Textos sobre Poder

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Textos de poder escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

Idiotia e Felicidade

Como pode ser-se idiota e, ao mesmo tempo, feliz, pergunta-me um leitor? Pois explico já. A idiotia e a felicidade são ideias muito vagas, difíceis de cingir em conceitos de circulação universal, digamos. Mas, pensando melhor, acho que certa idiotia é susceptível de conferir ao idiota seu proprietário (ou seu prisioneiro) uma espécie de segurança em si próprio que o levará, em determinados momentos, julgo eu, a uma beatitude muito próxima do que se pode chamar estado de felicidade.Assim sendo, não vejo incompatibilidade entre o ser-se idiota e o ser-se feliz. Bem sei que há várias maneiras de se chegar a idiota. Uma delas foi experimentada comigo. Uma parente minha queria por força reconverter-me ao Catolicismo e, deste modo, passava a vida a dizer-me: «Alexandre, não penses. Se começas a pensar estragas tudo. A crença em Deus, se, em vez de pensares, reaprenderes a rezar, vem por si. É uma graça, sabias? Vá, reza comigo.» E ensinava-me orações que eu, muitas vezes de mãos postas, repetia aplicadamente. Acabei por não me casar com ela.
Não quero dizer, com isto, que não acredite na chamada (creio eu) revelação. Se revelação não existisse, como poderia um poeta do tomo de Paul Claudel entrar um dia em Notre-Dame e sentir-se,

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Carta de Amor

Eu sabia que seria apenas depois de te teres ido embora que iria perceber a completa extensão da minha felicidade e, alas! o grau da minha perda também. Ainda não a consegui ultrapassar, e se não tivesse à minha frente aquela caixinha pequena com a tua doce fotografia, pensaria que tudo não teria passado de um sonho do qual não quereria acordar. Contudo os meus amigos dizem que é verdade, e eu próprio consigo-me lembrar de detalhes ainda mais charmosos, ainda mais misteriosamente encantadores do que qualquer fantasia sonhadora poderia criar. Tem que ser verdade. Martha é minha, a rapariga doce da qual todos falam com admiração, que apesar de toda a minha resistência cativou o meu coração logo no primeiro encontro, a rapariga que eu receava cortejar e que veio para mim com elevada confiança, que fortaleceu a minha confiança em mim próprio e me deu esperanças e energia para trabalhar, na altura que eu mais precisava.

Quando tu voltares, querida rapariga, já terei vencido a timidez e estranheza que até agora me inibiu perante a tua presença. Iremos sentar-nos de novo sozinhos naquele pequeno quarto agradável, vais-te sentar naquela poltrona castanha , eu estarei a teus pés no banquinho redondo,

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A Renúncia ao Poder

O único factor material indispensável para a geração do poder é a convivência entre os homens. Estes só retêm poder quando vivem tão próximos uns dos outros que as potencialidades da acção estão sempre presentes; e, portanto, a fundação de cidades que, como as cidades-estado, se converteram em paradigmas para toda a organização política ocidental, foi na verdade a condição prévia material mais importante do poder.

O que mantém unidas as pessoas depois de ter passado o momento fugaz da acção (aquilo que hoje chamamos «organização») e o que elas, por sua vez, mantêm vivo ao permanecerem unidas é o poder. Todo aquele que, por algum motivo, se isola e não participa dessa convivência renuncia ao poder e torna-se impotente, por maior que seja a sua força e por mais válidas que sejam as suas razões.

Há Muitas Religiões, Mas o Espírito é Único

– Que religião é a tua? – perguntou um homem de certa idade, que estava num extremo da balsa, junto do seu carro.
– Não tenho nenhuma religião. Porque não creio em ninguém mais do que em mim mesmo – replicou o velho com ar resoluto.
– Como pode uma pessoa crer em si mesma ? Pode enganar-se – objectou Nekliudov, intervindo na conversa.
– Nunca! – exclamou o velho abanando a cabeça.
– Porque há então diferentes religiões ?- interrogou Nekliudov.
– Porque as pessoas crêem precisamente nessas religiões e não crêem em si mesmas. Também eu acreditei nos outros e perdi-me como numa floresta. Estava tão confuso que julguei não poder mais encontrar o caminho. Conheci múltiplas religiões diferentes. Todas se louvam a si mesmas. Todas se foram propagando, tal como uns carneiros cegos arrastam outros consigo. Há muitas religiões, mas o espírito é único. É o mesmo em ti, em vós e em mim. Assim, pois, cada um de nós tem de acreditar no seu espírito, e deste modo todos estamos unidos.

