Entender, mais pelo Sentir que pela Razão
Uma verdade só o é quando sentida – não quando apenas entendida. Ficamos gratos a quem no-la demonstra para nos justificarmos como humanos perante os outros homens e entre eles nós mesmos. Mas a força dessa verdade está na força irrecusável com que nos afirmamos quem somos antes de sabermos porquê.
Assim nos é necessário estabelecer a diferença entre o que em nós é centrífugo e o que apenas é centrípeto. Nós somos centrifugamente pela irrupção inexorável de nós com tudo o que reconhecido ou não – e de que serve reconhecê-lo ou não? – como centripetamente provindo de fora, se nos recriou dentro no modo absoluto e original de se ser.
Só assim entenderemos que da «discussão» quase nunca nasça a «luz», porque a luz que nascer é normalmente a de duas pedras que se chocam. Da discussão não nasce a luz, porque a luz a nascer seria a que iluminasse a obscuridade de nós, a profundeza das nossas sombras profundas.
Decerto uma ideia que nos semeiem pode germinar e por isso as ideias é necessário que no-las semeiem. Mas a sua fertilidade não está na nossa mão ou na estrita qualidade da ideia semeada, porque o que somos profundamente só se altera quando isso que somos o quer –
Textos sobre Qualidade
178 resultadosO Homem não é Sempre Igual
Um dos preconceitos mais conhecidos e mais espalhados consiste em crer que cada homem possui como sua propriedade certas qualidades definidas, que há homens bons ou maus, inteligentes ou estúpidos, enérgicos ou apáticos, e assim por diante. Os homens não são feitos assim. Podemos dizer que determinado homem se mostra mais frequentemente bom do que mau, mais frequentemente inteligente do que estúpido, mais frequentemente enérgico do que apático, ou inversamente; mas seria falso afirmar de um homem que é bom ou inteligente, e de outro que é mau ou estúpido. No entanto, é assim que os julgamos. Pois isso é falso. Os homens parecem-se com os rios: todos são feitos dos mesmos elementos, mas ora são estreitos, ora rápidos, ora largos, ora plácidos, claros ou frios, turvos ou tépidos.
A Caridade como Dever
Ser caritativo quando se pode sê-lo é um dever, e há além disso muitas almas de disposição tão compassiva que, mesmo sem nenhum outro motivo de vaidade ou interesse, acham íntimo prazer em espalhar alegria à sua volta e se podem alegrar com o contentamento dos outros, enquanto este é obra sua. Eu afirmo porém que neste caso uma tal acção, por conforme ao dever, por amável que ela seja, não tem contudo nenhum verdadeiro valor moral, mas vai emparelhar com outras inclinações, por exemplo o amor das honras que, quando por feliz acaso topa aquilo que efectivamente é de interesse geral e conforme ao dever, é consequentemente honroso e merece louvor e estímulo, mas não estima; pois à sua máxima falta o conteúdo moral que manda que tais acções se pratiquem, não por inclinação, mas por dever.
Admitindo pois que o ânimo desse filantropo estivesse velado pelo desgosto pessoal que apaga toda a compaixão pela sorte alheia, e que ele continuasse a ter a possibilidade de fazer bem aos desgraçados, mas que a desgraça alheia o não tocava porque estava bastante ocupado com a sua própria; se agora, que nenhuma inclinação o estimula já, ele se arrancasse a esta mortal insensibilidade e praticasse a acção sem qualquer inclinação,
Não há Descoberta sem Violência
Devemos a quase totalidade das nossas descobertas às nossas violências, à exacerbação do nosso desequilíbrio. Mesmo Deus, na medida em que nos intriga, não é no mais íntimo de nós que o discernimos, mas antes no limite exterior da nossa febre, no ponto preciso em que, confrontando-se a nossa ira com a sua, se produz um choque, um encontro tão ruinoso para Ele como para nós. Ferido pela maldição que se liga aos actos, o violento só força a sua natureza, só se ultrapassa a si próprio, para a ela regressar, furioso e agressor, seguido pelas suas empresas, que o punem por as ter feito nascer. Não há obra que não se volte contra o seu autor: o poema esmagará o poeta, o sistema o filósofo, o acontecimento o homem de acção. Destrói-se quem, respondendo à sua vocação e cumprindo-a, se agita no interior da história; apenas se salva aquele que sacrifica dons e talentos para, desprendido da sua qualidade de homem, poder repousar no ser. Se aspiro a uma carreira metafísica, não posso por preço algum conservar a minha identidade: terei de liquidar o menor resíduo que dela possa guardar; se, pelo contrário, escolho a aventura de um papel histórico,
Não se Ama Alguém Senão pelas Qualidades Aparentes
Um homem que se põe à janela para ver quem passa, se eu passar, poderei dizer que ele se pôs lá para me ver? Não, pois ele não pensa em mim em particular. Mas aquele que ama alguém por causa da sua beleza, ama-o? Não; porque a varíola, que matará a beleza sem matar a pessoa, fará com que ele deixe de a amar.
