O corpo deve encontrar-se não só na atividade, mas também no repouso, libertar-se da pressão do imediato, do peso das solicitações, abrindo-se em certos instantes sem porquê, como o místico dizia que florescem as rosas. Encontraremos então, finalmente, tempo para contemplar, para deliciar-nos com a audição e o sabor, para sentir o perfume daquilo que passa, para tocar, ou quase tocar, aquilo que permanece.
Passagens sobre Instantes
460 resultadosTua Carta
A carta que escreveste é a oração que repito
todas as noites, sempre, antes de me deitar,
à hora em que abro a janela ao azul do infinito
e me ausento de tudo… e me esqueço a sonhar…Eu, descrente da terra e dos homens, descrente
mais ainda dos céus, com bem maior razão,
murmuro a tua carta religiosamente
pois fiz do teu amor a minha religião…Tua carta, nem sei… releio-a a todo instante,
ela acende em meus olhos tristes alegrias
e me faz esquecer que te encontras distante…Paradoxos talvez, mentiras!… Não te esqueço
se toda noite assim ( há não sei quantos dias ),
com teu nome em meus lábios… rezando adormeço!…
Mas chegará o instante em que me darás a mão, não mais por solidão, mas como eu agora: por amor.
Hino à Alegria
Tenho-a visto passar, cantando, à minha porta,
E às vezes, bruscamente, invadir o meu lar,
Sentar-se à minha mesa, e a sorrir, meia morta,
Deitar-se no meu leito e o meu sono embalar.Tumultuosa, nos seus caprichos desenvoltos,
Quase meiga, apesar do seu riso constante,
De olhos a arder, lábios em flor, cabelos soltos,
A um tempo é cortesã, deusa ingénua ou bacante…Quando ela passa, a luz dos seus olhos deslumbra;
Tem como o Sol de Inverno um brilho encantador;
Mas o brilho é fugaz, — cintila na penumbra,
Sem que dele irradie um facho criador.Quando menos se espera, irrompe de improviso;
Mas foge-nos também com uma presteza igual;
E dela apenas fica um pálido sorriso
Traduzindo o desdém duma ilusão banal.Onda mansa que só à superfície corre,
Toda a alegria é vã; só a Dor é fecunda!
A Dor é a Inspiração, louro que nunca morre,
Se em nós crava a raiz exaustiva e profunda!No entanto, eu te saúdo e louvo, hora dourada,
Em que a Alegria vem extinguir,
Só o Homem Sabe que é Mortal
A única certeza da vida é a morte. E é a certeza em que menos se acredita. Toda a história do mundo assentou sempre na ignorância de que se é mortal. Aqueles mesmo que o sabem não o vêem — a não ser em instantes de excepção. Que seria o mundo com essa evidência sempre presente? Só o homem sabe que é mortal. Mas raramente o homem sobe até si. O animal pesa nele, mesmo no que não é do animal. Assim a arte, a cultura, poucas vezes funcionam como o que é para o espírito, sendo para o que é da nossa grosseria.
O Egoísmo da Espécie
Os amantes querem pertencer um ao outro, e para toda a eternidade. Exprimem-se de maneira assaz curiosa quando se abraçam num instante de profunda intimidade para gozarem assim do máximo prazer e da mais alta felicidade que o amor lhes pode dar. Mas o prazer é egoísta. Não há dúvida que do prazer dos amantes não se pode dizer que seja egoísta, porque é recíproco; mas o prazer que ambos sentem na união é absolutamente egoísta, se for verdade que nesse abraço já se confundem num só e mesmo ser. Mas estão enganados; porque, no mesmo instante, a espécie triunfa sobre os indivíduos; domina-os, rebaixa-os, ao seu serviço.
Julgo isto muito mais ridículo do que a situação considerada cómica por Aristófanes. Porque o cómico desta bipartição reside em ser contraditória, o que Aristófanes não salientou suficientemente. Quem vê um homem, crê ver um ser inteiro e independente, um indivíduo, o que toda a gente admite até que observe que, apoderado pelo amor, ele não passa de uma metade que corre à procura da outra metade.