Um Ser Humano não é Grande Coisa

Não tenhamos ilusões: um ser humano não é grande coisa. De facto, há tantos que os governos não sabem o que fazer com eles. Seis mil milhões de humanos à face da Terra e apenas seis ou sete mil tigres de Bengala – ora digam lá qual das espécies necessita de mais proteção, de cuidados especiais. Sim, escolham vocês mesmos. Um negro, um chinês, um escocês, ou um belo tigre que cai vítima de um caçador. Um tigre, com a sua pelagem listrada de cores incomparáveis e os seus olhos coruscantes, é bastante mais belo do que um velhote cheio de varizes como eu. Que diferença de porte. Comparem a agilidade de um com a inépcia do outro. Vejam como se movem. Metam-nos em jaulas do jardim zoológico, lado a lado. Diante da jaula do velho concentram-se as crianças que riem ao vê-lo catar-se e pôr-se de cócoras para defecar; diante da do tigre, arregalam os olhos de admiração. Acabou essa ilusão segundo a qual o homem é o centro do universo. É verdade que no animal humano distinguimos os gestos, os rostos e as vozes, o que estimula a nossa empatia, mas também distinguimos características particulares, que associamos a sentimentos,

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A Minha Educação Prejudicou-me em Vários Aspectos

Dormi, acordei, dormi, acordei, vida miserável. (…) Quando penso nisso, tenho de dizer que a minha educação me prejudicou muito em vários aspectos. Não fui, de facto, educado num lugar longe de tudo, como por exemplo entre ruínas, nas montanhas; contra esse facto eu não poderia realmente exprimir a minha censura. Apesar de correr o risco de não poder ser compreendido por todos os meus antigos professores, eu bem preferiria ter sido um habitante dessas pequenas ruínas, queimado pelo sol que por entre os destroços me apareceria de todos os lados sobre a tépida hera, mesmo que eu a princípio houvesse sido fraco sob a pressão das minhas boas qualidades, que com a força da erva teriam crescido dentro de mim.

Quando penso nisso, tenho de dizer que a minha educação me prejudicou muito em vários aspectos. Esta censura aplica-se a uma quantidade de pessoas, ou seja, aos meus pais, a algumas pessoas de família, a alguns amigos da casa, a vários escritores, a uma certa cozinheira, que durante todo um ano me levou à escola, a um monte de professores (que nas minhas recordações tenho de comprimir num grupo estreito, que doutra maneira me falha um aqui e outro ali — mas,

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Ninguém me Ama a Ponto de Ser Eu

Fiz o que era mais urgente: uma prece. Rezo para achar o meu verdadeiro caminho. Mas descobri que não me entrego totalmente à prece, parece-me que sei que o verdadeiro caminho é com dor. Há uma lei secreta e para mim incompreensível: só através do sofrimento se encontra a felicidade. Tenho medo de mim pois sou sempre apta a poder sofrer. Se eu não me amar estarei perdida — porque ninguém me ama a ponto de ser eu, de me ser. Tenho que me querer para dar alguma coisa a mim. Tenho que valer alguma coisa? Oh protegei-me de mim mesma, que me persigo. Valho qualquer coisa em relação aos outros — mas em relação a mim, sou nada. É tão bom ter a quem pedir. Nem me incomodo muito se eu não for totalmente atendida. Eu peço a Deus para eu ser mais bonita — e não é que meu olho faísca ao mesmo tempo que meus lábios parecem mais doces e cheios? Eu peço a Deus tudo o que eu quero e preciso. É o que me cabe. Ser ou não ser atendida — isso não me cabe a mim, isto já é matéria-mágica que se me dá ou se retrai.

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Nasci de Novo

Terminei o poema e levei-te o terceiro acto. Conduziste-me junto da cadeira, defronte do canapé, abraçaste-me e disseste: «Agora já não desejo mais nada na vida». Nesse dia, a essa precisa hora, nasci de novo. Até então fora uma vida preparatória. Depois começou a minha vida póstuma. Mas nesse momento maravilhoso vivi o meu presente. Sabes bem como o recebi: não sobreexcitado, tempestuoso, inebriado, mas solenemente o recebi, doce, calorosa e profundamente perturbado, e como que olhando o infinito diante de mim. Cada vez me desligara mais dolorosamente do Mundo. Tudo em mim se tornara negação, recusa. As minhas próprias criações eram-me apenas sofrimento, nostalgia, e um insaciável desejo de opor a essa negação, a essa nostalgia, uma afirmação – além de poder desdobrar-me num outro eu. Esse momento único concedeu-mo. Uma mulher terna, tímida, receosa, lançou-se corajosamente no oceano do sofrimento para me oferecer esse instante adorável. Para me dizer: amo-te. Foi como se te tivesses dedicado à morte para me dares a vida; e eu recebi a vida para contigo sofrer e morrer.