E se me adiam pelo meu juízo, pela minha memória, amam-me, a mim? Não; porque eu posso perder estas qualidades sem me perder a mim mesmo. Onde está pois este eu, se não está nem no corpo nem na alma? E como amar o corpo ou a alma, senão por essas qualidades que não são o que faz o eu, visto que podem perecer? Pois, amar-se-á a substância da alma de uma pessoa abstractamente e as qualidades que lá estiverem? Isso não pode ser e seria injusto. Logo não se ama nunca a pessoa, mas somente as qualidades. Portanto, que não se riam mais daqueles que se fazem honrar pelos cargos e ofícios, pois não se ama ninguém senão pelas qualidades aparentes.
Aprender a Escrita pela Leitura
Ao lermos um autor, não temos a capacidade de adquirir as suas eventuais qualidades, como o poder de convencimento, a riqueza de imagens, o dom da comparação, a ousadia, ou o amargor, ou a concisão, ou a graça, ou a leveza da expressão, ou o espírito arguto, contrastes surpreendentes, laconismo, ingenuidade e outras semelhantes. No entanto, podemos evocar em nós mesmos tais qualidades, tornarmo-nos conscientes da sua existência, caso já tenhamos alguma predisposição para elas, ou seja, caso as tenhamos potentia; podemos ver o que é possível fazer com elas, podemos sentir-nos confirmados na nossa tendência, ou melhor, encorajados a empregar tais qualidades; com base em exemplos, podemos julgar o efeito da sua aplicação e assim aprender o seu uso correcto; somente então as possuímos também actu.
Esta é, portanto, a única maneira na qual a leitura nos torna aptos para escrever, na medida em que nos ensina o uso que podemos fazer dos nossos próprios dons naturais; portanto, pressupondo sempre a existência destes. Por outro lado, sem esses dons, não aprendemos nada com a leitura, excepto a maneira fria e morta, e tornamo-nos imitadores banais.
Sucesso sem Riqueza
Muita gente confunde sucesso com amealhar dinheiro. Embora o sucesso acabe por levar à riqueza, é muito mais que isso. É uma atitude mental e espiritual – um estado de consciência – de que o dinheiro é um sub-produto acidental. Sucesso é um modo de viver. Estamos neste mundo para ter sucesso como seres humanos. Uma pessoa bem sucedida tem paz de espírito, está satisfeita com os talentos que Deus lhe deu, e sente-se feliz em usá-los e aplicá-los para seu benefício. A procura de uma vida melhor, e a realização de um objectivo digno, é a mais satisfatória das actividades humanas.
(…) Uma vida bem sucedida não é fácil. É construída sobre qualidades fortes – sacrifício, diligência, lealdade e integridade. A corrida nem sempre é ganha pelo mais rápido nem a batalha pelo mais forte; a vitória vai muitas vezes para o mais temerário e o mais persistente. O maior obstáculo no caminho do sucesso não é a falta de inteligência, de carácter ou de força de vontade. É a incapacidade para levar o trabalho até ao fim.
O Equilíbrio Humano
As nossas opiniões são apenas suplementos da nossa existência e na maneira de pensar de uma pessoa pode ver-se o que lhe falta. Os indivíduos mais frívolos são os que se têm a si mesmos em grande consideração, e as pessoas de maior qualidade são apreensivas. O homem de vícios é descarado e o virtuoso é tímido. Deste modo tudo se equilibra: cada um de nós quer ser completo ou, pelo menos, quer ver-se como tal.
Sobre a Diferença dos Espíritos
Apesar de todas as qualidades do espírito se poderem encontrar num grande espírito, algumas há, no entanto, que lhe são próprias e específicas: as suas luzes não têm limites, actua sempre de igual modo e com a mesma actividade, distingue os objectos afastados como se estivessem presentes, compreende e imagina as coisas mais grandiosas, vê e conhece as mais pequenas; os seus pensamentos são elevados, extensos, justos e intelegíveis; nada escapa à sua perspicácia, que o leva sempre a descobrir a verdade, através das obscuridades que a escondem dos outros. Mas, todas estas grandes qualidades não impedem por vezes que o espírito pareça pequeno e fraco, quando o humor o domina.
