Morro em cada noite para ressuscitar em cada manhã. (…) Cada noite em que se entra é aquela da Santíssima Agonia…
Passagens sobre Noite
1300 resultadosO Ópio
…Havia ruas inteiras dedicadas ao ópio… Os fumadores deitavam-se sobre baixas tarimbas… Eram os verdadeiros lugares religiosos da Índia… Não tinham nenhum luxo, nem tapeçarias, nem coxins de seda… Era tudo madeira por pintar, cachimbos de bambu e almofadas de louça chinesa… Pairava ali uma atmosfera de decência e austeridade que não existia nos templos… Os homens adormecidos não faziam movimento ou ruído… Fumei um cachimbo… Não era nada… Era um fumo caliginoso, morno e leitoso… Fumei quatro cachimbos e estive cinco dias doente, com náuseas que vinham da espinha dorsal, que me desciam do cérebro… E um ódio ao sol, à existência… O castigo do ópio… Mas aquilo não podia ser tudo… Tanto se dissera, tanto se escrevera, tanto se vasculhara nas maletas e nas malas, tentando apanhar nas alfândegas o veneno, o famoso veneno sagrado… Era preciso vencer a repugnância… Devia conhecer o ópio, provar o ópio, afim de dar o meu testemunho… Fumei muitos cachimbos, até que conheci… Não há sonhos, não há imagens, não há paroxismos… Há um enfraquecimento metódico, como se uma nota infinitamente suave se prolongasse na atmosfera… Um desvanecimento, um vácuo dentro de nós… Qualquer movimento do cotovelo, da nuca, qualquer som distante de carruagem,
É preferível aprender sabedoria uma hora do que orar toda uma noite
É preferível aprender sabedoria uma hora do que orar toda uma noite.
Diz o Meu Nome
Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem
[os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteçaPorque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contornoPorque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venciPorque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativosNo húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome
Noturno
Pesa o silêncio sobre a terra. Por extenso
Caminho, passo a passo, o cortejo funéreo
Se arrasta em direção ao negro cemitério…
À frente, um vulto agita a caçoula do incenso.E o cortejo caminha. Os cantos do saltério
Ouvem-se. O morto vai numa rede suspenso;
Uma mulher enxuga as lágrimas ao lenço;
Chora no ar o rumor de misticismo aéreo.Uma ave canta; o vento acorda. A ampla mortalha
Da noite se ilumina ao resplendor da lua…
Uma estrige soluça; a folhagem farfalha.E enquanto paira no ar esse rumor das calmas
Noites, acima dele em silêncio, flutua
O lausperene mudo e súplice das almas.
Lugares da Infância
Lugares da infância onde
sem palavras e sem memória
alguém, talvez eu, brincou
já lá não estão nem lá estou.Onde? Diante
de que mistério
em que, como num espelho hesitante,
o meu rosto, outro rosto, se reflecte?Venderam a casa, as flores
do jardim, se lhes toco, põem-se hirtas
e geladas, e sob os meus passos
desfazem-se imateriais as rosas e as recordações.O quarto eu não o via
porque era ele os meus olhos;
e eu não o sabia
e essa era a sabedoria.Agora sei estas coisas
de um modo que não me pertence,
como se as tivesse roubado.A casa já não cresce
à volta da sala,
puseram a mesa para quatro
e o coração só para três.Falta alguém, não sei quem,
foi cortar o cabelo e só voltou
oito dias depois,
já o jantar tinha arrefecido.E fico de novo sozinho,
na cama vazia, no quarto vazio.
Lá fora é de noite, ladram os cães;
e eu cubro a cabeça com os lençóis.
Escuta, Amor
Quando damos as mãos, somos um barco feito de oceano, a agitar-se sobre as ondas, mas ancorado ao oceano pelo próprio oceano. Pode estar toda a espécie de tempo, o céu pode estar limpo, verão e vozes de crianças, o céu pode segurar nuvens e chumbo, nevoeiro ou madrugada, pode ser de noite, mas, sempre que damos as mãos, transformamo-nos na mesma matéria do mundo. Se preferires uma imagem da terra, somos árvores velhas, os ramos a crescerem muito lentamente, a madeira viva, a seiva. Para as árvores, a terra faz todo o sentido. De certeza que as árvores acreditam que são feitas de terra.