Hábito e Inércia

Ao princípio, somos carne animada pela alma; a meio caminho, meias máquinas; perto do fim, autómatos rígidos e gelados como cadáveres. Quando a morte chega, encontramo-nos em tudo semelhantes aos mortos. Esta petrificação progressiva é obra do hábito.
O hábito torna-nos cegos às maravilhas do mundo – indiferentes e inconscientes perante os milagres quotidianos -, embota a força dos sentidos e dos sentimentos – torna-nos escravos dos costumes, mesmo tristes e culpados: suprime a vista, espanto, fogo e liberdade. Escravos, frígidos, insensatos, cegos: tudo propriedade dos cadáveres. A subjugação aos hábitos é uma subjugação da morte; um suicídio gradual do espírito.
O hábito suprime as cores, incrusta, esconde: partes da nossa vida afundam-se gradualmente na inconsciência e deixam de ser vida para se tornarem peças de um mecanismo imprevisto. O círculo do espontâneo reduz-se; a liberdade e novidade decaem na monotonia do vulgar.
É como se o sangue se tornasse, a pouco e pouco, sólido como os ossos e a alma um sistema de correias e rodas. A matéria não passa de espírito petrificado pelos hábitos. Nasce-se espírito e matéria e termina-se apenas como matéria. A casca converteu em madeira a própria linfa.
A casca é necessária para proteger o albume,

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Somos Todos Casos Excepcionais

Somos todos casos excepcionais. Todos queremos apelar de qualquer coisa! Cada qual exige ser inocente, a todo o custo, mesmo que para isso seja preciso inculpar o género humano e o céu. Contentaremos mediocremente um homem, se lhe dermos parabéns pelos esforços graças aos quais se tornou inteligente ou generoso. Pelo contrário, ele rejubilará, se se admirar a sua generosidade natural. Inversamente, se disssermos a um criminoso que o seu crime nada tem com a sua natureza, nem com o seu carácter, mas com infelizes circunstâncias, ele ficar-nos-á violentamente reconhecido. Durante a defesa, escolherá mesmo este momento para chorar. No entanto, não há mérito nenhum em ser-se honesto, nem inteligente, de nascença! Como se não é certamente mais responsável em ser-se criminoso por natureza que em sê-lo devido às circunstâncias. Mas estes patifes querem a absolvição, isto é, a irresponsabilidade, e tiram, sem vergonha, justificações da natureza ou desculpas das circunstâncias, mesmo que sejam contraditórias. O essencial é que sejam inocentes, que as suas virtudes, pela graça do nascimento, não possam ser postas em dúvida, e que os seus crimes, nascidos de uma infelicidade passageria, nunca sejam senão provisórios. Já lhe disse, trata-se de escapar ao julgamento. Como é difícil escapar e melindroso fazer,

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Dar é Viver

Dá-te.

Dar é viver.

Ninguém, por muito pouco que receba, viverá em alegria se não der nada a ninguém. Dá-se um sorriso, uma mão, um beijo, um abraço, um conselho, uma ideia, uma palavra, uma hora, duas ou três, de silêncio ou de ouvidos em alerta para o outro poder desabafar, chorar ou libertar-se. Dá-se boleia, dão-se sugestões, brinca-se, dá-se o corpo, dá-se prazer, dão-se pistas, dá-se tanta coisa. Tanta coisa que custa zero mas vale tanto. E quanto mais dermos de nós, mais recebemos. Nem sempre daqueles a quem damos, é um facto, faz parte da experiência de aprender a lidar com a expectativa, o apego e a cobrança, mas se dermos de coração, e só porque nos faz sentir bem, recebemos sempre e quase sempre de onde menos esperamos.

Quando somos incondicionais podemos ser surpreendidos a qualquer momento.

É tão bom. Sabe tão bem. Dar e nunca saber de onde podemos vir a receber. Torna os dias surpreendentes. A vida agiganta-se. Acaba-se a agonia do «tem de ser» e de repente é tudo novidade. É como dizer «Amo-te» a alguém que amo, e porque o senti naquele instante, e não ficar à espera de ouvir o mesmo dessa pessoa no segundo a seguir.