Um belo espírito pensa sempre nobremente; produz com facilidade coisas claras, agradáveis e naturais; torna visíveis os seus aspectos mais favoráveis, e enfeita-os com os ornamentos que melhor lhes convêm; compreende o gosto dos outros e suprime dos seus pensamentos tudo o que é inútil ou lhe possa desagradar. Um espírito recto, fácil e insinuante sabe evitar e ultrapassar as dificuldades; adapta-se facilmente a tudo o que quer; sabe conhecer e acompanhar o espirito e o humor daqueles com quem priva e ao preocupar-se com os interesses dos amigos,
O Conceito de Nós Próprios
Cada homem, desde que sai da nebulose da infância e da adolescência, é em grande parte um produto do seu conceito de si mesmo. Pode dizer-se sem exagero mais que verbal, que temos duas espécies de pais: os nossos pais, propriamente ditos, a quem devemos o ser físico e a base hereditária do nosso temperamento; e, depois, o meio em que vivemos, e o conceito que formamos de nós próprios – mãe e pai, por assim dizer, do nosso ser mental definitivo.
Se um homem criar o hábito de se julgar inteligente, não obterá com isso, é certo, um grau de inteligência que não tem; mas fará mais da inteligência que tem do que se julgar estúpido. E isto, que se dá num caso intelectual, mais marcadamente se dá num caso moral, pois a plasticidade das nossas qualidades morais é muito mais acentuada que a das faculdades da nossa mente.
Ora, ordinariamente, o que é verdade da psicologia individual – abstraindo daqueles fenómenos que são exclusivamente individuais – é também verdade da psicologia colectiva. Uma nação que habitualmente pense mal de si mesma acabará por merecer o conceito de si que anteformou. Envenena-se mentalmente.
O primeiro passo passou para uma regeneração,
A Verdadeira Virtude
Não se pode pensar em virtude sem se pensar num estado e num impulso contrários aos de virtude e num persistente esforço da vontade. Para me desenhar um homem virtuoso tenho que dar relevo principal ao que nele é voluntário; tenho de, talvez em esquema exagerado, lhe pôr acima de tudo o que é modelar e conter. Pela origem e pelo significado não posso deixar de a ligar às fortes resoluções e à coragem civil. E um contínuo querer e uma contínua vigilância, uma batalha perpétua dada aos elementos que, entendendo, classifiquei como maus; requer as nítidas visões e as almas destemidas.
Por isso não me prende o menino virtuoso; a bondade só é nele o estado natural; antes o quero bravio e combativo e com sua ponta de maldade; assim me dá a certeza de que o terei mais tarde, quando a vontade se afirmar e a reflexão distinguir os caminhos, com material a destruir na luta heróica e a energia suficiente para nela se empenhar. O que não chora, nem parte, nem esbraveja, nem resiste aos conselhos há-de formar depois nas massas submissas; muitas vezes me há-de parecer que a sua virtude consiste numa falta de habilidade para urdir o mal,
Conselhos a um Príncipe
Vais pela primeira vez ficar com uma responsabilidade. Lembra-te que este primeiro passo na tua vida política, pode decidir de todo o teu futuro. Ouve pois os conselhos de um pai e do teu melhor amigo. Continua o mesmo sistema que tenho sempre seguido, não alardear de querer fazer muito porque então nada se faz, e mesmo tu és apenas um delegado meu por oito a dez dias. Sê modesto sem pareceres ignorante é a primeira qualidade para um príncipe. Trata a todos bem, não dês confianças a ninguém senão aos teus mestres naturais, que deves consultar, porque ninguém nasce ensinado. Desconfia de elogios rasgados, poucas vezes são sinceros. Sê o Carlos meu filho, não queiras nunca parecer mais do que isso, e todos te hão-de estimar e respeitar, porque os desejos e as vontades dos pais são credos para os bons filhos. Não quero senão o teu bem. Ouve-me mais — sobretudo, sê grave, mais ainda que se estivéssemos junto de ti; porque os príncipes se devem distinguir entre todos. Pode-se ser rapaz, divertir-se mas sempre que nos revista um carácter de seriedade que nesta época moderna nos faça reconhecer mais príncipe pelas virtudes e porte do que pela nascença.
