Textos sobre Característicos

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Textos de característicos escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

O Descontentamento Consigo Próprio

O caso é o mesmo em todos os vícios: quer seja o daqueles que são atormentados pela indolência e pelo tédio, sujeitos a contantes mudanças de humor, quer o daqueles a quem agrada sempre mais aquilo que deixaram para trás, ou dos que desistem e caem na indolência. Acrescenta ainda aqueles que em nada diferem de alguém com um sono difícil, que se vira e revira à procura da posição certa, até que adormece de tão cansado que fica: mudando constantemente de forma de vida, permanecem naquela «novidade» até descobrirem não o ódio à mudança, mas a preguiça da velhice em relação à novidade. Acrescenta ainda os que nunca mudam, não por constância, mas por inércia, e vivem não como desejam, mas como sempre viveram. As características dos vícios são, pois, inumeráveis, mas o seu efeito apenas um: o descontentamento consigo próprio.
Este descontentamento tem a sua origem num desequilíbrio da alma e nas aspirações tímidas ou menos felizes, quando não ousamos tanto quanto desejávamos ou não conseguimos aquilo que pretendíamos, e ficamos apenas à espera. É a inevitável condição dos indecisos, estarem sempre instáveis, sempre inquietos. Tentam por todas as vias atingir aquilo que desejam, entregam-se e sujeitam-se a práticas desonestas e árduas,

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O Desgaste da Inveja

De todas as características que são vulgares na natureza humana a inveja é a mais desgraçada; o invejoso não só deseja provocar o infortúnio e o provoca sempre que o pode fazer impunemente, como também se torna infeliz por causa da sua inveja. Em vez de sentir prazer com o que possui, sofre com o que os outros têm. Se puder, priva os outros das suas vantagens, o que para ele é tão desejável como assegurar as mesmas vantagens para si próprio. Se uma tal paixão toma proporções desmedidas, torna-se fatal a todo o mérito e mesmo ao exercício do talento mais excepcional.
Por que é que o médico deve ir ver os seus doentes de automóvel quando o operário vai para o seu trabalho a pé? Por que é que o investigador científico pode passar os dias num quarto aquecido, quando os outros têm de expor-se à inclemência dos elementos? Por que é que um homem que possui algum talento raro de grande importância para o mundo deve ser dispensado do penoso trabalho doméstico? Para tais perguntas a inveja não encontra resposta. Afortunadamente, porém, há na natureza humana um sentimento compensador, chamado admiração. Todos os que desejm aumentar a felicidade humana devem procurar aumentar a admiração e diminuir a inveja.

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Os Práticos e os Contemplativos

Têm sentido de humor os que têm sentido prático. Quem descuida a vida, embevecido numa ingénua contemplação (e todas as contemplações são ingénuas), não vê as coisas com desprendimento, dotadas de livre, complexo e contrastante movimento, que forma a essência da sua comicidade. O típico da contemplação é, pelo contrário, determo-nos no sentimento difuso e vivaz que surge em nós ao contacto com as coisas. É aqui que reside a desculpa dos contemplativos: vivem em contacto com as coisas e, necessariamente, não lhes sentem as singularidades e características; sentem-nas, pura e simplesmente.
Os práticos – paradoxo – vivem distantes das coisas, não as sentem, mas compreendem o mecanismo que as faz funcionar. E só ri de uma coisa quem está distante dela. Aqui está, implícita, uma tragédia: habituamo-nos a uma coisa afastando-nos dela, quer dizer, perdendo o interesse. Daqui, a corrida afanosa.
Naturalmente, de um modo geral, ninguém é contemplativo ou prático de forma total, mas, como nem tudo pode ser vivido, resta sempre, mesmo aos mais experimentados, o sentimento de qualquer coisa.

A Tua Importância na Tua Vida

É fundamental reconheceres a tua importância na tua vida. Por algum motivo nasceste, aprendeste a respirar e tiveste direito a um nome, nome esse que, em conjunto com as tuas características, te identificará eternamente como um ser individual, único e livre. Haverá algo mais especial e precioso que isso? Estou em crer que não; ainda assim, encontro muitas pessoas a quererem ser outras e outras ainda a querer acabar com elas próprias na esperança de, imediatamente, poderem vir a ser outro alguém. É o teu caso? Se for deve ser uma chatice, mas, também, se não te dás qualquer importância, que importância te darei eu? Já calculaste o perigo em que incorres por pensar desta maneira? Em menos de nada, estarás sozinho ou rodeado de gente como tu, ausente e que meteu férias no inferno para sempre. Bom, mas alegrem-se os corações porque acredito que não lerias estas linhas iniciais se nada estivesse a borbulhar aí dentro, se não existisse, pelo menos, uma fugaz esperança e uma enorme vontade de mudar. Está atento, o passado só influencia o presente se mantiveres o mesmo comportamento, por isso liberta-te dessa dor por uns instantes e lê em voz alta a próxima frase tantas vezes quantas achares necessário.