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Cultivar a Felicidade

Desde os primórdios da humanidade, que o ser humano procura a felicidade como a terra seca clama pela água. É fácil conquistá-la? Nem sempre! Os poetas homenagearam-na, os romancistas descreveram-na, os filósofos contemplaram-na, mas grande parte deles saudaram-na apenas de longe.
Os reis tentaram dominá-la, mas ela não se submeteu ao poder deles. Os ricos tentaram comprá-la, mas ela não se deixou vender. Os intelectuais tentaram compreendê-la, mas ela confundiu-os. Os famosos tentaram fasciná-la, mas ela contou-lhes que preferia o anonimato. Os jovens disseram que ela lhes pertencia, mas ela disse-lhes que não se encontrava no prazer imediato, nem se deixava encontrar pelos que não pensavam nas consequências dos seus atos.
Alguns acreditaram que poderiam cultivá-la em laboratório. Isolaram-se do mundo e dos problemas da vida, mas a felicidade enviou um claro recado a dizer que ela apreciava o cheiro das pessoas e crescia no meio das dificuldades.
Outros tentaram cultivá-la com os avanços da ciência e da tecnologia, mas eis que a ciência e a tecnologia se multiplicaram e a tristeza e as mazelas da alma se expandiram.

Desesperados, muitos tentaram encontrar a felicidade em todos os cantos do mundo. Mas no espaço ela não estava,

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O Homem Cruel

Quando o rico ti­ra um pertence ao pobre (por exemplo, um príncipe que tira a amante ao plebeu), então gera-se um erro no pobre; este acha que aquele tem de ser absoluta­mente infame, para lhe tirar o pouco que ele tem. Mas aquele não sente de modo algum tão profunda­mente o valor de um único pertence, porque está ha­bituado a ter muitos: portanto, não se pode trans­por para o espírito do pobre e não comete tal uma injustiça tão grande como este julga. Ambos têm um do outro uma concepção errada. A injustiça do poderoso, a que mais indigna na História, não é as­sim tão grande como parece. O mero sentimento hereditário de ser um ser superior, com direitos su­periores, torna uma pessoa bastante fria e deixa-lhe a consciência tranquila: até todos nós, se a distância entre nós e um outro ente for muito grande, já não sentimos absolutamente nada de injusto e matamos um mosquito, por exemplo, sem qualquer remorso.
Assim, não é sinal de maldade em Xerxes (a quem mesmo todos os Gregos descrevem como eminente­mente nobre) quando ele tira a um pai o seu filho e o manda esquartejar, porque este havia manifestado uma inquieta e ominosa desconfiança em relação a toda a expedição militar: neste caso,

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No Amor, o Homem Deve Tomar a Iniciativa

O pudor inibe a mulher de provocar certas carícias, mas sente prazer em recebê-las quando outro as começa. Sim, um homem tem em demasiada conta as suas qualidades físicas, se espera que seja a mulher a primeira a rogar. É ao homem que compete começar, é ao homem que compete pronunciar as palavras suplicantes; a ela acolher favorávelmente as suas brandas preces. Queres possuí-la? pede. Ela deseja tanto como tu ser rogada. Explica-lhe a causa e a origem do teu amor. Júpiter dirigia-se suplicante às antigas heroínas; apesar do seu poder, nenhuma o vinha provocar.
Mas se as tuas preces se quebram na distância dum orgulho desdenhoso, abandona o que começaste e recua. Como elas desejam o que lhes escapa, e detestam o que está ao seu alcance! Sendo menos insistente, não mais serás repelido.
E a esperança de alcançares os teus fins nem sempre deve aparecer nos teus pedidos; que o amor penetre sob o nome da amizade. Vi mulheres esquivas serem enganadas desta maneira: o que fora seu cortesão, tornara-se seu amante.

Intelecto Sentimental

O intelecto humano não é luz pura, pois recebe influência da vontade e dos afectos, donde se poder gerar a ciência que se quer. Pois o homem inclina-se a ter por verdade o que prefere. Em vista disso, rejeita as dificuldades, levado pela impaciência da investigação; a sobriedade, porque sofreia a esperança; os princípios supremos da natureza, em favor da superstição; a luz da experiência, em favor da arrogância e do orgulho, evitando parecer se ocupar de coisas vis e efémeras; paradoxos, por respeito à opinião do vulgo. Enfim, inúmeras são as fórmulas pelas quais o sentimento, quase sempre imperceptivelmente, se insinua e afecta o intelecto.