Nada há que seja cómico na metade de uma maçã; cómico seria tomar por maçã inteira a metade de uma maçã; não há contradição no primeiro caso,
Desde que Te Conheço
invade-me uma grande calma quando penso em ti. sinto-me bem, disposto para as mais difíceis tarefas, para os mais complicados e demorados trabalhos. já não é na turbulência das noites (vividas na pressa) que encontro a vontade de escrever. as noites cansaram-me, ia acabando comigo de vez na desordem e na ânsia de viver. claro que continuo a sair à noite e a amar esse espaço fantástico que é a cidade. esta cidade que amo, mas tu estás nela também. a cidade mudou desde o instante em que nela entraste. já não percorro a noite numa angústia que se esquece e anula na bebedeira, ao nascer do dia. desde que te conheço tenho levado uma vida bastante regrada. deixei de beber. deixei de andar por aí a ver se alguém me pega ou se eu pego em alguém. acabou. tenho-te e sinto uma felicidade estranha a dominar-me. trabalho calmamente, com vagar, e avanço sem ser aos tropeções. leio e releio o que escrevo. tudo se torna, de texto em texto, mais preciso, mais próximo do que penso. escrevo somente (como de resto sempre fiz) o que me dá gozo e ao mesmo tempo me perturba. por isso odeio tanto reler-me.
O Nosso Código Ético e Moral Desculpabiliza-nos Perante a Recusa de Aliviarmos o Sofrimento Alheio
Eu não desviava os olhos de minha mãe, sabia que, quando estivessem à mesa, não me seria permitido ficar até ao fim da refeição, e que, para não contrariar meu pai, a mamã não me deixaria beijá-la várias vezes diante dos outros, como se fosse no meu quarto.
(…) antes de tocarem a sineta para o jantar, meu avô teve a ferocidade inconsciente de dizer: «O pequeno parece cansado; deveria ir deitar-se. E depois, jantamos tarde hoje.» E meu pai,(…) disse: «Sim. Anda, vai deitar-te.» Eu quis beijar a mamã; nesse instante ouviu-se a sineta do jantar. «Não, não, deixa a tua mãe em paz, vocês já se despediram bastante, essas demonstrações são ridículas. Anda, sobe!» E eu tive de partir sem viático; tive de subir cada degrau «contra o coração», subindo contra o meu coração, que desejava voltar para junto de minha mãe porque ela não lhe havia dado, com um beijo, licença de me acompanhar.
(…) Já no meu quarto, tive de (…) cerrar os postigos, cavar o meu próprio túmulo enquanto virava as cobertas, vestir o sudário da minha camisa de dormir. Mas antes de sepultar-me no leito de ferro (…), veio-me um impulso de revolta e resolvi tentar um ardil de condenado.
Origens
Quando ainda não éramos,
víamos em toda a direção,
não obstante o Céu
por sobre nós conviesse
a cabeça terrena.
Mas, ai, o terrível instante
em que já não mais
o olho que vira se mantinha.
Tudo então se pensou.
E as nuvens, a cor
das águas azuis que se entregavam
em flores sexuais se entregavam
em flores sexuais se bipartiram
abrindo em volta de nós
os espaços da dor.E eis nosso dia.
Basta, Destino Severo
Basta, destino severo:
Em dias tão malogrados
Me trocaste sem piedade
Instantes afortunados.Quais voltas do sol os raios
Pelas trevas apagados,
Voltai, se podeis, instantes,
Instantes afortunados!Voto imprudente! Que digo?
Só posso esperar cuidados,
Uma vez que os interrompem
Instantes afortunados.
