Textos sobre Manhã

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Textos de manhã escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

Todos Nós Hoje Nos Desabituamos do Trabalho de Verificar

Todos nós hoje nos desabituamos, ou antes nos desembaraçamos alegremente, do penoso trabalho de verificar. É com impressões fluídas que formamos as nossas maciças conclusões. Para julgar em Política o facto mais complexo, largamente nos contentamos com um boato, mal escutado a uma esquina, numa manhã de vento. Para apreciar em Literatura o livro mais profundo, atulhado de ideias novas, que o amor de extensos anos fortemente encadeou—apenas nos basta folhear aqui e além uma página, através do fumo escurecedor do charuto. Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que soberana facilidade declaramos—«Este é uma besta! Aquele é um maroto!» Para proclamar—«É um génio!» ou «É um santo!» of erecemos uma resistência mais considerada. Mas ainda assim, quando uma boa digestão ou a macia luz dum céu de Maio nos inclinam à benevolência, também concedemos bizarramente, e só com lançar um olhar distraído sobre o eleito, a coroa ou a auréola, e aí empurramos para a popularidade um maganão enfeitado de louros ou nimbado de raios. Assim passamos o nosso bendito dia a estampar rótulos definitivos no dorso dos homens e das coisas. Não há acção individual ou colectiva, personalidade ou obra humana, sobre que não estejamos prontos a promulgar rotundamente uma opinião bojuda E a opinião tem sempre,

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A Impossibilidade de Renunciar

Eu decido correr a uma provável desilusão: e uma manhã recebo na alma mais uma vergastada – prova real dessa desilusão. Era o momento de recuar. Mas eu não recuo. Sei já, positivamente sei, que só há ruínas no termo do beco, e continuo a correr para ele até que os braços se me partem de encontro ao muro espesso do beco sem saída. E você não imagina, meu querido Fernando, aonde me tem conduzido esta maneira de ser!… Há na minha vida um bem lamnetável episódio que só se explica assim. Aqueles que o conhecem, no momento em que o vivi, chamaram-lhe loucura e disparate inexplicável. Mas não era, não era. É que eu, se começo a beber um copo de fel, hei-de forçosamente bebê-lo até ao fim. Porque – coisa estranha! – sofro menos esgotando-o até à última gota, do que lançando-o apenas encetado. Eu sou daqueles que vão até ao fim. Esta impossibilidade de renúncia, eu acho-a bela artisticamente, hei-de mesmo tratá-la num dos meus contos, mas na vida é uma triste coisa. Os actos da minha existência íntima, um deles quase trágico, são resultantes directos desse triste fardo. E, coisas que parecem inexplicáveis, explicam-se assim. Mas ninguém as compreende.

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O Significado do Amor

Eu pensava que conhecia o significado do amor. O amor é o sangue do sol dentro do sol. A inocência repetida mil vezes na vontade sincera de desejar que o céu compreenda. Levantam-se tempestades frágeis e delicadas na respiração vegetal do amor. Como uma planta a crescer da terra. O amor é a luz do sol a beber a voz doce dessa planta. Algo dentro de qualquer coisa profunda.

O amor é o sentido de todas as palavras impossíveis. Atravessar o interior de uma montanha. Correr pelas horas originais do mundo. O amor é a paz fresca e a combustão de um incêndio dentro, dentro, dentro, dentro, dentro dos dias. Em cada instante de manhã, o céu a deslizar como um rio. A tarde, o sol como uma certeza. O amor é feito de claridade e da seiva das rochas. O amor é feito de mar, de ondas na distância do oceano e de areia eterna. O amor é feito de tantas coisas opostas e verdadeiras. Nascem lugares para o amor e, nesses jardins etéreos, a salvação é uma brisa que cai sobre o rosto suavemente.

Eu acreditava mesmo que o amor é o sangue do sol dentro do sol.

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O Outono da Vida

Começa devagarinho. É como tudo. A gente andamos na nossa vida, andamos influídos e está claro que não reparamos. De manhã, temos de pensar no café.
Depois, há-de vir o almoço. Está claro que nem reparamos numa aragem. Mal uma aragem mais fresca que se mistura com o sol-pôr. Já setembro quer acabar e ainda temos a torrina do sol na pele, a hora do calor, (quase cansada, para a cadela invisível) Anda cá, Ladina… Também estás a ficar velha… Arriba, cadela… (voltando ao tom e à direcção inicial) A gente nem dá fé. Primeiro, é umas pontadas nas costas, umas sezões, umas coisas assim. Primeiro, a gente julga que vai passar, como passavam os esfolões nas pernas quando éramos pequenos e andávamos a correr pelas ruas ou quando encontrávamos alguma árvore a jeito de subir. Começa mesmo devagarinho. Aos poucos, (com ternura, para a cadela) Ah, Ladina… Bochinha, bochinha… Então, não queres vir? Anda cá, cadela… (voltando à direcção inicial) E as mãos começam a tremer um bocadinho. E o trabalho começa a ser mais custoso. E um dia a gente já quase que não conhece a nossa cara no espelho no lavatório. É nesse dia, é nessa hora que começa o outono.