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Uma Alma Grande e Corajosa

Um espírito corajoso e grande é reconhecido principalmente devido a duas características: uma consiste no desprezo pelas coisas exteriores, na convicção de que o homem, independentemente do que é belo e conveniente, não deve admirar, decidir ou escolher coisa alguma nem deixar-se abater por homem algum, por qualquer questão espiritual ou simplesmente pela má fortuna. A outra consiste no facto – especialmente quando o espírito é disciplinado na maneira acima referida – de se dever realizar feitos, não só grandes e seguramente, bastante úteis, mas ainda em grande número, árduos e cheios de trabalhos e perigos, tanto para a vida como para as muitas coisas que à vida interessam.
Todo o esplendor, toda a dimensão (devo acrescentar ainda a utilidade), pertencem à segunda destas duas características; porém, a causa e o princípio eficiente, que os tornam homens grandes, à primeira.
Naquela está, com efeito, aquilo que torna os espíritos excelentes e desdenhosos das coisas humanas. Na verdade, pode isto ser reconhecido por duas condições: em primeiro lugar, se estimares alguma coisa como sendo boa unicamente porque é honesta, em segundo lugar, se te encontrares livre de toda a perturbação de espírito. Consequentemente, o facto de se ter em pouca conta aquelas coisas humanas e de se desprezar,

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A Origem do Medo

A condição psicológica do medo está divorciada de qualquer perigo concreto e real. Surge sob diversas formas: desconforto, preocupação, ansiedade, nervosismo, tensão, temor, fobia, etc. Este tipo de medo psicológico é sempre algo que poderá acontecer e não algo que esteja a acontecer no momento. O leitor está aqui e agora, enquanto a sua mente se encontra no futuro. Este facto gera um hiato de ansiedade. Além disso, se o leitor se identificar com a sua mente e tiver perdido o contacto com o poder e a simplicidade do Agora, esse hiato de ansiedade acompanhá-lo-á constantemente.

A pessoa pode sempre lidar com o momento presente, mas não o consegue fazer com algo que é apenas uma projeção mental – não é possível lidar com o futuro.
E enquanto o leitor se identifica com a sua mente, o ego comanda a sua vida. Devido à natureza ilusória que lhe é característica e apesar dos mecanismos de defesa elaborados, o ego torna-se muito vulnerável e inseguro, vendo-se a si próprio constantemente sob ameaça. Este facto, a propósito, é o que acontece, mesmo que por fora o ego pareça muito confiante. Agora lembre-se de que uma emoção é a reação do corpo à mente.

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Entendimento Lúcido do Futuro

Uma diferença característica e muito frequente na vida diária entre as cabeças comuns e as sensatas é que as primeiras, na sua ponderação e avaliação sobre possíveis perigos, querem saber e levam em conta apenas o que de semelhante já terá acontecido. As outras, pelo contrário, ponderam o que possivelmente poderia acontecer. É como se tivessem em mente o provérbio espanhol: «O que não acontece num ano, acontece num instante». Decerto, a diferença em questão é natural, pois, para abarcar com a vista aquilo que pode acontecer, é preciso entendimento; já para ver aquilo que aconteceu, são suficientes os sentidos.
A nossa máxima, então, é: sacrifica-te aos demónios malignos. Por outras palavras, não se deve temer uma certa perda de esforço, tempo, desconforto, transtorno, dinheiro ou privação, para fechar as portas à possibilidade de uma desgraça. E quanto maior a desgraça, tanto menor, mais remota e improvável a sua possibilidade. O exemplo mais claro desta regra é o prémio do seguro. Ele é um sacrifício público oferecido por todos no altar dos demónios malignos.

