o que verdadeiramente há-de pesar na balança é a pedra que lançou para os alicerces do futuro.
A sua contribuição terá sido mínima se o não moveu a tomar o caminho de mestre um imenso amor da humanidade e a clara inteligência dos destinos a que o espírito o chama;

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O Homem não está à Altura da sua Obra

Dir-se-ia que a civilização moderna é incapaz de produzir uma elite dotada simultaneamente de imaginação, de inteligência e de coragem. Em quase todos os países se verifica uma diminuição do calibre intelectual e moral naqueles a quem cabe a responsabilização da direcção dos assuntos políticos, económicos e sociais. As organizações financeiras, industriais e comerciais atingiram dimensões gigantescas. São influenciadas não só pelas condições do país em que nasceram, mas também pelo estado dos países vizinhos e de todo o mundo. Em todas as nações produzem-se modificações sociais com grande rapidez. Em quase toda a parte se põe em causa o valor do regime político. As grandes democracias enfrentam problemas temíveis que dizem respeito à sua própria existência e cuja solução é urgente. E apercebemo-nos de que, apesar das grandes esperanças que a humanidade depositou na civilização moderna, esta civilização não foi capaz de desenvolver homens suficientemente inteligentes e audaciosos para a dirigirem na via perigosa por que a enveredou. Os seres humanos não cresceram tanto como as instituições criadas pelo seu cérebro. São sobretudo a fraqueza intelectual e moral dos chefes e a sua ignorância que põem em perigo a nossa civilização.

O Artista é Maior que Deus

Como é bom escrever ao apelo incerto do que nos faz sinais. Como é fascinante escrever para saber o que é. Indeciso apelo, motivo que o não é, até se saber o que é. Trazê-lo à vida da sua nebulosa, captá-la na errância de uma inquieta procura. Obedecer ao impulso que sobe em nós em energia e movimentação, na necessidade de o realizar e ele coalhar em escrita, no irreal da sua realização. Estremecer ao aviso, persegui-lo até onde não sabemos o seu tudo, depois da surpresa do que lá estava.
Escrever é não saber para saber. Mas o que se sabe é frágil e há que procurá-lo até à eternidade. Porque o que se encontra é ainda a procura, o além de todo o aquém. E é porque nunca se encontra, que a arte continua. Assim o artista é maior do que Deus. Porque ele já tinha criado, antes de criar, e assim não teve surpresas. E quem escreve só no infinito realiza a sua criação e só aí as não terá.

O Amor Maior

O amor é preocupação. Ter o coração já previamente ocupado. Ter medo que alguma coisa de mal aconteça à pessoa amada. Sofrer mais por não poder aliviar o sofrimento da pessoa amada do que ela própria sofre.
O amor é banal. É por isso que é tão bonito. O que se quer da pessoa amada: antes que ela nos ame também, é que ela seja feliz, que seja saudável, que tudo lhe corra bem. Embora se saiba que o mundo não o permite, passa-se por cima da realidade, do raciocínio do que é possível, e quer-se, e espera-se, que Deus abra, no caso dela, uma excepção.

A paixão pode parecer mais interessante. Mas irrita-me que se compare com o amor. Como se pode comparar dois sentimentos que não têm uma única semelhança? Se o amor e a paixão coincidem, é como a cor do céu e do mar num dia de Verão — é uma alegria, mas nada nos diz acerca do que distingue o ar da água.
Dizer que o amor pode começar como paixão é uma forma falaciosa de estabelecer uma continuidade entre uma e outra, geralmente pejorativa para o amor, que é entendido como um resíduo da paixão,