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Aos Pregadores de Moral

Não quero fazer moral, mas dou o seguinte conselho àqueles que a fazem: se quereis tirar às melhores coisas todo o prestígio e todo o valor, continuai a falar delas como o fazeis. Fazei disso o centro da vossa moral, repeti de manhã à noite a felicidade da virtude, a tranquilidade da alma, a equidade e a justiça imanente; pelo caminho por onde ides, essas excelentes coisas acabarão por ganhar o coração do povo; a voz do povo estará do seu lado; mas, passando de mão em mão, perderão toda a sua duradoura; pior: o seu ouro transformar-se-á em chumbo. Ah! Como sois peritos nessas contra-alquimias! Como sabeis desvalorizar as substâncias mais preciosas! Tentai, portanto, uma vez, a título de experiência, uma receita diferente, se não quereis, como até agora, conseguir o contrário daquilo que procurais: negai essas excelentes coisas, retirai-lhes o aplauso da multidão, entravai a sua circulação, voltai a fazê-las outra vez o objecto de secreto pudor da alma solitária, dizei que a moral é um fruto proibido! Talvez ganheis então para a vossa causa a única espécie de homens que interessa, quero dizer, a raça dos heróis.

O Amor Infinito

Da mulher o que nos comove e enleva é a parte impoluta que ela tem do céu; é a magia que a fada exercita obedecendo a interno impulso, não sabido dela, não sabido de nós. Ali há mensagem de outras regiões; aqui, no peito arquejante, nos olhos amarados de gozozas lágrimas, há um espirar para o alto, um ir-se o coração avoando desde os olhos, desde o sorriso dela para soberanas e imorredouras alegrias. Nós é que não sabemos nem podemos ver senão o pouquinho desse infinito que nos entre-luz nas graças do primeiro amor, do segundo amor, de quantos estremecimentos de súbita embriaguez nos fazem crer que despimos o invólucro de barro e pairamos alados sobre a região das lágrimas.

É Deus que não quer ou somos nós que não podemos prorrogar a duração ao sonho? Se Deus, que mal faria à sua divina grandeza que o pequenino guzano o adorasse sempre? Porque vai tão rápida aquela estação em que o homem é bom porque ama, e é caritativo e dadivoso porque tudo sobeja à sua felicidade? Quando poderam aliar-se um amor puro com a impureza das intenções? Quais olhos de homem afectivo e como santificado por seu amor recusaram chorar sobre desgraças estranhas?

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Não Há Dor Que Justifique a Fuga

A escuridão, as trevas desesperadas, é esse o círculo terrível da vida do dia-a-dia. Por que é que uma pessoa se levanta de manhã, come, bebe e se deita outra vez? A criança, o selvagem, o jovem saudável, o animal não padecem sob a rotina deste círculo de coisas e actividades indiferentes. Aquele a quem os pensamentos não atormentam, alegra-se com o levantar pela manhã e com o comer e o beber, acha que é o suficiente e não quer outra coisa.
Mas quem viu esta naturalidade perder-se, procura no decurso do dia, ansioso e desperto, os momentos da verdadeira vida cujas cintilações o tornam feliz e que apagam a sensação de que o tempo reúne em si todos os pensamentos relativos ao sentido e ao objectivo de tudo. Podem chamar a esses momentos, momentos criadores, porque parece que trazem a sensação de união com o criador, porque se sente tudo como desejado, mesmo que seja obra do acaso. É aquilo a que os místicos chamam união com Deus. Talvez seja a luz muito clara desses momentos que faz parecer tudo tão escuro, talvez a libertadora e maravilhosa leveza desses momentos faça sentir o resto da vida tão pesada,

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O Amor é um Acidente, uma Renúncia, um Hábito, uma Maldição