Aguentar os Desafios

Todos os desafios que enfrentamos têm o poder de nos derrotar. Mas ainda mais desconcertante do que o próprio embate é o nosso receio de não sermos capazes de o aguentar. Quando sentimos que o nosso chão treme, ficamos em pânico. Esquecemos tudo o que sabemos e deixamo-nos dominar pelo medo. Basta-nos imaginar o que poderia acontecer para nos desequilibrarmos.

Tenho a certeza de que a única forma de aguentarmos o terramoto é adaptarmos a nossa postura. Não conseguiremos evitar os tremores diários. Fazem parte de estar vivo. Mas acredito que essas experiências são dádivas que nos obrigam a dar um passo para a direita ou para a esquerda, em busca do nosso ponto de gravidade. Não os combata. Deixe que o ajudem a ajustar o passo.

O equilíbrio está no presente. Quando sentir a terra a tremer, transporte-se para o agora. Se o fizer, conseguirá lidar com todos os tremores de terra que o momento seguinte lhe possa trazer. Neste momento, você ainda respira. Neste momento, você sobreviveu. Neste momento, você está a descobrir uma forma de passar para o nível seguinte.

O Mal da Cidade

O Homem pensa ter na Cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. Vê, Jacinto! Na Cidade perdeu ele a força e beleza harmoniosa do corpo, e se tornou esse ser ressequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto, de ossos moles como trapos, de nervos trémulos como arames, com cangalhas, com chinós, com dentaduras de chumbo, sem sangue, sem fibra, sem viço, torto, corcunda – esse ser em que Deus, espantado, mal pode reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão! Na cidade findou a sua liberdade moral: cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade o arremessa para uma dependência: pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar; rico e superior como um Jacinto, a Sociedade logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimónias, praxes, ritos, serviços mais disciplinares que os dum cárcere ou dum quartel… A sua tranquilidade (bem tão alto que Deus com ela recompensa os Santos) onde está, meu Jacinto? Sumida para sempre, nessa batalha desesperada pelo pão, ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela fugidia rodela de ouro!
Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar –

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O Ofuscante Poder da Escrita

O sentido da literatura, no meio dos muitos que tenha ou não tenha, é que ela mantém, purificadas das ameaças da confusão, as linhas de força que configuram a equação da consciência e do acto, com suas tensões e fracturas, suas ambivalências e ambiguidades, suas rudes trajectórias de choque e fuga. O autor é o criador de um símbolo heróico: a sua própria vida.

Mas, quando cria esse símbolo, está a elaborar um sistema sensível e sensibilizador, convicto e convincente, de sinais e apelos destinados a colocar o símbolo à altura de uma presença ainda mais viva que aquela matéria desordenada onde teve origem. O valor da escrita reside no facto de, em si mesma, tecer-se ela como símbolo, urdir ela própria a sua dignidade de símbolo. A escrita representa-se a si, e a sua razão está em que dá razão às inspirações reais que evoca.

E produz uma tensão muito mais fundamental do que a realidade. É nessa tensão real criada em escrita que a realidade se faz. O ofuscante poder da escrita é que ela possui uma capacidade de persuasão e violentação de que a coisa real se encontra subtraída.
O talento de saber tornar verdadeira a verdade.

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A Evolução Opaca do Ser

Muitas vezes os seres são claros e translúcidos por serem primários e à medida que vão evoluindo é que se vão tornando opacos. Pensemos. Talvez seja isto: à medida que mais evoluindo vamos é que vão sendo precisos olhos mais penetrantes para se poder distinguir a qualidade de um ser. Então não será só à luz do sol que se deverá considerar a limpidez ou a translucidez do corpo de um ser mas à luz de outros princípios luminosos. (…) Aqui a razão precisava de ter evoluído paralelamente aos olhos, ora os nossos olhos vão de encontro aos seres como de encontro a um muro.

A Força do Poder Criativo

As biografias dos grandes artistas tornam abundantemente claro que o desejo criativo é frequentemente tão imperioso que demole a sua humanidade e subjuga tudo ao serviço do trabalho, até mesmo à custa da saúde e bem-estar de um vulgar ser humano. O trabalho por nascer na psique do artista é uma força da natureza que alcança o seu fim, tanto por poder tirânico como por astúcia vil da própria natureza, independentemente do destino pessoal do homem que é o seu veículo.