O Universal Opõe-se a Qualquer Época

É admissível que o génio não seja apreciado na sua época porque a ela se opõe; mas pode-se perguntar por que razão é apreciado nas épocas vindouras. O universal opõe-se a qualquer época, pois as características desta são necessariamente particulares; porque será então que o génio, que se ocupa de valores universais e permanentes, é mais favoravelmente recebido por uma época do que por outra?
A razão é simples. Cada época resulta da crítica da época precedente e dos princípios subjacentes à vida civilizacional da mesma. Enquanto que um só princípio está subjacente, ou parece estar subjacente, a cada época, as críticas desse princípio único são variadas, tendo apenas em comum o facto de se ocuparem da mesma coisa. Ao opor-se à sua época, o homem de génio critica-a implicitamente, integrando-se implicitamente numa ou noutra das correntes críticas da época seguinte.
Ele próprio pode produzir uma ou outra dessas correntes, como Wordsworth; pode não produzir nenhuma, como Blake, e contudo viver de acordo com uma atitude paralela à sua, surgida naquela época sem ser por um discipulado propriamente dito.
Quanto mais universal é o génio, mais facilmente será aceite pela época imediatamente a seguir, pois mais profunda será a crítica implícita da sua própria época.

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Casamento e Fusão Moral

Na vida conjugal, o casal só deve formar de certo modo uma única pessoa moral, animada e governada pelo gosto da mulher e pela inteligência do homem. Se as mulheres mostram mais liberdade e fineza no sentimento, em compensação os homens parecem mais ricos no discernimento que a experiência dá. Acrescentemos que quanto mais um carácter é sublime, mais ele tende a fazer todos os seus esforços para o contentamento do ser amado, e é característico de uma bela alma responder a isso com complacência. Sob essa relação, toda a pretensão à superioridade seria, portanto, inepta e reveladora de um gosto grosseiro ou de uma união mal sucedida. Tudo se perde quando se disputa o comando. Pois uma vez que a união repousa na inclinação, ela é meio rompida assim que o dever começa a se fazer entender.
Um tom duro e impiedoso é um dos mais detestáveis nas mulheres, um dos mais vis e desprezíveis nos homens. O sábio comando da natureza quer, além disso, que toda essa delicadeza, toda essa ternura de sentimento só tenha plena força no começo, em seguida a vida em comum e os afazeres domésticos vêm enfraquecê-la, pouco a pouco, e transformá-la em amizade familiar.

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Os Caminhos Insondáveis do Progresso da Humanidade

O progresso não é necessário por uma necessidade metafísica: pode-se dizer apenas que muito provavelmente a experiência acabará por eliminar as falsas soluções e por se livrar dos impasses. Mas a que preço, por quantos meandros? Não se pode nem mesmo excluir, em princípio, que a humanidade, como uma frase que não se consegue concluir, fracasse no meio do caminho.
Decerto o conjunto dos seres conhecidos pelo nome de homens e definidos pelas características físicas que se conhecem tem também em comum uma luz natural, uma abertura ao ser que torna as aquisições da cultura comunicáveis a todos eles e somente a eles. Mas esse lampejo que encontramos em todo o olhar dito humano é visto tanto nas formas mais cruéis do sadismo quanto na pintura italiana. É justamente ele que faz com que tudo seja possível da parte do homem, e até o fim.

O Provincianismo Português (II)

Se fosse preciso usar de uma só palavra para com ela definir o estado presente da mentalidade portuguesa, a palavra seria “provincianismo”. Como todas as definições simples esta, que é muito simples, precisa, depois de feita, de uma explicação complexa. Darei essa explicação em dois tempos: direi, primeiro, a que se aplica, isto é, o que deveras se entende por mentalidade de qualquer país, e portanto de Portugal; direi, depois, em que modo se aplica a essa mentalidade.
Por mentalidade de qualquer país entende-se, sem dúvida, a mentalidade das três camadas, organicamente distintas, que constituem a sua vida mental — a camada baixa, a que é uso chamar povo; a camada média, a que não é uso chamar nada, excepto, neste caso por engano, burguesia; e a camada alta, que vulgarmente se designa por escol, ou, traduzindo para estrangeiro, para melhor compreensão, por elite.
O que caracteriza a primeira camada mental é, aqui e em toda a parte, a incapacidade de reflectir. O povo, saiba ou não saiba ler, é incapaz de criticar o que lê ou lhe dizem. As suas ideias não são actos críticos, mas actos de fé ou de descrença, o que não implica, aliás,

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Façam a Barba, Meus Senhores!

A barba, por ser quase uma máscara, deveria ser proibida pela polícia. Além disso, enquanto distintivo do sexo no meio do rosto, ela é obscena: por isso é apreciada pelas mulheres.
Dizem que a barba é natural ao homem: não há dúvida, e por isso ela é perfeitamente adequada ao homem no estado natural; do mesmo modo, porém, no estado civilizado é natural ao homem fazer a barba, uma vez que assim ele demonstra que a brutal violência animalesca – cujo emblema, percebido imediatamente por todos, é aquela excrescência de pêlos, característica do sexo masculino – teve de ceder à lei, à ordem e à civilização.
A barba aumenta a parte animalesca do rosto e ressalta-a. Por essa razão, confere-lhe um aspecto brutal tão evidente. Basta observar um homem barbudo de perfil enquanto ele come! Este pretende que a barba seja um ornamento. No entanto, há duzentos anos era comum ver esse ornamento apenas em judeus, cossacos, capuchinhos, prisioneiros e ladrões. A ferocidade e a atrocidade que a barba confere à fisionomia dependem do facto de que uma massa respectivamente sem vida ocupa metade do rosto, e justamente aquela que expressa a moral. Além disso, todo o tipo de pêlo é animalesco.

