Só um Mundo de Amor pode Durar a Vida Inteira
Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.
O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixonade verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em “diálogo”. O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios.Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões.
Passagens sobre Próprio
3083 resultadosO que se considera cegueira do destino é, na realidade, miopia própria.
O Valor do Tempo
Fico sempre surpreendido quando vejo algumas pessoas a exigir o tempo dos outros e a conseguir uma resposta tão servil. Ambos os lados têm em vista a razão pela qual o tempo é solicitado e nenhum encara o tempo em si – como se nada estivesse a ser pedido e nada a ser dado. Estão a esbanjar o mais precioso bem da vida, sendo enganados por ser uma coisa intangível, não aberta à inspecção, e, portanto, considerada muito barata – de facto, quase sem qualquer valor. As pessoas ficam encantadas por aceitar pensões e favores, pelos quais empenham o seu labor, apoio ou serviços. Mas ninguém percebe o valor do tempo; os homens usam-no descontraidamente como se nada custasse.
Mas se a morte ameaça estas mesmas pessoas, vê-las-ás a recorrer aos seus médicos; se estiverem com medo do castigo capital, vê-las-ás preparadas para gastarem tudo o que têm para se manterem vivas. Tão inconsistentes são nos seus sentimentos! Mas se cada um de nós pudesse ter um vislumbre dos seus anos futuros, como podemos fazer em relação aos anos passados, como ficariam alarmados os que só podem ver com alguns anos de antecedência e como seriam cuidadosos a utilizá-los!
Os Professores
O mundo não nasceu connosco. Essa ligeira ilusão é mais um sinal da imperfeição que nos cobre os sentidos. Chegámos num dia que não recordamos, mas que celebramos anualmente; depois, pouco a pouco, a neblina foi-se desfazendo nos objectos até que, por fim, conseguimos reconhecer-nos ao espelho. Nessa idade, não sabíamos o suficiente para percebermos que não sabíamos nada. Foi então que chegaram os professores. Traziam todo o conhecimento do mundo que nos antecedeu. Lançaram-se na tarefa de nos actualizar com o presente da nossa espécie e da nossa civilização. Essa tarefa, sabemo-lo hoje, é infinita.
O material que é trabalhado pelos professores não pode ser quantificado. Não há números ou casas decimais com suficiente precisão para medi-lo. A falta de quantificação não é culpa dos assuntos inquantificáveis, é culpa do nosso desejo de quantificar tudo. Os professores não vendem o material que trabalham, oferecem-no. Nós, com o tempo, com os anos, com a distância entre nós e nós, somos levados a acreditar que aquilo que os professores nos deram nos pertenceu desde sempre. Mais do que acharmos que esse material é nosso, achamos que nós próprios somos esse material. Por ironia ou capricho, é nesse momento que o trabalho dos professores se efectiva.
A filosofia de uma pessoa não é melhor expressa em palavras; ela é expressa pelas escolhas que a pessoa faz. A longo prazo, moldamos nossas vidas e moldamos a nós mesmos. O processo nunca termina até que morramos. E, as escolhas que fizemos são, no final das contas, nossa própria responsabilidade.
Sem este objetivo firme e permanente [de conhecer o interior inóspito], a Amazônia, mais cedo ou mais tarde, se destacará do Brasil, naturalmente e irresistivelmente, como se despega um mundo de uma nebulosa — pela expansão centrífuga do seu próprio movimento.
Claro, viver é outra forma de nos matarmos a nós próprios: a desvantagem é que é um processo horrivelmente longo.
Não Acredito na Palavra Glória
A glória externa está mais ligada à morte que à vida. Quando a glória chega, e se abate sobre qualquer um, o objecto que a provocou já está escrito, no seu caminho, já feito, as obras já foram contabilizadas nas colunas da morte. Somos substituídos por aquilo que já fizemos, e querer ser célebre a qualquer preço é, igualmente, apossar-se da própria morte, conhecer já o que ela faz.
O mundo recompensa com mais frequência as aparências do mérito do que o próprio mérito.
Considerações sobre a Vingança
A vingança é uma espécie de justiça bárbara, de tal maneira que quanto mais a natureza humana se inclinar para ela, tanto mais a deve a lei exterminá-la. Porque a primeira injúria não faz mais que ofender a lei, ao passo que a vingança da injúria põe a lei fora do seu ofício. De certo, ao exercer a vingança, o homem iguala-se ao inimigo; mas, passando sobre ela, é-lhe superior; porque é próprio do príncipe perdoar. E tenho a certeza que Salomão disse: «É glorioso para um homem desdenhar uma ofensa». O que passou, passou, e é irrevogável; os homens prudentes já têm bastante que fazer com as coisas presentes e vindouras; não devem, portanto, preocupar-se com bagatelas como o trabalhar em coisas pretéritas.
Não há homem que faça o mal pelo mal, mas apenas na perseguição do lucro, do prazer ou da honra, etc. Porque hei-de ficar ressentido com alguém, apenas pela razão de que ele mais ama a si próprio do que a mim? E se alguém me fez mal, apenas por pura maldade, então, esse é unicamente como a roseira e o cardo que picam e arranham apenas porque não podem de outra forma proceder. A espécie mais tolerável de vingança ainda é aquela que vai contra ofensas que na lei não encontram remédio;
Amor ou Posse?
O nosso «amor pelo próximo» não será o desejo imperioso de uma nova propriedade? E não sucede o mesmo com o nosso amor pela ciênica, pela verdade? E, mais geralmente, com todos os desejos de novidade? Cansamo-nos pouco a pouco do antigo, do que possuímos com certeza, temos ainda necessidade de estender as mãos; mesmo a mais bela paisagem, quando vivemos diante dela mais de três meses, deixa de nos poder agradar, qualquer margem distante nos atrai mais: geralmente uma posse reduz-se com o uso. O prazer que tiramos a nós próprios procura manter-se, transformando sempre qualquer nova coisa em nós próprios; é precisamente a isso que se chama possuir.