O amor é um acidente.
Eu estava sentada no regaço de uma mulher de cobre, uma escultura de Henry Moore, e Bill debruçou-se sobre mim e beijou-me nos lábios. E de repente eu amava-o. Amava-o e só isso importava. Reparei nas mãos dele, mãos de pianista. Mãos preparadas para o amor. Ainda hoje gosto de lhe ver as mãos enquanto folheia um livro, enquanto lê um jornal. As mãos dele envelheceram, envelheceram a apertar outras mãos, milhares de outras mãos, a jogar golfe, a assinar autógrafos e documentos importantes. Envelheceram, sim, mas continuam belas. Continuam a excitar-me.
O amor é uma renúncia. Amar alguém é desistir de amar outros, é desistir por esse amor do amor de outros. Eu desisti de tudo. A partir desse dia dei-lhe todos os meus dias. Entreguei-lhe os meus sonhos, os meus segredos, as minhas convicções mais profundas. Não me queixo!
Não sou ingénua nem estúpida. Quando digo que o amor é uma renúncia, quero dizer que foi assim para mim. Para Bill foi sempre uma outra coisa. Eu sabia que ele reparava noutras mulheres, e que outras mulheres reparavam nele. Um homem feio, com poder, é quase bonito. Um homem bonito,

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Náufragos que Navegam Tempestades

As tempestades são sempre períodos longos. Poucas pessoas gostam de falar destes momentos em que a vida se faz fria e anoitece, preferem histórias de praias divertidas às das profundas tragédias de tantos naufrágios que são, afinal, os verdadeiros pilares da nossa existência.

Gente vazia tende a pensar em quem sofre como fraco… quando fracos são os que evitam a qualquer custo mares revoltos, tempestades em que qualquer um se sente minúsculo, mas só os que não prestam o são verdadeiramente. Para a gente de coração pequeno, qualquer dor é grande. Os homens e mulheres que assumem o seu destino sabem que, mais cedo ou mais tarde, morrerão, mas há ainda uma decisão que lhes cabe: desviver a fugir ou morrer sofrendo para diante.
Da morte saímos, para a morte caminhamos. O que por aqui sofremos pode bem ser a forma que temos de nos aproximarmos do coração da verdade.

Haverá sempre quem seja mestre de conversas e valente piloto de naus alheias, os que sabem sempre tudo, principalmente o que é (d)a vida do outro, e mais especificamente se estiver a passar um mau bocado. Logo se apressam a dizer que depois da tempestade vem a bonança,

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Este Livro Podia Acabar Aqui

Este livro podia acabar aqui. Sempre gostei de enredos circulares. E a forma que os escritores, pessoas do tamanho das outras, têm para sugerir eternidade. Se acaba conforme começa é porque não acaba nunca. Mas tu, eu, os Flauberts, os Joyces, os Dostoievskis sabemos que, para nós, acaba. Com um ligeiro desvio, os círculos transfor-mam-se em espirais e, depois, basta um ponto como este: . O bico de uma caneta espetada no papel. Um gesto a acertar na tecla entre , e -. Um movimento sobre um quadradinho de plástico. Isto: . Repara como é pequeno, insuficiente para espreitarmos através dele, floco de cinza a planar, resto de formiga esmagada. Se o pudéssemos segurar entre os dedos, não seríamos capazes de senti-lo, grão de areia. Mas tu ainda estás aí, olá, eu ainda estou aqui e não poderia ir-me embora sem te agradecer. Aí e aqui ainda é o mesmo lugar. Sinto-me grato por essa certeza simples. A paisagem, mundo de objectos, apenas ganhará realidade quando deixarmos estas palavras. Até lá, temos a cabeça submersa neste tempo sem relógios, sem dias de calendário, sem estações, sem idade, sem agosto, este tempo encadernado. As tuas mãos seguram este livro e, no entanto,

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O Supremo Instinto do Asseio

O que separa mais profundamente duas pessoas é um sentido e grau diferentes de asseio. Para que serve toda a honestidade e utilidade mútua, para que serve toda a boa vontade de uns para os outros: por fim é sempre o mesmo – “eles não se podem cheirar!” O supremo instinto do asseio coloca quem o tiver na solidão mais estranha e perigosa, como um santo: pois isso precisamente é santidade – a suprema espiritualização desse instinto. Qualquer saber comum de uma indescritível felicidade do banho, qualquer ardor e sede que impelem a alma constantemente da noite para a manhã e do turvo, da «tribulação» para o claro, resplandecente, profundo, subtil: – do mesmo modo que tal tendência distingue – pois é uma tendência aristocrática -, também separa. A compaixão do santo é a compaixão com a sujidade do humano, demasiadamente humano. E há graus e alturas em que a própria compaixão é sentida, por ele, como contaminação, como sujidade…

