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Textos de autores conhecidos para ler e compartilhar. Os melhores textos estão em Poetris.

O Solitário

O solitário leva uma sociedade inteira dentro de si: o solitário é multidão. E daqui deriva a sua sociedade. Ninguém tem uma personalidade tão acusada como aquele que junta em si mais generalidade, aquele que leva no seu interior mais dos outros. O génio, foi dito e convém repeti-lo frequentemente, é uma multidão. É a multidão individualizada, e é um povo feito pessoa. Aquele que tem mais de próprio é, no fundo, aquele que tem mais de todos, é aquele em quem melhor se une e concentra o que é dos outros.
(…) O que de melhor ocorre aos homens é o que lhes ocorre quando estão sozinhos, aquilo que não se atrevem a confessar, não já ao próximo mas nem sequer, muitas vezes, a si mesmos, aquilo de que fogem, aquilo que encerram em si quando estão em puro pensamento e antes de que possa florescer em palavras. E o solitário costuma atrever-se a expressá-lo, a deixar que isso floresça, e assim acaba por dizer o que todos pensam quando estão sozinhos, sem que ninguém se atreva a publicá-lo. O solitário pensa tudo em voz alta, e surpreende os outros dizendo-lhes o que eles pensam em voz baixa,

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O Que Vale Poupar o Corpo?

Quando o corpo é bem constituído, talvez seja possível fazê-lo durar alguns anos a mais poupando-o. Pode ser que a moderação nas paixões, a temperança e a sobriedade nos prazeres contribuam para a duração da vida; mas até isso parece bem duvidoso: é necessário que o corpo empregue todas as suas forças, que consuma tudo o que pode consumir, que se exercite o quanto for capaz; o que se ganhará então pela dieta e pela privação?

A Censura de Um Deve Pesar Mais que uma Plateia de Ignorantes

Hamlet (para um dos actores): Portanto, nada de contenção exagerada. O seu discernimento deve ser o seu guia. Ajuste o gesto à palavra, a palavra ao gesto, e cuide de não perder a simples naturalidade. Pois tudo o que é forçado foge do propósito da actuação, cuja finalidade, tanto na origem como agora, era e é erguer um espelho diante da natureza. Mostrar à virtude as suas feições; ao orgulho, o desprezo, e a cada época e geração, sua figura e estampa. O exagero e a imperícia podem divertir os incultos, mas causam apenas desconforto aos judiciosos; àqueles cuja censura, ainda que de um só, deve pesar mais em sua estima que toda uma plateia de ignorantes.

A Embriaguez e Seriedade da Juventude

Passada a adolescência, é possível conhecer-se alegrias, mas não já a embriaguez. Tapar os buracos das peúgas uns com os outros! Ter medo de perder o comboio! Ter o dinheiro à justa para a viagem e recear que à última hora um irmão ainda a dormir surripie a quantia! Talvez porque a embriaguez venha do facto da inquietação e das hesitações se tornarem mais angustiantes quando tudo se ignora. Não teria qualquer aventura amorosa em Nantes? Quem diz «amor» diz pistola, e pistola era coisa que eu não tinha. Ora o que nesta viagem mais me surpreendeu foi terem-me reconhecido, em casa de um sapateiro, por certa parecença com uma velha parente minha e o elogio que ouvi fazerem dessa criatura cuja vida eu considerava nula. Os jovens levam tudo a sério, ainda que não saibam conferir um ar sério àquilo que levam. Na realidade, experimentam apenas emoções desproporcionadas.

A Felicidade é Modesta e não Ambiciosa

Aqui tens o que posso dizer-te constantemente, a matéria que poderei estar sempre a debater, pois ambos vemos à nossa roda inúmeros milhares de pessoas inquietas que, a fim de obterem algo de altamente nocivo, andam com perseverança a praticar o mal, sempre à procura de coisas que logo a seguir deixam de lhes interessar, ou mesmo as enchem de repulsa! Já viste alguém contentar-se com uma coisa que, antes de a obter, lhe parecia mais que suficiente? A felicidade, ao contrário da opinião corrente, não é ambiciosa, mas sim modesta, e por isso mesmo nunca sacia ninguém. Tu pensas que aquilo que satisfaz o vulgo é elevado porque ainda estás longe da perfeição estóica; para quem a alcançou, tudo isso é absolutamente rasteiro! Minto: para quem começou a subir até esse nível, pois o ponto que tu pensas ser já o mais alto não passa de um degrau. Toda a gente é infelizmente confundida pela ignorância da verdade. Enganada pela opinião vulgar, procura como se fossem bens certas coisas que, depois de muito penar para as conseguir, verifica serem nocivas, inúteis ou inferiores ao que esperava. A maior parte das pessoas sente admiração por coisas que só ao fim de algum tempo se revelam ilusórias;