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O Ideal Quimérico

Tenho grandes suspeitas e muitas reservas maldosas em relação ao que se chama ideal. O meu pessimismo está em ter reconhecido que os grandes sentimentos são uma fonte de infelicidades; ou seja, de estiolamento, de desvalorização do Homem. Sempre que esperamos dum ideal algum progresso, entramos na ilusão: a vitória do ideal tem sofrido, até hoje, um movimento retrógrado.
Cristianismo, revolução, abolição da escravatura, igualdade de direitos, filantropia, amor ao inimigo, justiça, verdade… Tudo grandes palavras, que só têm valor nas batalhas ou nas bandeiras: não como realidades, mas como fórmulas aparatosas, que exprimem o contrário do que dizem.
Afinal, o nosso idealismo quimérico faz também parte da existência, e também deve manifestar-se no carácter da existência; não sendo a fonte da existência, nem por isso deixa de estar presente nela. Tanto os nossos pensamentos mais elevados como os mais temerários são fragmentos característicos da realidade. Porque, o nosso pensamento é feito de características da realidade; o nosso pensamento é feito da mesma substância de todas as coisas.

A Eficiência no Trabalho, Hoje em Dia

A improbidade e ineficiência profissionais são talvez as características distintivas da nossa época. O artífice de outrora tinha que trabalhar; o operário actual tem de fazer uma máquina trabalhar. É um simples capataz de escravos de metal; torna-se tão embrutecido como um capataz de escravos, mas menos interessante, porque nem sequer se lhe pode chamar tirano.
Tal como o capataz de escravos se torna escravo da sua função e adquire, desse modo uma mentalidade de escravo, ainda que de um escravo mais afortunado, também o capataz de máquinas se transforma numa mera alavanca biótica, numa espécie de mecanismo de arranque associado a um motor.

Participar na produção em massa pode permitir que um homem continue a ser um ser humano decente; na verdade, é algo tão vil que não o afecta necessariamente. Mas participar na produção em massa não permite que ele continue a ser um operário humano decente.
A eficiência é menos complexa, hoje em dia. A ineficiência pode, por isso, passar facilmente por eficiência e ser, na verdade, eficiente.

Felicidade e Alegria

Não creio que se possa definir o homem como um animal cuja característica ou cujo último fim seja o de viver feliz, embora considere que nele seja essencial o viver alegre. O que é próprio do homem na sua forma mais alta é superar o conceito de felicidade, tornar-se como que indiferente a ser ou não ser feliz e ver até o que pode vir do obstáculo exactamente como melhor meio para que possa desferir voo. Creio que a mais perfeita das combinações seria a do homem que, visto por todos, inclusive por si próprio, como infeliz, conseguisse fazer de sua infelicidade um motivo daquela alegria que se não quebra, daquela alegria serena que o leva a interessar-se por tudo quanto existe, a amar todos os homens apesar do que possa combater, e é mais difícil amar no combate que na paz, e sobretudo conservar perante o que vem de Deus a atitude de obediência ou melhor, de disponibilidade, de quem finalmente entendeu as estruturas da vida.
Os felizes passam na vida como viajantes de trem que levassem toda a viagem dormindo; só gozam o trajecto os que se mantêm bem despertos para entender as duas coisas fundamentais do mundo: a implacabilidade,

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Maturidade Emocional

Dez funções da inteligência multifocal resultantes do treino da emoção e da arte de pensar:

1. A arte de amar a vida e tudo o que a promove.

2. A arte de contemplar o belo.

3. A arte da serenidade: pensar antes de reagir.

4. A arte de expor e não impor as ideias.

5. A arte da solidariedade.

6. A arte de gerir os pensamentos dentro e fora dos focos de tensão.

7. Colocar-se no lugar dos outros.

8. Ter espírito empreendedor.

9. Trabalhar perdas e frustrações.

10. Trabalhar em equipa.

Se você tem cinco dessas características bem trabalhadas na sua personalidade, a sua maturidade emocional está bem acima da média. Se, das seis artes da inteligência multifocal, você viver intensamente pelo menos três delas, saiba que é um poeta da vida. Infelizmente, a grande maioria das pessoas não tem constituída na colcha de retalhos da personalidade nem sequer duas dessas dez características.