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Amor e Intimidade

Toda a gente tem medo da intimidade — ter ou não ter consciência desse medo é outra história. A intimidade significa expor-se perante um estranho — e todos nós somos estranhos; ninguém conhece ninguém. Somos mesmo estranhos a nós próprios, porque não sabemos quem somos.
A intimidade aproxima-o de um estranho. Tem de deixar cair todas as suas defesas; só assim a intimidade é possível. E o seu medo é que se deixar cair todas as suas defesas, todas as suas máscaras, quem sabe o que o estranho lhe poderá fazer. Todos nós andamos a esconder mil e uma coisas, não só dos outros mas de nós próprios, porque fomos criados por uma humanidade doente com toda a espécie de repressões, inibições e tabus. E o medo é que, com alguém que seja um estranho — e não importa se se viveu com a pessoa durante trinta ou quarenta anos; a estranheza nunca desaparece —, parece mais seguro manter uma ligeira defesa, uma pequena distância, porque alguém se poderá aproveitar das suas fraquezas, da sua fragilidade, da sua vulnerabilidade.
Toda a gente tem medo da intimidade. O problema torna-se mais complicado porque toda a gente quer intimidade. Toda a gente quer intimidade porque,

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O Adoçamento da Pílula Vocabular

É curioso verificar através da língua — espelho fiel de cada sociedade e de cada época — como em certos aspectos essenciais da vida não houve práticamente progresso nenhum, consistindo tudo quanto se fez num puro e vazio eufemismo de designação. Escravo, servo, criado, empregado, assalariado … ; demoníaco, possesso, maluco, doido, doente, nevrosado…

Razão afectada pelo Desejo

O homem que deseja agir de certa forma se persuadirá que, assim procedendo, alcançará algum propósito que considera bom, mesmo que não vise motivo algum para pensar dessa forma, se não tivesse tal desejo. E julgará os factos e probabilidades de maneira muito diferente daquela adoptada por um homem com desejos opostos. Como todos sabem, os jogadores estão cheios de crenças irracionais relativas a sistemas que devem, no fim, fazê-los ganhar. Os que se interessam pela política persuadem-se de que os líderes do seu partido jamais praticariam as patifarias cometidas pelos adversários. Os homens que gostam de administrar acham que é bom para o povo ser tratado como um rebanho de ovelhas, os que gostam do fumo dizem que acalma os nervos, e os que apreciam o álcool afirmam que aguça o tino. A parcialidade assim criada falsifica o julgamento dos homens em relação aos factos, de modo muito difícil de evitar.
Até mesmo um erudito artigo científico sobre os efeitos do álcool no sistema nervoso em geral trai, por sintomas internos, o facto de o autor ser ou não abstémio; em ambos os casos tende a ver os factos de maneira que justifique a sua atitude. Em política e religião tais considerações tornam-se muito importantes.

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O Saber Altera a Economia de um Ser

O que aprendemos por nós próprios, seja que conhecimento for extraído do nosso próprio fundo, é algo que teremos que expiar por um suplemento de desequilíbrio. Fruto de uma desordem íntima, de uma doença definida ou difusa, de uma perturbação na raiz da nossa existência, o saber altera a economia de um ser. Cada um de nós terá que pagar pelo mais pequeno golpe que vibra num universo criado para a indiferença e para a estagnação; cedo ou tarde, arrepender-se-á, arrepender-nos-emos, de o não ter, ou de o não termos, deixado intacto.
O que sendo verdade para o conhecimento é mais verdade ainda para a ambição, porque invadir o terreno de outrem acarreta consequências mais graves e mais imediatas do que invadir o terreno do mistério ou simplesmente da matéria.
Começamos por fazer tremer os outros, mas os outros acabam por nos comunicar os seus terrores. É por isso que os tiranos, também eles, vivem no pavor. O que o nosso futuro senhor há-de conhecer será sem dúvida exacerbado por uma felicidade sinistra, como ninguém experimentou comparável, à medida do solitário por excelência, erguido diante da humanidade toda, semelhante a um deus entronizado no medo, num pânico omnipotente,