Por isto e por mais do que isto, tu estás aí e eu, aqui, também estou aí. Existimos no mesmo sítio sem esforço. Aquilo que somos mistura-se. Os nossos corpos só podem ser vistos pelos nossos olhos. Os outros olham para os nossos corpos com a mesma falta de verdade com que os espelhos nos reflectem. Tu és aquilo que sei sobre a ternura. Tu és tudo aquilo que sei. Mesmo quando não estavas lá, mesmo quando eu não estava lá, aprendíamos o suficiente para o instante em que nos encontrámos.
Aquilo que existe dentro de mim e dentro de ti,
Encarnação
Carnais, sejam carnais tantos desejos,
Carnais, sejam carnais tantos anseios,
Palpitações e frêmitos e enleios,
Das harpas da emoção tantos arpejos…Sonhos, que vão, por trêmulos adejos,
A noite, ao luar, intumescer os seios
Lácteos, de finos e azulados veios
De virgindade, de pudor, de pejos…Sejam carnais todos os sonhos brumos
De estranhos, vagos, estrelados rumos
Onde as Visões do amor dormem geladas…Sonhos, palpitações, desejos e ânsias
Formem, com claridades e fragrâncias,
A encarnação das lívidas Amadas!
Lisboa
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores…
À força de diferente, isto é monótono.
Como à força de sentir, fico só a pensar.Se, de noite, deitado mas desperto,
Na lucidez inútil de não poder dormir,
Quero imaginar qualquer coisa
E surge sempre outra (porque há sono,
E, porque há sono, um bocado de sonho),
Quero alongar a vista com que imagino
Por grandes palmares fantásticos,
Mas não vejo mais,
Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras,
Que Lisboa com suas casas
De várias cores.Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa.
A força de monótono, é diferente.
E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo.Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo,
Lisboa com suas casas
De várias cores.
Os Amigos
no regresso encontrei aqueles
que haviam estendido o sedento corpo
sobre infindáveis areiastinham os gestos lentos das feras amansadas
e o mar iluminava-lhes as máscaras
esculpidas pelo dedo errante da noiteprendiam sóis nos cabelos entrançados
lentamente
moldavam o rosto lívido como um osso
mas estavam vivos quando lhes toquei
depois
a solidão transformou-os de novo em dor
e nenhum quis pernoitar na respiração
do lumeofereci-lhes mel e ensinei-os a escutar
a flor que murcha no estremecer da luz
levei-os comigo
até onde o perfume insensato de um poema
os transmudou em remota e resignada ausência
As palavras
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
Volta até Mim no Silêncio da Noite
Volta até mim no silêncio da noite
a tua voz que eu amo, e as tuas palavras
que eu não esqueço. Volta até mim
para que a tua ausência não embacie
o vidro da memória, nem o transforme
no espelho baço dos meus olhos. Volta
com os teus lábios cujo beijo sonhei num estuário
vestido com a mortalha da névoa; e traz
contigo a maré cheia da manhã com que
todos os náufragos sonharam.
Estou Habituado a que Recebam Mal os Meus Filmes
Estou habituado a que recebam mal os meus filmes e isso não me altera, nem altera nada do que penso sobre o cinema. Eu reprovo o prémio da competição. Os Óscares, por exemplo, até porque são dados a filmes de sucesso. Gosto mais dos prémios que são dados ao filme como coisa artística. Esse prémio de competição está bem no futebol, que um mete mais golos que o outro. Mas já dizia o Rembrandt quando apresentou o seu quadro “A ronda da noite” à sociedade – fizeram muita troça, ele veio desconsoladíssimo –: “O militar conhece a sua glória na vitória, o comerciante reconhece a sua glória nos lucros do comércio, mas o pintor, o artista, onde é que ele a vai reconhecer?”. Não há nada que determine exactamente. A arte é especial. Há uma só lei: o tempo. O tempo é o grande juiz, é o grande juiz de tudo.
LXIV
Que tarde nasce o Sol, que vagaroso!
Parece, que se cansa, de que a um triste
Haja de aparecer: quanto resiste
A seu raio este sítio tenebroso!Não pode ser, que o giro luminoso
Tanto tempo detenha: se persiste
Acaso o meu delírio! se me assiste
Ainda aquele humor tão venenoso!Aquela porta ali se está cerrando;
Dela sai um pastor: outro assobia,
E o gado para o monte vai chamando.Ora não há mais louca fantasia!
Mas quem anda, como eu, assim penando,
Não sabe, quando é noite, ou quando é dia.