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Liberdade Sofrida

Em tempos pensei que tinha sido ferido como homem algum jamais o fora. Por sentir isso, jurei escrever este livro. Mas muito antes de começar a escrevê-lo a ferida cicatrizou. Como jurara cumprir a minha tarefa, reabri a horrível ferida. Deixem-me explicar por outras palavras. Talvez ao abrir a ferida, a minha própria ferida, tenha fechado outras feridas, feridas de outras pessoas. Morre qualquer coisa, floresce qualquer coisa. Sofrer na ignorância é horrível. Sofrer deliberadamente, para compreender a natureza do sofrimento e aboli-lo para sempre, é muito diferente. O Buda, como sabemos, teve toda a vida um pensamento fixo no espírito: eliminar o sofrimento humano.
Sofrer é desnecessário. Mas temos de sofrer para compreender que é assim.
Além disso, é só então que o verdadeiro significado do sofrimento humano se torna claro. No derradeiro momento desesperado – quando não podemos sofrer mais! – acontece qualquer coisa que tem a natureza de um milagre. A grande ferida aberta pela qual se escoava o sangue da vida fecha-se, o organismo desabrocha como uma rosa. Somos «livres», finalmente (…). Não são as lágrimas que mantêm viva a árvore da vida, mas sim o conhecimento de que a liberdade é real e eterna.

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Todas as Ideologias Profissionais São Nobres

Todas as ideologias profissionais são nobres: os caçadores, por exemplo, nunca sonhariam em se denominar carniceiros da floresta, afirmando, pelo contrário, a sua condição de legítimos amigos dos animais e da natureza; do mesmo modo, os comerciantes defendem o princípio do lucro honesto e os ladrões, por sua vez, adoptaram como seu o deus dos comerciantes, o distinto promotor das relações internacionais, Mercúrio. Não adianta muito, por isso, acreditar na imagem que uma determinada actividade assume na consciência daqueles que a exercem.

A Nefasta Hiperdemocracia dos Nossos Tempos

Ninguém, creio eu, deplorará que as pessoas gozem hoje em maior medida e número que antes, já que têm para isso os apetites e os meios. O mal é que esta decisão tomada pelas massas de assumir as actividades próprias das minorias, não se manifesta, nem pode manifestar-se, só na ordem dos prazeres, mas que é uma maneira geral do tempo. Assim (…) creio que as inovações políticas dos mais recentes anos não significam outra coisa senão o império político das massas. A velha democracia vivia temperada por uma dose abundante de liberalismo e de entusiasmo pela lei. Ao servir a estes princípios o indivíduo obrigava-se a sustentar em si mesmo uma disciplina difícil. Ao amparo do princípio liberal e da norma jurídica podiam atuar e viver as minorias. Democracia e Lei, convivência legal, eram sinónimos. Hoje assistimos ao triunfo de uma hiperdemocracia em que a massa actua directamente sem lei, por meio de pressões materiais, impondo suas aspirações e seus gostos.
É falso interpretar as situações novas como se a massa se houvesse cansado da política e encarregasse a pessoas especiais o seu exercício. Pelo contrário. Isso era o que antes acontecia, isso era a democracia liberal. A massa presumia que,

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A Vida não Passa de um Reflexo da Nossa Memória

Há uma coisa que me humilha: a memória é muitas vezes a qualidade da tolice; pertence em geral aos espíritos grosseiros, os quais torna mais pensantes pela bagagem com a qual os sobrecarrega. E, no entanto, sem a memória, o que seríamos? Esqueceríamos as nossas amizades, os nossos amores, os nossos prazeres, os nossos negócios; o génio não poderia reunir as suas ideias; o coração mais afectuoso perderia a sua ternura, caso não se recordasse mais dela; a nossa existência reduzir-se-ia aos momentos sucessivos de um presente que transcorre sem cessar; não haveria mais passado. Ó que miséria a nossa! A nossa vida é tão vã que não passa de um reflexo da nossa memória.

A Grande Renúncia

Cedo ou tarde, a todo o homem chega a grande renúncia. Para o jovem não existe nada inalcançável. Que algo bom e desejado com toda a força de uma vontade apaixonada seja impossível, não lhe parece crível. Mas, ou por meio da morte ou da doença, da pobreza ou da voz do dever, cada um de nós é forçado a aprender que o mundo não foi feito para nós e que, não importa quão belas as coisas que almejamos, o destino pode, não obstante, proibi-las. É parte da coragem, quando a adversidade vem, suportá-la sem lamentar a derrocada das nossas esperanças, afastando os nossos pensamentos de vãos arrependimentos. Esse grau de submissão (…) não é somente justo e correcto: ele é o portal da sabedoria.

