O Ingrato e o seu Oposto
O ingrato tortura-se e aflige-se a si mesmo; odeia os benefícios que recebe por ter de retribuí-los, procura reduzir a sua importância e, pelo contrário, agigantar enormemente as ofensas que lhe foram causadas. Há alguém mais miserável do que um homem que se esquece dos benefícios para só se lembrar das ofensas? A sabedoria, pelo contrário, valoriza todos os benefícios, fixa-se na sua consideração, compraz-se em recordá-los continuamente. Os maus só têm um momento de prazer, e mesmo esse breve: o instante em que recebem o benefício; o sábio, pelo seu lado, extrai do benefício recebido uma satisfação grande e perene. O que lhe dá prazer não é o momento de receber, mas sim o facto de ter recebido o benefício; isto é para ele algo de imortal, de permanente. O sábio não tem senão desprezo por aquilo que o lesou; tudo isso ele esquece, não por incúria, mas voluntariamente. Não interpreta tudo pelo pior, não procura descobrir o culpado do que lhe sucedeu, preferindo atribuir os erros dos homens à fortuna.
Não atribui más intenções às palavras ou aos olhares dos outros, antes procura dar do que lhe fazem uma interpretação benevolente. Prefere lembrar-se do bem que lhe fizeram,
Textos sobre Fatos
430 resultadosAs Queixas dos Pais
É desagradável ouvir o meu pai falar, sempre cheio de insinuações, da boa sorte das pessoas de hoje e especialmente dos filhos dele, dos sofrimentos por que teve de passar quando era novo. Ninguém nega que, durante anos, por não ter roupa de Inverno capaz, ele teve feridas nas pernas, que andou muitas vezes com fome, que quando só tinha ainda dez anos empurrava uma carroça pelas aldeias, até de Inverno e de manhã muito cedo — mas, e isto é uma coisa que ele não compreende, estes factos, juntamente com o de eu não ter tido de passar por tudo isto, não levam a concluir que eu sou mais feliz do que ele, que ele se pode orgulhar das feridas que teve nas pernas, que é uma coisa de que se arroga e que afirma desde o princípio, que eu não posso avaliar os seus sofrimentos e que, finalmente, só porque não passei pelos mesmos sofrimentos, tenho de lhe estar eternamente grato. O prazer que eu não teria de o ouvir falar da sua juventude e dos pais, mas ouvir tudo isto naquele tom de orgulho e agressividade é um tormento. Está constantemente a erguer as mãos: «Quem é capaz de compreender isto hoje!
Vivemos numa Paz de Animais Domésticos
Uma cobra de água numa poça do choupal, a gozar o resto destes calores, e umas meninas histéricas aos gritinhos, cheias de saber que o bicho era tão inofensivo como uma folha.
Por fidelidade a um mandato profundo, o nosso instinto, diante de certos factos, ainda quer reagir. Mas logo a razão acode, e o uivo do plasma acaba num cacarejo convencional. Todos os tratados e todos os preceptores nos explicaram já quantas espécies de ofídios existem e o soro que neutraliza a mordedura de cada um. Herdamos um mundo já quase decifrado, e sabemos de cor as ervas que não devemos comer e as feras que nos não podem devorar. Vivemos numa paz de animais domésticos, vacinados, com os dentes caninos a trincar pastéis de nata, tendo aos pés, submissos, os antigos pesadelos da nossa ignorância. Passamos pela terra como espectros, indo aos jardins zoológicos e botânicos ver, pacata e sàbiamente, em jaulas e canteiros, o que já foi perigo e mistério. E, por mais que nos custe, não conseguimos captar a alma do brinquedo esventrado. O homem selvagem, que teve de escolher tudo, de separar o trigo do joio, de mondar dos seus reflexos o que era manso e o que era bravo,
A Verdade é a Coisa Mais Óbvia
A verdade é a coisa mais óbvia e mais simples da existência, mas provoca uma enorme dificuldade, a mente não se interessa pelo óbvio. A mente não se entusiasma com o que é simples, porque lá no fundo a mente não é mais do que o seu ego, e o alimento do ego provém do desafio do longínquo. Quanto mais árdua, mais tortuosa e mais difícil for uma conquista, mais fascinada ficará a mente, sentindo-se pronta para partir rumo à estrela mais distante, sem querer saber o que lá irá encontrar. Esse facto torna-se irrelevante.
Indivíduo e Colectividade
Uma antiquada concepção, cuja carreira não terminou de todo em Portugal, faz constituir a história na evocação dos homens e dos eventos singulares, faustosa galeria de retratos e painéis de batalhas, a que se acrescenta quando muito o quadro das instituições. Dir-se-ia desta sorte que os factos de ocupação do solo e agrupamento da população, as variações do regime económico, a elaboração de um espírito colectivo, os movimentos e transformações da massa, isto é, os factos própriamente sociais não têm importância na vida da sociedade. Longe de nós negar a parte da criação individual na história. Mas todas as nações, antes de atingirem a sua definição política suprema, atravessam um demorado período de formação, onde ocultam quase exclusivamente esses factos gerais.