Moral para Psicólogos
Não cultivar uma psicologia de bisbilhoteiro! Nunca observar só por observar! Isso provoca uma óptica falsa, uma perspectiva vesga, algo que resulta forçado e que exagera as coisas. O ter experiências, quando é um querer-ter-experiências, — não resulta bem. Na experiência não é lícito olhar para si mesmo, todo o olhar se converte então num «mau-olhado». Um psicólogo nato guarda-se, por instinto, de ver por ver; o mesmo se pode dizer do pintor nato. Este não trabalha jamais «segundo a natureza», encomenda ao seu instinto, à sua câmara escura o crivar e exprimir o «caso», a «natureza», o «vivido»… Até à sua consciência chega só o universal, a conclusão, o resultado: não conhece esse arbitrário abstrair do caso individual. — Que é que resulta quando se procede de outro modo? Quando se cultiva, por exemplo, uma psicologia de bisbilhoteiro, à maneira dos romanciers parisienses, grandes e pequenos? Essa gente anda, por assim dizê-lo, à espreita da realidade, essa gente leva para casa cada noite um punhado de curiosidades… Porém veja-se o que acaba por sair daí — um montão de borrões, um mosaico no melhor dos casos, e de qualquer forma algo que é o resultado da soma de várias coisas,
As Ondas
Entre as trêmulas mornas ardentias,
A noite no alto-mar anima as ondas.
Sobem das fundas úmidas Golcondas,
Pérolas vivas, as nereidas frias:Entrelaçam-se, correm fugidias,
Voltam, cruzando-se; e, em lascivas rondas,
Vestem as formas alvas e redondas
De algas roxas e glaucas pedrarias.Coxas de vago ônix, ventres polidos
De alabastro, quadris de argêntea espuma,
Seios de dúbia opala ardem na treva;E bocas verdes, cheias de gemidos,
Que o fósforo incendeia e o âmbar perfuma,
Soluçam beijos vãos que o vento leva…
Os Expectantes
Entre as definições da ilha planetária em que nos encontramos desterrados, uma das mais apropriadas seria: uma grande sala de espera. Uma terça parte da vida é anulada numa semimorte, outra gasta em fazer mal a nós mesmos e aos outros e a última esboroa-se e consome-se na expectativa. Esperamos sempre alguma coisa ou alguém – que vem ou não, que passa ou desilude, que satisfaz ou mata. Começa-se, em criança, a esperar a juventude com impaciência quase alucinada; depois, quando adolescente, espera-se a independência, a fortuna ou porventura apenas um emprego e uma esposa. Os filhos esperam a morte dos pais, os enfermos a cura, os soldados a passagem à disponibilidade, os professores as férias, os universitários a formatura, as raparigas um marido, os velhos o fim. Quem entrar numa prisão verificará que todos os reclusos contam os dias que os separam da liberdade; numa escola, numa fábrica ou num escritório, só encontrará criaturas que esperam, contando as horas, o momento da saída e da fuga. E em toda a parte – nos parques públicos, nos cafés, nas salas – há o homem que espera uma mulher ou a mulher que espera um homem. Exames, concursos, noivados, lotarias, seminários,
Noite De Chuva
Chuva…Que gotas grossas!…Vem ouvir:
Uma …duas…mais outra que desceu…
É Viviana, é Melusina, a rir,
São rosas brancas dum rosal do Céu…Os lilases deixaram-se dormir…
Nem um frémito…a terra emudeceu…
Amor! Vem ver estrelas a cair:
Uma…duas…mais outra que desceu…Fala baixo, juntinho ao meu ouvido,
Que essa fala de amor seja um gemido,
Um murmúrio, um soluço, um ai desfeito…Ah! deixa à noite o seu encanto triste!
E a mim…o teu amor que mal existe,
Chuva a cair na noite do meu peito!
Não há dia sem noite. Eles complementam-se.
Contra a Sedução
1
Não vos deixeis seduzir!
Regresso não pode haver.
O dia já fecha as portas,
Já sentis o frio da noite:
Não haverá amanhã.2
Não vos deixeis enganar,
E que a vida pouco vale!
Sorvei-a a goles profundos!
Pois não vos pode bastar
Que tenhais de a abandonar!3
Não vos contenteis de esp’ranças,
Que o tempo não é demais!
Aos mortos a podridão!
O maior que há é a vida:
E ela já não está pronta.4
Não vos deixeis seduzir
Ao moirejo e à miséria!
Que pode fazer-vos o medo?
Morreis como os bichos todos,
E depois não há mais nada.