Tempo e Idade

A jovialidade e a coragem da vida, características da juventude, devem-se em parte ao facto de estarmos a subir a colina, sem ver a morte situada no sopé do outro lado. Porém, ao transpormos o cume, avistamos de facto a morte, até então conhecida só de ouvir dizer. Ora, como ao mesmo tempo a força vital começa a diminuir, a coragem também decresce, de modo que, nesse momento, uma seriedade sombria reprime a audácia juvenil e estampa-se no nosso rosto. Enquanto somos jovens, digam o que quiserem, consideramos a vida como sem fim e usamos o nosso tempo com prodigalidade. Contudo, quanto mais velhos ficamos, mais o economizamos. Na velhice, cada dia vivido desperta uma sensação semelhante à do delinquente ao dirigir-se ao julgamento.
Do ponto de vista da juventude, a vida é um futuro infinitamente longo; do da velhice, é um passado bastante breve. Desse modo, o começo apresenta-se-nos como as coisas ao serem vistas pela lente objectiva do binóculo de opera; o fim, entretanto, como se vistas pela ocular. É preciso ter envelhecido, portanto ter vivido muito, para reconhecer como a vida é breve. O próprio tempo, na juventude, dá passos bem mais lentos. Por conseguinte, o primeiro quartel da vida é não só o mais feliz,

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Toda a Realidade é Redutora

Viajar não é realizar o imaginário que nos excita antes da viagem mas sim exterminá-lo. O deslumbramento é do que se imagina e não do que realizou esse imaginar. Nós pensamos numa terra longínqua e confusamente admitimos que essa distância é sensível quando lá estivermos. Ora quando lá estivermos há o real que desmistifica o imaginário, há o lá, como aqui, num sítio limitado por um horizonte totalmente presente e não tocado da ausência que havia na imaginação. Mesmo os seus elementos característicos que tiver, uma vez realizados, perdem a magia na sua realização. Eis porque precisamos às vezes de rever num mapa a sua localização para de algum modo lhe restaurarmos a distãncia. Tudo se solidifica na concretização do real, tudo se desvanece aí da sua figuração. A grande força do real é a do que está para lá dele, porque toda a realidade é redutora.

Um Ser Humano não é Grande Coisa

Não tenhamos ilusões: um ser humano não é grande coisa. De facto, há tantos que os governos não sabem o que fazer com eles. Seis mil milhões de humanos à face da Terra e apenas seis ou sete mil tigres de Bengala – ora digam lá qual das espécies necessita de mais proteção, de cuidados especiais. Sim, escolham vocês mesmos. Um negro, um chinês, um escocês, ou um belo tigre que cai vítima de um caçador. Um tigre, com a sua pelagem listrada de cores incomparáveis e os seus olhos coruscantes, é bastante mais belo do que um velhote cheio de varizes como eu. Que diferença de porte. Comparem a agilidade de um com a inépcia do outro. Vejam como se movem. Metam-nos em jaulas do jardim zoológico, lado a lado. Diante da jaula do velho concentram-se as crianças que riem ao vê-lo catar-se e pôr-se de cócoras para defecar; diante da do tigre, arregalam os olhos de admiração. Acabou essa ilusão segundo a qual o homem é o centro do universo. É verdade que no animal humano distinguimos os gestos, os rostos e as vozes, o que estimula a nossa empatia, mas também distinguimos características particulares, que associamos a sentimentos,

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O Facto e o Direito

O direito é a justiça e a verdade. O característico do direito é conservar-se perpetuamente puro e belo. O facto, ainda o mais necessário, segundo as aparências, ainda o melhor aceite pelos contemporâneos, se só existe como facto, contendo pouco ou nada de direito, é infalivelmente destinado a tornar-se, com o andar dos tempos, disforme, imundo, talvez até monstruoso. Se alguém quiser verificar de um só jacto a que ponto de fealdade pode chegar o facto, visto à distância dos séculos, olhe para Maquiavel. Maquiavel não é um mau génio, nem um demónio, nem um escritor cobarde e miserável; é o facto puro. E não é só o facto italiano, é o facto europeu, é o facto do século XVI. Parece hediondo, e é-o, em presença da ideia moral do século XIX.
Esta luta do direito e do facto dura desde a origem das sociedades. Terminar o duelo, amalgamar a ideia pura com a realidade humana, fazer penetrar pacificamente o direito no facto e o facto no direito, eis o trabalho dos sábios.