O Amor não Existe sem Ciúme

Se o ciúme nasce do intenso amor, quem não sente ciúmes pela amada não é amante, ou ama de coração ligeiro, de modo que se sabe de amantes os quais, temendo que o seu amor se atenue, o alimentam procurando a todo o custo razões de ciúme.
Portanto o ciumento (que porém quer ou queria a amada casta e fiel) não quer nem pode pensá-la senão como digna de ciúme, e portanto culpada de traição, atiçando assim no sofrimento presente o prazer do amor ausente. Até porque pensar em nós que possuímos a amada longe – bem sabendo que não é verdade – não nos pode tornar tão vico o pensamento dela, do seu calor, dos seus rubores, do seu perfume, como o pensar que desses mesmos dons esteja afinal a gozar um Outro: enquanto da nossa ausência estamos seguros, da presença daquele inimigo estamos, se não certos, pelo menos não necessariamente inseguros. O contacto amoroso, que o ciumento imagina, é o único modo em que pode representar-se com verosimilhança um conúbio de outrem que, se não indubitável, é pelo menos possível, enquanto o seu próprio é impossível.
Assim o ciumento não é capaz, nem tem vontade, de imaginar o oposto do que teme,

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A Imortalidade Pela Literatura, a Filosofia Como Meio de a Aceder

Simone de Beauvoir: Com que contava para sobreviver – na medida em que pensava sobreviver: com a literatura ou com a filosofia? Como sentia a sua relação com a literatura e a filosofia? Prefere que as pessoas gostem da sua filosofia ou da sua literatura, ou quer que gostem das duas?
Jean-Paul Sartre: Claro que responderei: que gostem das duas. Mas há uma hierarquia, e a hierarquia é a filosofia em segundo e a literatura em primeiro. Desejo obter a imortalidade pela literatura, a filosofia é um meio de aceder a ela. Mas aos meus olhos ela não tem em si um valor absoluto, porque as circunstâncias mudarão e trarão mudanças filosóficas. Uma filosofia não é válida por enquanto, não é uma coisa que se escreve para os contemporâneos; ela especula sobre realidades intemporais; será forçosamente ultrapassada por outros porque fala da eternidade; fala de coisas que ultrapassam de longe o nosso ponto de vista individual de hoje; a literatura, pelo contrário, inventaria o mundo presente, o mundo que se descobre através das leituras, das conversas, das paixões, das viagens; a filosofia vai mais longe; ela considera que as paixões de hoje, por exemplo, são paixões novas que não existiam na Antiguidade;

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A Tempestade do Destino

Por vezes o destino é como uma pequena tempestade de areia que não pára de mudar de direcção. Tu mudas de rumo, mas a tempestade de areia vai atrás de ti. Voltas a mudar de direcção, mas a tempestade persegue-te, seguindo no teu encalço. Isto acontece uma vez e outra e outra, como uma espécie de dança maldita com a morte ao amanhecer. Porquê? Porque esta tempestade não é uma coisa que tenha surgido do nada, sem nada que ver contigo. Esta tempestade és tu. Algo que está dentro de ti. Por isso, só te resta deixares-te levar, mergulhar na tempestade, fechando os olhos e tapando os ouvidos para não deixar entrar a areia e, passo a passo, atravessá-la de uma ponta a outra. Aqui não há lugar para o sol nem para a lua; a orientação e a noção de tempo são coisas que não fazem sentido. Existe apenas areia branca e fina, como ossos pulverizados, a rodopiar em direcção ao céu. É uma tempestade de areia assim que deves imaginar.
(…) E não há maneira de escapar à violência da tempestade, a essa tempestade metafísica, simbólica. Não te iludas: por mais metafísica e simbólica que seja, rasgar-te-á a carne como mil navalhas de barba.

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A Sabedoria da Velhice

Nós, os novos, seremos velhos um dia. Essa é mesmo a melhor saída para a nossa vida, sinal de que atingimos uma sabedoria maior, prémio por termos alcançado o topo da hierarquia da existência. Não é o tempo que nos faz auferir esse estatuto, mas o tempo dá-nos mais tempo para fazermos alguma coisa com ele e assim aprender para saber mais.
Ninguém sabe mais do que um velho. Ao lado do seu avô, um doutorado é um ignorante e, se afirmar saber mais do que aquelas duas gerações de diferença, é um ignorante imbecil. É o que não falta entre nós, os novos. Dá-se mais valor ao que se aprende nas faculdades do que ao que se aprende na vida, dá-se mais valor à teoria do que à prática. Coitados de nós. E depois não nos lembramos da idade, achamos que nos passa ao lado e por isso não reconhecemos aos velhos o estatuto de sábios e o respeito que lhes é devido. Somos imbecis. A maior parte de nós é tonta. Só isso justifica o abandono. Um velho é um mapa de conhecimento, tem dentro dele muitas estradas principais, muitas vias secundárias e muitos atalhos, muitos becos sem saída,