Tive um Cavalo de Cartão

Mulher. A tua pele branca foi um verão que quis viver e me foi negado. Um caminho que não me enganou. Enganou-me a luz e os olhos foscos das manhãs revividas. Enganou-me um sonho de poder ser o filho que fui, a correr pelos campos todo o dia, a medir as searas pelo tamanho dos braços abertos; enganou-me um sonho de poder ser o filho que fui no teu homem e no teu rosto, no teu filho, nosso. Não há manhãs para reviver, sei-o hoje. Não se podem construir dias novos sobre manhãs que se recordam. Inventei-te talvez, partindo de uma estrela como todas estas. Quis ter uma estrela e dar-lhe as manhãs de julho. As grandes manhãs de julho diante de casa e a minha mãe a acabar o almoço bom e o meu pai a chegar e a ralhar, sem ser a sério, por o almoço não estar pronto e eu sentado na terra, talvez a fazer um barroco, talvez a brincar com o cavalo de cartão. Tive um cavalo de cartão. Nunca te contei, pouco te contei, mas tive um cavalo de cartão. Brincava com ele e era bonito. Gostava muito dele. Tanto. Tanto. Tanto. Quando o meu pai mo trouxe,

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Prosema I

Com a devida vénia me reparto junto do tampo de mármore meu secretário tão certo. Desde quando deixara eu de ouvir esta palavra? Logrei substituí-la numa manhã óptima mas não esta em que a mola salta reprimida sabe-se lá donde, algures na hipófise.
Na confraria dos reclusos outras quimeras se aventam como Sol, Mãe, Amada, até que o tempo nosso inimigo se distancie e nos abandone por instantes. Na laje já sobre a qual o papel branco me obedece sem que o habitem outros sinais, pequeninos veios avolumam-se em áreas mais densas, configurando pássaros de porcelana chinesa. Afundo-me neste fundo para descobrir-lhes um sentido, branco, amarelo, de novo branco, cada centímetro um fuso de seres minúsculos, buscando reorganizar-se, perder-se, reagrupar-se.
De anacoreta nada tenho, só de multidões entre Cacilhas, Piedade e o Barreiro. E Campo de Ourique, que digo! A minha mão move-se, o pensamento pára, descubro as uvas pendentes como se fora Verão e o Sol ferisse como se o olhara de frente. Nem o ruído dos pássaros habituais junto à janela nos veio dar os bons dias, o funcionário impreterível virá à hora impreterível. Muito longe fora de portas um galo ou a sua ausência. Tenho uma toalha,

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A Felicidade é tão Cansativa como a Infelicidade

Toda a gente tem o seu método de interpretar a seu favor o balanço das suas impressões, para que daí resulte de algum modo aquele mínimo de prazer necessário às suas existências quotidianas, o suficiente em tempos de normalidade. O prazer da vida de cada um pode ser também constituído por desprazer, essas diferenças de ordem material não têm importância; sabemos que existem tantos melancólicos felizes como marchas fúnebres, que pairam tão suavemente no elemento que lhes é próprio como uma dança no seu. Talvez também se possa afirmar, ao contrário, que muitas pessoas alegres de modo nenhum são mais felizes do que as tristes, porque a felicidade é tão cansativa como a infelicidade; mais ou menos como voar, segundo o princípio do mais leve ou mais pesado do que o ar. Mas haveria ainda uma outra objecção: não terá razão aquela velha sabedoria dos ricos segundo a qual os pobres não têm nada a invejar-lhes, já que é pura fantasia a ideia de que o seu dinheiro os torna mais felizes? Isso só lhes imporia a obrigação de encontrar um sistema de vida diferente do seu, cujo orçamento, em termos de prazer, fecharia apenas com um mínimo excedente de felicidade,

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Amo-te Mais do que Nunca

Acabei, enfim, acabei! E logo me precipito a enviar-te uma palavrinha! Amo-te, és a minha vida, toda a minha vida. Aqui estou, pois, liberto! Que alegria! Até logo! Amo-te mais do que nunca. E tu, como te sentes esta manhã, minha alegria? Passaste bem a noite, ao menos? Irei encontrar o teu belo rosto radioso como o céu, que ontem chorava e hoje sorri? Preciso que tenhas saúde, que me ames, que sejas feliz. Preciso de ti, da tua saúde, do teu amor, da tua felicidade. Sabes, pobre querida, que podes viver descansada enquanto eu viver. O céu fez as minhas mãos para que reparassem a tua vida meio desfeita, a minha alma para compreender o teu coração, os meus lábios para beijar os teus pés.