Cansar-se de uma posse é cansar-se de si próprio. (Pode-se também sofrer com o excesso; à necessidade de deitar fora, pode assim atribuir-se o nome lisonjeiro de «amor). Quando vemos sofrer uma pessoa aproveitamos de bom grado essa ocasião que se oferece de nos apoderarmos dela; é o que faz o homem caridoso, o indivíduo complacente; chama também «amor» a este desejo de uma nova posse que despertou na sua alma e tem prazer nisso como diante do apelo de uma nova conquista. Mas é o amor de sexo para sexo que se revela mais nitidamente como um desejo de posse: aquele que ama quer ser possuidor exclusivo da pessoa que deseja,
A Memória é Como o Ventre da Alma
Encerro também na memória os afectos da minha alma, não da maneira como os sente a própria alma, quando os experimenta, mas de outra muito diferente, segundo o exige a força da memória.
Não é isto para admirar, tratando-se do corpo: porque o espírito é uma coisa e o corpo é outra. Por isso, se recordo, cheio de gozo, as dores passadas do corpo, não é de admirar. Aqui, porém, o espírito é a memória. Efectivamente, quando confiamos a alguém qualquer negócio, para que se lhe grave na memóra, dizemos-lhe: «vê lá, grava-o bem no teu espírito». E quando nos esquecemos, exclamamos: «não o conservei no espírito», ou então: «escapou-se-me do espírito»; portanto, chamamos espírito à própria memória.
Sendo assim, porque será que, ao evocar com alegria as minhas tristezas passadas, a alma contém a alegria e a memória a tristeza, de modo que a minha alma se regozija com a alegria que em si tem e a memória se não entristece com a tristeza que em si possui? Será porque não faz parte da alma? Quem se atreverá a afirmá-lo?
Não há dúvida que a memória é como o ventre da alma. A alegria, porém, e a tristeza são o seu alimento,
Um Ser
Um ser na placidez da Luz habita,
Entre os mistérios inefáveis mora.
Sente florir nas lágrimas que chora
A alma serena, celestial, bendita.Um ser pertence à música infinita
Das Esferas, pertence à luz sonora
Das estrelas do Azul e hora por hora
Na Natureza virginal palpita.Um ser desdenha das fatais poeiras,
Dos miseráveis ouropéis mundanos
E de todas as frívolas cegueiras…Ele passa, atravessa entre os humanos,
Como a vida das vidas forasteiras
Fecundada nos próprios desenganos.
A Felicidade Está no Realizar, e Não no Usufruir
Atolavam-se na ilusão da felicidade que extraíam dos bens possuídos. Ora a felicidade o que é senão o calor dos actos e o contentamento da criação? Aqueles que deixam de trocar seja o que for deles próprios e recebem de outrem o alimento, nem que fosse o mais bem escolhido e o mais delicado, aqueles que ouvem subtilmente os poemas alheios sem escreverem os poemas próprios, aproveitam-se do oásis sem o vivificarem, consomem cânticos que lhes fornecem, e fazem lembrar os que se apegam às mangedouras no estábulo e, reduzidos ao papel de gado, mostram-se prontos para a escravatura.
Antes de tentar arrumar o mundo tente arrumar seu próprio quarto.
Experiência é o nome que todos dão aos seus próprios erros.
Eu acho que dentro de nós há um espesso sistema de corredores e de portas fechadas. Nós próprios não abrimos todas as portas, porque suspeitamos que o que há do outro lado não será agradável de ver (…) Vivemos numa espécie de alarme em relação a nós mesmos, que talvez seja não querermos saber quem somos na realidade.
O homem é livre; mas ele encontra a lei na sua própria liberdade.
Benção
Quando, por uma lei da vontade suprema,
O Poeta vem a luz d’este mundo insofrido
A desolada mãe, numa crise de blasfêmia,
Pragueja contra Deus, que a escuta comovido:— “Antes eu procriasse uma serpe infernal!
Do que ter dado vida a um disforme aleijão!
Maldita seja a noite em que o prazer carnal
Fecundou no meu ventre a minha expiação!Já que fui a mulher destinada, Senhor,
A tornar infeliz quem a si me ligou,
E não posso atirar ao fogo vingador
O fatal embrião que meu sangue gerou.Vou fazer recair o meu ódio implacável
No monstro que nasceu das tuas maldições
E saberei torcer o arbusto miserável
De modo que não vingue um só dos seus botões!”E sobre Deus cuspindo a sua mágoa ingente
Ignorando a razão dos desígnios do Eterno,
A tresloucada mãe condena, inconsciente,
A sua pobre alma às fogueiras do inferno.Bafeja a luz do sol o fruto malfadado,
Vela pelo inocente um anjo peregrino;
A água que ele bebe é um néctar perfumado,
O pão é um manjar saboroso,
Quem Somos
Quem somos, senão o que imperfeitamente
sabemos de um passado de vultos
mal recortados na neblina opaca,
imprecisos rostos mentidos nas páginas
antigas de tomos cujas palavrasnão são, de certo, as proferidas,
ou reproduzem sequer actos e gestos
cometidos. Ergue-se a lâmina:
metal e terra conhecem o sangue
em fronteiras e destinos poucoa pouco corrigidos na memória
indecifrável das areias.
A lápide, que nomeia, não descreve
e a história que o historia,
eco vário e distorcido, é jádiversa e a si própria se entretece
na mortalha de conjecturados perfis.
Amanhã seremos outros. Por ora
nada somos senão o imperfeito
limbo da legenda que seremos.