Honra Aparente
A honra não consiste na opinião dos outros sobre o nosso valor, mas unicamente nas exteriorizações dessa opinião, pouco importando se a opinião externada de facto existe ou não, muito menos se ela tem fundamento. Por conseguinte, os outros podem nutrir a pior opinião a nosso respeito, por conta do nosso modo de vida, e podem desprezar-nos como bem entenderem; durante o tempo em que ninguém se atrever a expressá-la em voz alta, ela não prejudicará em nada a nossa honra. Mas, ao contrário, se mesmo com as nossas qualidades e acções compelirmos os outros a atribuir-nos elevada estima (pois isto não depende do seu arbítrio), então bastará que apenas um indivíduo – seja ele o pior e mais ignorante – exprima o seu desprezo por nós para que logo a nossa honra seja ferida e até perdida para sempre, caso não a reparemos.
Um demonstrativo supérfluo disso, ou seja, de que aqui não se trata da opinião de outrem, mas apenas da sua exteriorização, é que as ofensas podem ser retiradas ou, se necessário, pode-se pedir perdão, e então é como se elas jamais tivessem acontecido. A questão de saber se a opinião que produziu as ofensas também mudou e por que isso aconteceria não afecta em nada o caso: anula-se simplesmente a sua exteriorização e tudo fica bem.
Amor como Depravação do Nervo Óptico
Entendem cordatos fisiologistas que o amor, em certos casos, é uma depravação do nervo óptico. A imagem objectiva, que fere o órgão visual no estado patológico, adquire atributos fictícios. A alma recebe a impressão quimérica tal como sensório lha transmite, e com ela se identifica a ponto de revesti-la de qualidades e excelências que a mais esmerada natureza denega às suas criaturas dilectas. Os certos casos em que acima se modifica a generalidade da definição vêm a ser aqueles em que o bom senso não pode atinar com o porquê dalgumas simpatias esquisitas, extravagantes e estúpidas que nos enchem de espanto, quando nos não fazem estoirar de inveja.
E tanto mais se prova a referida depravação do nervo que preside às funções da vista quanto a alma da pessoa enferma, vítima de sua ilusão, nos parece propensa ao belo, talhada para o sublime e opulentada de dons e méritos que o mais digno homem requestaria com orgulho.
A Diferença entre Ficção e Crença
Não há nada mais livre do que a imaginação humana; embora não possa ultrapassar o stock primitivo de ideias fornecidas pelos sentidos externos e internos, ela tem poder ilimitado para misturar, combinar, separar e dividir estas ideias em todas as variedades da ficção e da fantasia imaginativa e novelesca. Ela pode inventar uma série de eventos com toda a aparência de realidade, pode atribuir-lhes um tempo e um lugar particulares, concebê-los como existentes e descrevê-los com todos os pormenores que correspondem a um facto histórico, no qual ela acredita com a máxima certeza. Em que consiste, pois, a diferença entre tal ficção e a crença?
Ela não se localiza simplesmente numa ideia particular anexada a uma concepção que obtém o nosso assentimento, e que não se encontra em nenhuma ficção conhecida. Pois, como o espírito tem autoridade sobre todas as suas ideias, poderia voluntariamente anexar esta ideia particular a uma ficção e, por conseguinte, seria capaz de acreditar no que lhe agradasse, embora se opondo a tudo que encontramos na experiência diária. Podemos, quando pensamos, juntar a cabeça de um homem ao corpo de um cavalo, mas não está em nosso poder acreditar que semelhante animal tenha alguma vez existido.
Ver Claro é não Agir
O governo do mundo começa em nós mesmos. Não são os sinceros que governam o mundo, mas também não são os insinceros. São os que fabricam em si uma sinceridade real por meios artificiais e automáticos; essa sinceridade constitui a sua força, e é ela que irradia para a sinceridade menos falsa dos outros. Saber iludir-se bem é a primeira qualidade do estadista. Só aos poetas e aos filósofos compete a visão prática do mundo, porque só a esses é dado não ter ilusões. Ver claro é não agir.
A Sociabilidade é Proporcional à Vulgaridade
O homem inteligente aspirará, antes de tudo, à ausência de dor, à serenidade, ao sossego e ao ócio, logo, procurará uma vida tranquila, modesta e o menos conflituosa possível; por conseguinte, após travar algum conhecimento com aqueles que chamamos de homens, escolherá o reatraimento e, no caso de um grande espírito, até a solidão. Pois, quanto mais alguém tem em si mesmo, menos precisa do mundo exterior e menos também os outros lhe podem ser úteis. Por isso, a eminência do espírito conduz à insociabilidade. Sim, se a qualidade da sociedade pudesse ser substituída pela quantidade, valeria a pena viver até no grande mundo, mas infelizmente cem néscios empilhados não dão um único homem razoável. Já aquele que está no outro extremo, assim que a necessidade lhe permitir recobrar o ânimo, procurará passatempo e companhia a qualquer preço, e a tudo se acomodará facilmente, de nada fugindo a não ser de si.