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O Sexo é um Caso Sério

Pensai no casal mais belo, mais encantador, como ele se atrai e se repele, se deseja e foge um do outro com graça num belo jogo de amor. Chega o instante da volúpia, e toda a brincadeira, toda a alegria graciosa e doce de súbito desapareceram. Porquê? Porque a volúpia é bestial, e a bestialidade não ri. As forças da natureza agem por toda a parte seriamente. A volúpia dos sentidos é o oposto do entusiasmo que nos abre o mundo ideal. O entusiasmo e a volúpia são graves e não comportam a brincadeira.

Saber Estar em Sociedade

O homem que não tem mais do que o próprio valor necessita de ser excelente em grande número de virtudes, tal como a pedra que não é preciosa necessita de ser revestida de metal; mas comummente acontece com a reputação o mesmo que com o lucro, se é verdadeiro o provérbio que diz: que com leves ganhos se fazem pesadas bolsas, porque estes são frequentes, enquanto os grandes só chegam de vez em quando; assim, também é verdade que pequenas coisas ganham grande recomendação, porque são de uso e de observação corrente, enquanto a ocasião de manifestar grandes virtudes só é dada nos dias-santos. Para adquirir boas maneiras basta apenas não as desdenhar, porque, habituando-nos a observá-las nos outros, deixamos confiadamente operar em nós a imitação; pois se cuidarmos de as exprimir, perdem logo a sua graça, a qual é serem naturais e desafectadas. O comportamento de cada homem deve ser como um verso, no qual todas as sílabas são medidas. Como pode um homem ocupar-se de grandes assuntos, se quebra demasiado o seu espírito com mesquinhas observações? Não usar completamente de cerimónias é ensinar aos outros que não as usem também, e assim diminuir o respeito próprio; especialmente, não devem ser omitidas perante estrangeiros e pessoas desconhecidas.

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Uma Significação para a Vida

Como é que o homem vai viver sem uma significação para a vida? Donde essa significação? Os sucedâneos dos deuses atropelam-se tumultuosos, mas duram menos que os deuses, duram menos que um homem. Imaginei um dia que o homem viria a aceitar a sua condição em plenitude. Só não imagino esse homem. Porque imaginando-o como me é possível, penso que admitirá uma transcendência inominável, uma dimensão que supere o imediato da vida. Só que o pensá-lo não me afecta o sentir. Tenho o enigma mas não a chave que o desvende. Sei a interrogação, mas não posso convertê-la na pergunta a que se dá uma resposta. Da integração do homem no mistério do universo o que me fica é a vertigem. Mas aguento-me aí sem me retirar do abismo nem cair nele. O curioso é que são os «racionalistas» quem menos se perturba com a sem-razão de tudo isto. Porque eles é que deviam saber, mais do que os outros, o porquê e o para quê. Não querem. O mundo existe-lhes assim mesmo, sem significação. Para mim me existe também. Mas isso aturde-me. A velhice que se anuncia, anuncia-me a aceitação e a serenidade. Mas não me anuncia a liquidação do problema.

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O que Sempre Soube das Mulheres

Tratam-nos mal, mas querem que as tratemos bem. Apaixonam-se por serial-killers e depois queixam-se de que nem um postalinho. Escrevem que se desunham. Fingem acreditar nas nossas mentiras desde que tenhamos graça a pregá-las. Aceitam-nos e toleram-nos porque se acham superiores. São superiores. Não têm o gene da violência, embora seja melhor não as provocarmos. Perdoam facilmente, mas nunca esquecem. Bebem cicuta ao pequeno-almoço e destilam mel ao jantar. Têm uma capacidade de entrega que até dói. São óptimas mães até que os filhos fazem 10 anos, depois perdem o norte. Pelam-se por jogos eróticos, mas com o sexo já depende. Têm dias. Têm noites. Conseguem ser tão calculistas e maldosas como qualquer homem, só que com muito mais nível. Inventaram o telemóvel ao volante. São corajosas e quando se lhes mete uma coisa na cabeça levam tudo à frente. Fazem-se de parvas porque o seguro morreu de velho e estão muito escaldadas. Fazem-se de inocentes e (milagre!) por esse acto de vontade tornam-semesmo inocentes. Nunca perdem a capacidade de se deslumbrarem. Riem quando estão tristes, choram quando estão felizes. Não compreendem nada. Compreendem tudo. Sabem que o corpo é passageiro. Sabem que na viagem há que tratar bem o passageiro e que o amor é um bom fio condutor.

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