O Seu Nome
I
Ella não sabe a luz suave e pura
Que derrama n’uma alma acostumada
A não vêr nunca a luz da madrugada
Vir raiando senão com amargura!Não sabe a avidez com que a procura
Ver esta vista, de chorar cançada,
A ella… unica nuvem prateada,
Unica estrella d’esta noite escura!E mil annos que leve a Providencia
A dar-me este degredo por cumprido,
Por acabada já tão longa ausencia,Ainda n’esse instante appetecido
Será meu pensamento essa existencia…
E o seu nome, o meu ultimo gemidoII
Oh! o seu nome
Como eu o digo
E me consola!
Nem uma esmola
Dada ao mendigo
Morto de fome!N’um mar de dôres
A mãe que afaga
Fiel retrato
De amante ingrato,
Unica paga
Dos seus amores…Que rota e nua,
Tremulos passos,
Só mostra á gente
A innocente
Que traz nos braços
De rua em rua;Visto que o laço
Que a prende á vida
E só aquella
Candida estrella
Que achou cahida
No seu regaço;
As Sem Razões do Amor
Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.Eu te amo porque não amo
bastante ou de mais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.
Dois Excertos de Odes
(Fins de duas odes, naturalmente)
I
Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lentejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter conosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
(…)Mas não sou completa, não. Completa lembra realizada. Realizada é acabada. Acabada é o que não se renova a cada instante da vida e do mundo. Eu vivo me completando… mas falta um bocado.
O Nascimento
Aí vem a estrela! Aí vem, sobre a montanha,
Rompendo a sombra etérea do crepúsculo!
A paisagem tornou-se mais estranha,
Mais cheia de silêncio e de mistério!
Dormem ainda as árvores e os homens,
E dorme, em alto ramo, a cotovia…
E, se ergue já seu canto, é porque sonha
julga ver, sonhando, a luz do dia!E, pelos negros píncaros, a estrela
É divino sorriso alumiante.
Oh, que esplendor! Que formosura aquela!
É lírio de oiro aberto! É rosa a arder!Aí vem a estrela! Aí vem, sobre a montanha,
Tão virginal, tão nova, que parece
Sair das mãos de Deus, a vez primeira!E como, sobre os montes, resplandece!
Persegue-a o sol amado… No oriente,
Alastra um nimbo anímico de luz.
E a antiga dor das trevas, suavemente,
Ondula, em transparência e palidez.Aí vem a estrela, alumiando a serra!
E os olhos encantados dos pastores
Voltam-se para a estrela… E cá na terra
Há mágoas e penumbras, a fugir…Como ela voa, cintilando e rindo
Aos penhascos agrestes e desnudos!
Em todo instante da história in fieri, existe luta entre racional e irracional.
Foge por um instante do homem irado, mas foge sempre do hipócrita.
A Germano Meireles
Só males são reais, só dor existe:
Prazeres só os gera a fantasia;
Em nada[, um] imaginar, o bem consiste,
Anda o mal em cada hora e instante e dia.Se buscamos o que é, o que devia
Por natureza ser não nos assiste;
Se fiamos num bem, que a mente cria,
Que outro remédio há [aí] senão ser triste?Oh! Quem tanto pudera que passasse
A vida em sonhos só. E nada vira…
Mas, no que se não vê, labor perdido!Quem fora tão ditoso que olvidasse…
Mas nem seu mal com ele então dormira,
Que sempre o mal pior é ter nascido!
Visionários
Armam batalhas pelo mundo adiante
Os que vagam no mundos visionários,
Abrindo as áureas portas de sacrários
Do Mistério soturno e palpitante.O coração flameja a cada instante
Com brilho estranho, com fervores vários,
Sente a febre dos bons missionários
Da ardente catequese fecundante.Os visionários vão buscar frescura
De água celeste na cisterna pura
Da Esperança, por horas nebulosas…Buscam frescura, um outro novo encanto…
E livres, belos através do pranto,
Falam baixo com as almas misteriosas!
O instante só tem um lugar estreito entre a esperança e o desgosto, e esse é o lugar da vida.