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Na Tua Voz, Irmão

Estavam sentados e não falavam. Cada um olhava para um lado que não via. Atrás dos rostos tristes, cismavam. Pensando, Moisés dizia palavras ao irmão, esperançado de que ele as ouvisse; no pensamento, dizia será um instante e trará a solidão. Pela primeira vez, gritaremos o nome um do outro. Já reparaste?, nunca precisámos de nos chamar. Não sei como é o meu nome na tua voz. Na tua voz, irmão, irmão. Não sei como é o teu nome na minha voz. Pela primeira vez, gritaremos o nome um do outro, e o desespero será a antecâmara de uma dor triste a que nos habituaremos, como se habitua um homem sem coração ao espaço negro no peito. Viveste sempre na minha vida, e eu estive sempre contigo quando sorriste. Hoje, a solidão. Desapareceremos um do outro, deixaremos de ser nós para sermos só tu e só eu. Mas não esqueceremos. E lembrarmo-nos será o maior sofrimento, recordarmos o que fomos onde estivermos e não podermos ser mais nada nesse dia. Lembrarmo-nos de quando acordávamos e olhávamos um para o outro, pois tínhamos acordado ao mesmo tempo e tínhamos ao mesmo tempo pensado em ver-nos. Lembrarmo-nos de falar na nossa maneira de falar,

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Como te Tens Lembrado Hoje de Mim?

O que tens tu feito, amor? Andarás, como segunda-feira, cavaleiro andante a flirtar às janelas das ruas do Alto do Pina, com damas de cem anos?… Cem anos, pelo menos… Eu creio mesmo que tu disseste mais alguns… Sempre estás uma prenda, um espertalhão… Tenho que te educar convenientemente e ensinar-te que damas de cem anos e mulheres que fazem queijadas, não servem, ou pelo menos não devem servir, a quem tem a suprema felicidade de possuir uma mulher como eu, que sou uma pérola, ou por outra: um colar de pérolas, como ontem gentilmente me chamaste… Estás de acordo, não é verdade?

A tua pequenina fera está há imenso tempo ansiosa que a chuva acabe, para deitar o focinhito fora do covil, ao menos por cinco minutos; mas não há meio, o diabo da chuva continua a cair sem piedade e daqui a pouco a ferazinha sai mesmo com chuva e tudo. Há tanto tempo que não saio! Em horas de concentração de consciência, eu ponho-me a pensar que nunca julguei capaz que um homem pudesse fazer da Miss América, como muita gente me chamava dantes, esta burguezinha pacata, que, detrás dos vidros duma janela, passa a vida a fazer rendas,

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Os Falsos Cultos

A maior parte das pessoas, ao entregarem-se às chamadas ocupações intelectuais, considerando como tais o ler e o escrever (não o escrever cartas, mas o escrever como autor), não fazem de modo algum o que julgam fazer: porque nem embelezam a sua cultura – «ampliar» a sua cultura, como se costuma dizer, é um disparate horroroso – nem aguçam o seu entendimento, nem enriquecem a sua experiência, e não produzem mais nem nada mais importante que aqueles rapazes que remexem a terra à beira de um charco, deitam pedras para a água turva, etc., em suma, um nada em grande azáfama.
Nenhum bocado da superfície de uma figura pode ser criado senão a partir do seu âmago.

O Tédio é a Raiz de Todo o Mal

Não admira, pois, que o mundo vá de mal a pior e que os males aumentem cada vez mais, à medida que aumenta o tédio, e o tédio é a raiz de todo o mal. A história deste pode acompanhar-se desde os primórdios do mundo. Os deuses estavam entediados, pelo que criaram o homem. Adão estava entediado por estar sozinho, e por isso foi criada Eva. Assim o tédio entrou no mundo e aumentou na proporção do aumento da população. Adão aborrecia-se sozinho, depois Adão e Eva aborreceram-se juntos, depois Adão e Eva e Caim e Abel aborreceram-se en famille; depois a população do mundo aumentou e os povos aborreceram-se en masse. Para se divertirem congeminaram a ideia de construir uma torre tão alta que chegasse ao céu. Esta ideia, por sua vez, é tão aborrecida como a torre era alta, e constitui uma prova terrível de como o tédio se tornou dominante.