Pois é na solidão, onde cada um está entregue a si mesmo, que se mostra o que ele tem em si mesmo. Nela, sob a púrpura, o simplório suspira, carregando o fardo irremovível da sua mísera individualidade, enquanto o mais talentoso povoa e vivifica com os seus pensamentos o ambiente mais ermo.
O Homem é o Animal Menos Preparado
A capacidade do homem para o pensamento abstracto, que parece faltar à maioria dos outros mamíferos, conferiu-lhe sem dúvida o seu actual domínio sobre a superfície da Terra – um domínio disputado apenas por centenas de milhares de tipos de insectos e organismos microscópicos. Este pensamento abstracto é o responsável pela sua sensação de superioridade e pelo que, sob esta sensação, corresponde a uma certa medida de realidade, pelo menos dentro de estreitos limites. Mas o que é frequentemente subestimado é o facto de que a capacidade de desempenhar um acto não é, de forma alguma, sinónima de seu exercício salubre. É fácil observar que a maior parte do pensamento do homem é estúpida, sem sentido e injuriosa para ele. Na realidade, de todos os animais, ele parece o menos preparado para tirar conclusões apropriadas nas questões que afectam mais desesperadamente o seu bem-estar.
Tente imaginar um rato, no universo das ideias dos ratos, chegando a noções tão ocas de plausibilidade como, por exemplo, o Swedenborgianismo, a homeopatia ou a telepatia mental. O instinto natural do homem, de facto, nunca se dirige para o que é sólido e verdadeiro; prefere tudo que é especioso e falso. Se uma grande nação moderna se confrontar com dois problemas antagónicos – um deles baseado em argumentos prováveis e racionais,
Ser Português, Ainda
Para ser português, ainda, vive-se entre letras de poemas e esperanças, cantigas e promessas, de passados esquecidos e futuros desejados, sem presente, sem pensamento, sem Portugal. Para ser português, ainda, aprende-se a existir no gume da tristeza, como um equilibrista num andaime de navalhas levantadas, numa obra que se vai construindo sob uma arquitectura de demolição. Tínhamos direito a um Portugal inteiro, com povo e com a terra, mas o povo enlouqueceu e a terra foi arrasada e tudo o que era pátria, doce e atrevida, se afasta à medida que olhamos para ela, tal é a ânsia de apagamento e de perdição. Restam-nos sons e riscos. Portugal encolheu-se. Escondeu-se nos poetas e cantores. Recolheu-se nas vozes fundas de onde nasceu. Portugal abrigou-se em portugueses e portuguesas nos quais uma ideia de Portugal nunca se perdeu.
Para se ser português, ainda, é preciso estreitar os olhos e molhar a garganta com vinho tinto para poder gritar que isto assim não é Portugal, não é país, não é nada. Torna-se cada vez mais difícil que o povo e a terra e a ideia se possam alguma vez reunir.
É preciso defender violentamente as instituições: a Universidade, o Parlamento,
A Moralidade Pública Degradada
As crianças ficam todas contentes quando encontram na praia alguns calhaus coloridos; nós preferimos enormes colunas variegadas, importadas das areias do Egipto ou dos desertos do Norte de África para a construção de algum pórtico ou de um salão de banquetes com capacidade para uma multidão. Olhamos com admiração paredes recobertas de placas de mármore, embora cientes do material que lá está por baixo. Iludimos os nossos próprios olhos: quando recobrimos os tectos a ouro o que fazemos senão deleitar-nos com uma mentira ? Sabemos bem que por baixo desse ouro se oculta reles madeira! Mas não são só as paredes ou os tectos que se recobrem de uma ligeira camada: também a felicidade destes aparentes grandes da nossa sociedade é uma felicidade «dourada»! Observa atentamente, e verás a corrupção que se esconde sob essa leve capa de dignidade. Desde que o dinheiro (que tanto atrai a atenção de inúmeros magistrados e juízes e tantos mesmo promove a magistrados e juízes!…), desde que o dinheiro, digo, começou a merecer honras, a honra autêntica começou a perder terreno; alternadamente vendedores ou objectos postos à venda, habitua-mo-nos a perguntar pela quantidade, e não pela qualidade das coisas. Somos boas pessoas por interesse,