A consciência de uma solidariedade e de um ideal colectivo, o sentimento e a ideia de uma pátria elaboram-se lentamente através desses movimentos de grupos e das lutas entre eles suscitadas. E por via de regra os grandes homens são tanto mais representativos quanto melhor encarnam e orientam as aspirações colectivas.
A Obrigação da Verdade
Quando olhamos um espelho, pensamos que a imagem à nossa frente é exacta. Mas basta movermo-nos um milímetro para a imagem se alterar. Aquilo que estamos realmente a ver é uma gama infindável de reflexos. Mas às vezes o escritor tem de quebrar o espelho — porque é do outro lado do espelho que a verdade nos encara.
Estou convencido de que, apesar dos enormes obstáculos existentes, há uma obrigação crucial que recai sobre todos nós enquanto cidadãos: de com uma determinação intelectual inflexível, inabalável e feroz definir a verdade autêntica das nossas vidas e das nossas sociedades. É de facto uma obrigação imperativa.
Se essa determinação não se incorporar na nossa visão política, não tenhamos esperança de restaurar aquilo que já quase se perdeu para nós — a dignidade do homem.
A Felicidade e a Virtude Não São Argumentos
Ninguém tomará facilmente por verdadeira uma doutrina somente porque ela torna felizes ou virtuosos os homens: exceptuando, talvez, os amáveis «idealistas» que se entusiasmam pelo Bom, o Verdadeiro, o Belo e fazem nadar, no seu charco, toda a espécie de variegadas, pesadonas e bonacheironas idealidades. A felicidade e a virtude não são argumentos. Mas de bom grado se esquece, mesmo os espíritos ponderados, que tornar infeliz e tornar mau não são tão-pouco contra-argumentos. Uma coisa deveria ser certa, embora fosse muitíssimo prejudicial e perigosa; seria até possível fazer parte da estrutura básica da existência o perecermos por causa do nosso conhecimento total, – de forma que a força de um espírito se mediria justamente pela quantidade de «verdade» que era capaz de suportar ou, mais claramente, pelo grau em que necessitasse de a diluir, velar, adocicar, embotar, falsificar. Mas está fora de dúvida o facto de os maus e infelizes serem mais favorecidos e terem maior possibilidade de êxito na descoberta certas partes da verdade; para não falar dos maus que são felizes, – espécie que os moralistas passam em silêncio.
É possível que a dureza e a astúcia forneçam, para o desenvolvimento do espírito e do filósofo firmes e independentes,
O Estado de Transe
O estado de transe é um estado quase normal no ser humano; basta muito pouco para provocá-lo. Uma coisa de nada, um pouco de álcool no sangue, um pouco de droga, excesso de oxigénio, a cólera, o cansaço. Mas este estado é interessante na medida em que é orientável. Trata-se de um balanço, mas esse lança mão das regiões desconhecidas do nosso espírito. De facto, não há fundamentalmente nenhuma diferença, entre um homem intoxicado pelo álcool e um santo que se entregue ao êxtase. E no entanto há apesar de tudo uma diferença: a da interpretação. O momento de loucura é preparado por uma etapa onde o assunto é mergulhado numa espécie de vacilação da consciência, de excitação cerebral violenta. É esse momento que fabrica verdadeiramente o êxtase e lhe dá o sentido. Enquanto o êxtase em si mesmo é cego. É o vazio total, sem ascensão nem queda. A calma plana. Tanto quanto se possa dizer que o santo nunca conhecerá Deus. Aproxima-O, depois regressa. E estas duas etapas são as que são. Entre as duas, é o nada. O vazio, a amnésia completa. No momento X do êxtase, o santo e o intoxicado são semelhantes, estão no mesmo local.
Ser Pontual
Não sou pontual, porque não sinto os sofrimentos da espera. Espero que nem um boi. Porque se eu sinto uma finalidade na minha existência actual, mesmo que seja muito incerta, sinto-me na minha fraqueza tão vaidoso que era capaz de aguentar tudo só para ter esta finalidade à minha frente. Mesmo se estivesse apaixonado, o que eu então não faria! Quanto tempo não esperei, há anos, debaixo das arcadas do Ring até M. passar, mesmo para a ver andar com o namorado. Tenho chegado atrasado a encontros em parte por descuido, em parte pela minha ignorância dos sofrimentos da espera, mas também em parte para obter novas e complicadas finalidades através de uma busca renovada e incerta da pessoa com quem tinha combinado o encontro, e assim conseguir a possibilidade de uma espera incerta e longa. Pelo facto de eu em criança ter um medo terrível de esperar por alguém, poderia concluir-se que estava destinado a qualquer coisa melhor e que previa o meu futuro.
É Impossível Criar um Ser Livre
É impossível compreender a produção de um ser dotado de liberdade por uma operação física. Não se pode nem mesmo compreender como é possível Deus criar seres livres; de facto, parece que todas as suas acções futuras deveriam ser predeterminadas por esse primeiro acto e compreendidas na cadeia da necessidade natural e, consequentemente, elas não seriam livres.