Este Não-Futuro que a Gente Vive

Será que nos resta muito depois disto tudo, destes dias assim, deste não-futuro que a gente vive? (…) Bom, tudo seria mais fácil se eu tivesse um curso, um motorista a conduzir o meu carro, e usasse gravatas sempre. Às vezes uso, mas é diferente usar uma gravata no pescoço e usá-la na cabeça. Tudo aconteceu a partir do momento em que eu perdi a noção dos valores. Todos os valores se me gastaram, mesmo à minha frente. O dinheiro gasta-se, o corpo gasta-se. A memória. (…) Não me atrai ser banqueiro, ter dinheiro. Há pessoas diferentes. Atrai-me o outro lado da vida, o outro lado do mar, alguma coisa perfeita, um dia que tenha uma manhã com muito orvalho, restos de geada… De resto, não tenho grandes projectos. Acho que o planeta está perdido e que, provavelmente, a hipótese de António José Saraiva está certa: é melhor que isto se estrague mais um bocadinho, para ver se as pessoas têm mais tempo para olhar para os outros.

Tenho Saudades de Ti

Os dias contigo são dias inteiros que passam num instante. Tenho saudades de ti quando acordo, antes de perceber que já estás ali ao meu lado. Tenho saudades de ti de manhã enquanto espero que desças do banho. Fico bem a ler enquanto te espero, mas leio melhor quando estás ao pé de mim, quando já não me apetece ler.

Hoje foi mais um dia contigo e, mais uma vez, dou comigo aqui à noite, separado de ti, para escrever sobre o dia que se passou. E a coisa principal que aconteceu foi ter saudades de ti outra vez.

Bem sei que sei onde estás e que eu estou aqui a cinco passos de ti. Mas a maior certeza que tenho é que, apesar disso tudo, não estou contigo nem tu estás comigo. É o que me basta para ter saudades de ti. Não preciso de mais: se mais tivesse, morreria.

É verdade que estive contigo durante uma pequena parte do dia: aquela a que as pessoas tristes e habituadas chamam vida. Mas estava tão apaixonado e tão feliz que nem dei por isso.

Pensei apenas: “Conseguimos! Conseguimos estar juntos! Nem acredito!”

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O sonho da manhã, o vinho ao meio-dia, as conversas frívolas e a convivência com ignorantes, abreviam a vida humana.

Do Contraditório como Terapêutica de Libertação

Recentemente, entre a poeira de algumas campanhas políticas, tomou de novo relevo aquele grosseiro hábito de polemista que consiste em levar a mal a uma criatura que ela mude de partido, uma ou mais vezes, ou que se contradiga, frequentemente. A gente inferior que usa opiniões continua a empregar esse argumento como se ele fosse depreciativo. Talvez não seja tarde para estabelecer, sobre tão delicado assunto do trato intelectual, a verdadeira atitude científica.
Se há facto estranho e inexplicável é que uma criatura de inteligência e sensibilidade se mantenha sempre sentado sobre a mesma opinião, sempre coerente consigo próprio. A contínua transformação de tudo dá-se também no nosso corpo, e dá-se no nosso cérebro consequentemente. Como então, senão por doença, cair e reincidir na anormalidade de querer pensar hoje a mesma coisa que se pensou ontem, quando não só o cérebro de hoje já não é o de ontem, mas nem sequer o dia de hoje é o de ontem? Ser coerente é uma doença, um atavismo, talvez; data de antepassados animais em cujo estádio de evolução tal desgraça seria natural.
A coerência, a convicção, a certeza são além disso, demonstrações evidentes — quantas vezes escusadas — de falta de educação.

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Nada é Tão Fatigante Como a Indecisão

A fadiga (do homem da cidade) é devida a inquietações que poderiam ser evitadas por uma melhor filosofia da vida e um pouco mais de disciplina mental. A maior parte dos homens e mulheres não governam eficazmente os seus pensamentos. Quero com isto dizer que eles não podem deixar de pensar nos assuntos que os atormentam, mesmo quando nesse momento nenhuma solução lhes podem dar. Os homens levam muitas vezes para a cama as suas inquietações em matérias de negócios e, durante a noite, quando deviam ganhar novas forças para enfrentar os dissabores do dia seguinte, é nelas que pensam, repetidas vezes, embora nesse instante nada possam fazer; e pensam nos problemas que os inquietam, não de forma a encontrar uma linha de conduta firme para o dia seguinte, mas nessa semi-demência que caracteriza as agitadas meditações da insónia.
De manhã, qualquer coisa dessa demência nocturna persiste ainda neles, obscurece-lhes o julgamento, rouba-lhes a calma, de forma que qualquer obstáculo os enfurece. O homem sensato só pensa nas suas inquietações quando julga de interesse fazê-lo; no restante tempo pensa noutras coisas e à noite não pensa em coisa nenhuma. Não quero dizer que numa grande crise, por exemplo, quando a ruína está iminente,

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