A Inutilidade do Viajar
Que utilidade pode ter, para quem quer que seja, o simples facto de viajar? NĂŁo Ă© isso que modera os prazeres, que refreia os desejos, que reprime a ira, que quebra os excessos das paixões erĂłticas, que, em suma, arranca os males que povoam a alma. NĂŁo faculta o discernimento nem dissipa o erro, apenas detĂ©m a atenção momentaneamente pelo atractivo da novidade, como a uma criança que pasma perante algo que nunca viu! AlĂ©m disso, o contĂnuo movimento de um lado para o outro acentua a instabilidade (já de si considerável!) do espĂrito, tornando-o ainda mais inconstante e incapaz de se fixar. Os viajantes abandonam ainda com mais vontade os lugares que tanto desejavam visitar; atravessam-nos voando como aves, vĂŁo-se ainda mais depressa do que vieram. Viajar dá-nos a conhecer novas gentes, mostra-nos formações montanhosas desconhecidas, planĂcies habitualmente nĂŁo visitadas, ou vales irrigados por nascentes inesgotáveis; proporciona-nos a observação de algum rio de caracterĂsticas invulgares, como o Nilo extravasando com as cheias de VerĂŁo, o Tigre, que desaparece Ă nossa vista e faz debaixo de terra parte do seu curso, retomando mais longe o seu abundante caudal, ou ainda o Meandro, tema favorito das lucubrações dos poetas, contorcendo-se em incontáveis sinuosidades, fazendo incessantemente ainda mais um circuito antes de enfim descansar no leito de que se aproxima. Mas viajar nĂŁo torna ninguĂ©m melhor de carácter nem mais sĂŁo de espĂrito. Teremos de nos aplicar ao estudo, de frequentar os mestres da filosofia, a fim de assimilarmos os princĂpios já estabelecidos e investigar o que ainda está por descobrir. SĂł assim a alma se pode arrancar Ă mais dura servidĂŁo e alcançar a verdadeira liberdade. Enquanto ignorares a distinção entre o evitável e o desejável, o necessário e o supĂ©rfluo, o justo e o injusto, o moral e o imoral — nunca serás um viajante, mas apenas um ser Ă deriva.As tuas deambulações nĂŁo te trarĂŁo qualquer proveito, já que viajas na companhia das tuas paixões, seguido sempre pelos males que te dominam. E bom era que estes males apenas te seguissem! Bom era que eles estivessem longe de ti! O que se passa, porĂ©m, Ă© que os levas em cima, e nĂŁo atrás de ti. Deste modo, onde quer que estejas, eles oprimem-te, destroem-te com a mesma virulĂŞncia. Um doente precisa que se lhe indique um remĂ©dio, nĂŁo um panorama. Se um homem parte uma perna ou faz uma entorse nĂŁo vai pĂ´r-se a passear de carro ou de barco: manda, sim, Ă© chamar um mĂ©dico que lhe ligue o membro partido ou ponha no seu lugar o osso deslocado. Ora bem: acaso pensas tu que uma alma quebrada ou torcida em tantos lugares pode tratar-se com uma simples mudança de ambiente? NĂŁo, esta doença Ă© demasiado grave para curar-se com um passeio! A formação de um mĂ©dico ou de um orador nĂŁo se faz em viagem; a aprendizagem de qualquer arte nĂŁo depende da geografia. Como pensar que a sabedoria, a mais importante das artes, se pode adquirir saltando daqui para acolá?! Podes crer que nenhuma viagem te põe ao abrigo do desejo, da ira, do medo; se tal fosse o caso, todo o gĂ©nero humano começaria em massa a viajar. Estes males nĂŁo cessarĂŁo de atormentar-te, de desgastar-te ao longo das tuas viagens, terrestres ou marĂtimas, enquanto tiveres em ti as suas causas.