Soneto De Roma
Felizes os que chegam de mãos dadas
como se fosse o instante da partida
e entre as fontes que jorram a água clássica
dão em silêncio adeus à claridade.No dourado crepúsculo da tarde
o que nos dividiu agora é soma
e a vida que te dei e que me deste
voa entre os pombos no fulgor de Roma.Todo fim é começo. A água da vida
eterna e musical sustenta o instante
que triunfa da morte nas ruínas.Como o verão sucede à neve fria
um sol final aquece o nosso amor,
devolução da aurora e luz do dia.
Passagens sobre Morte
1650 resultadosO cobarde teme a morte, e isso é tudo o que teme.
O sono é o prenúncio da morte.
Conta a Lenda que Dormia
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.Mas cada um cumpre o Destino —
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,
A cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
Disponibilidade Vazia
O cigano foi-se confessar; mas o padre, precavido, começou por interrogá-lo sobre os mandamentos de Deus. Ao que o cigano respondeu: «Olhe, senhor padre, eu ia aprender isso, mas depois ouvi um zum-zum de que tinha perdido o valor». (…) Todo o mundo – nações, indivíduos – está desmoralizado. Durante uma temporada, esta desmoralização diverte e até vagamente ilude. Os inferiores pensam que lhes tiraram um peso de cima. Os decálogos conservam do tempo em que eram inscritos sobre pedra ou bronze oseu carácter de pesadume. A etimologia de mandar significa carregar, pôr em alguém algo nas mãos. Quem manda é, sem remissão, quem tem o encargo. Os inferiores do mundo inteiro já estão fartos de que os encarreguem e sobrecarreguem, e aproveitam com ar festivo este tempo de pesados imperativos. Mas a festa dura pouco. Sem mandamentos que nos obriguem a viver de um certo modo, fica a nossa vida em pura disponibilidade. Esta é a horrível situação íntima em que se encontram já as melhores juventudes do mundo. De puro sentir-se livres, isentas de entraves, sentem-se vazias. Uma vida em disponibilidade é maior negação que a morte. Porque viver é ter que fazer algo determinado – é cumprir um encargo –,
Se Depois de Eu Morrer, Quiserem Escrever a Minha Biografia
Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.
Amor – Pois que é Palavra Essencial
Amor — pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro de vulva.Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós,
Discordo daquilo que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito de o dizeres.
Soneto Com Pássaro E Avião
Uma coisa é um pássaro que voa.
Outra um avião. Assim, quem o prefere
Não sabe às vezes como o espaço fere
Aquele, um vi morrer, voando à toaUm dia em Christ Church Meadows, numa antiga
Tarde, reminiscente de Wordsworth…
E tudo o que ficou daquela morte
Foi um baque de plumas, e a cantigaInterrompida a meio: espasmo? espanto?
Não sei. tomei-o leve em minha mão
Tão pequeno, tão cálido, tão lassoEm minha mão… Não tinha o peito de amianto.
Não voaria mais, como o avião
Nos longos túneis de cristal do espaço…
Elegia dos Amantes Lúcidos
Na girândola das árvores (e não há quem as detenha)
Deixa de fora a tarde o vermelho que a tinge.
Se ao menos tu ficasses na pausa que desenha
O contorno lunar da noite que te finge!Se ao menos eu gelasse uma corda do vento
para encontrar a forma exacta dum violino
Que fosse a sensibilidade deste pensamento
Com que a minha sombra vai pensando o meu destinoE não houvesse o sono dum telhado
Entre ter de haver eu e haver o tecto;
E a eternidade não estivesse ao lado
A colocar-nos nas costas as asas dum insectoMeu amor, meu amor, teu gesto nasce
Para partir de ti e ser ao longe
A cor duma cidade que nos pasce
Como a ausência de deus pastando um mongeAh, se uma súbita mão na hora a pique
Tangendo harpas geladas por segredos
Desprendesse uma aragem de repiques
Destes sinos parados pelo medo!Mas só porque vieste fez-se tarde,
Ou é a vida que nasce já tardia
Como uma estrela que se acende e arde
Porque não cabe na rapidez do dia?
Desfraldando ao Conjunto Fictício dos Céus estrelados
Desfraldando ao conjunto fictício dos céus estrelados
O esplendor do sentido nenhum da vida…Toquem num arraial a marcha fúnebre minha!
Quero cessar sem consequências…
Quero ir para a morte como para uma festa ao crepúsculo.
Não é da morte que temos medo, mas de pensar nela.
Completas
A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.
Tenho um amigo obeso que não suportaria viajar em terceira classe de Paris a Ruão, e que vai, naquele corpo de quarta classe, do nascimento à morte.
O Dinheiro Tem uma Qualidade Detergente
O dinheiro tem, entre outras incontáveis virtudes, uma qualidade detergente. E múltiplas qualidades nutricionais. Alegra-te os belos olhos, engorda-te as bochechas, permite-te esse modo de ocupares uma poltrona, de pernas bem esticadas e jornal nas mãos. Dá-te essas mãos impolutas que emergem dos punhos de algodão branco da camisa. Já não és tu quem vagueia à noite. Podes contratar quem capture, degole e esfole as presas que constituem os ingredientes indispensáveis do cozido ou da paella dos domingos. Assim se fez sempre nas casas das boas famílias.
Não é o senhor da casa que desfere o golpe fatal ao coelho, não é a senhora que crava a faca no pescoço da galinha e a depena, com o pote de barro entre as pernas, cheio de pão migado que o sangue há de empapar como deve ser, para o rico ensopado. Aos senhores os animais chegam sempre já cozinhados, servidos numa bandeja coberta por uma reluzente campânula de prata, ou na caçarola, guarnecidos, irreconhecíveis de tão desfigurados e, por isso mesmo, apetitosos na sua aparente inocência. Assim se fez sempre, assim se continua a fazer; nós próprios adquirimos em poucos anos esse privilegiado estatuto, a ilusão de sermos todos senhores: em remotos pavilhões industriais,
Perdi-me Dentro em Mim
Perdi-me dentro em mim, como em deserto,
Minha alma está metida em labirinto,
Contino contradigo o que consinto,
Cem mil discursos faço, em nada acerto.Vejo seguro o dano, o bem incerto;
Comigo porfiando me desminto,
O que mais atormenta, menos sinto,
O que me foge, quando está mais certo.E se as asas levanta o pensamento
Àquela parte, onde está escondida
A causa deste vario movimento,Transforma-se por não ser conhecida,
Porque quer a pesar do sofrimento
Pôr as armas da morte em mão da vida.
A morte, ninguém pode experimentá-la em si mesma (pois experimentar é da alçada da vida), só é possível percebê-la nos outros.
Morrer é pouco, é fácil; mas ter vida
Delirando de amor, sem fruto ardendo,
É padecer mil mortes, mil infernos.
Vivo era uma peste morrendo serei tua morte.
Quando chega a morte, não é da nossa ternura que nos arrependemos: é da nossa severidade.