Sobre a Diferença dos EspĂritos
Apesar de todas as qualidades do espĂrito se poderem encontrar num grande espĂrito, algumas há, no entanto, que lhe sĂŁo prĂłprias e especĂficas: as suas luzes nĂŁo tĂŞm limites, actua sempre de igual modo e com a mesma actividade, distingue os objectos afastados como se estivessem presentes, compreende e imagina as coisas mais grandiosas, vĂŞ e conhece as mais pequenas; os seus pensamentos sĂŁo elevados, extensos, justos e intelegĂveis; nada escapa Ă sua perspicácia, que o leva sempre a descobrir a verdade, atravĂ©s das obscuridades que a escondem dos outros. Mas, todas estas grandes qualidades nĂŁo impedem por vezes que o espĂrito pareça pequeno e fraco, quando o humor o domina.
Um belo espĂrito pensa sempre nobremente; produz com facilidade coisas claras, agradáveis e naturais; torna visĂveis os seus aspectos mais favoráveis, e enfeita-os com os ornamentos que melhor lhes convĂŞm; compreende o gosto dos outros e suprime dos seus pensamentos tudo o que Ă© inĂştil ou lhe possa desagradar. Um espĂrito recto, fácil e insinuante sabe evitar e ultrapassar as dificuldades; adapta-se facilmente a tudo o que quer; sabe conhecer e acompanhar o espirito e o humor daqueles com quem priva e ao preocupar-se com os interesses dos amigos, faz progredir e firmar os seus. Um bom espĂrito vĂŞ todas as coisas como devem ser vistas; aprecia-as como merecem, sabe escolher o lado mais vantajoso, e se defende com firmeza os seus pensamentos, Ă© porque lhes conhece a força e a razĂŁo.
Há uma diferença entre um espĂrito Ăştil e um espĂrito prático: podemos envolver-nos em negĂłcios sem pensar apenas nos nossos interesses particulares; há pessoas hábeis em tudo o que nĂŁo lhes diz respeito, e muito desastradas em tudo o que lhes respeita, mas há outras que, pelo contrário, possuem uma habilidade que se limita ao que lhes toca directamente e que sabem tirar partido de tudo.
Podemos ter no conjunto um ar sĂ©rio e dizer por vezes coisas agradáveis e divertidas; esta espĂ©cie de espĂrito convĂ©m a toda a gente e em todas as idades da vida. Os jovens tĂŞm vulgarmente um espĂrito divertido e trocista, mas sem seriedade, o que por vezes os tornam incĂłmodos. Nada Ă© mais difĂcil do que querer agradar sempre, e os aplausos que muitas vezes recebemos por divertir os outros nĂŁo justificam que nos arrisquemos Ă vergonha de os aborrecer quando estĂŁo de mau humor. A ironia Ă© uma das qualidades de espĂrito mais agradáveis e mais perigosas: agrada sempre quando Ă© delicada; mas receamos sempre aqueles que a usam demasiado. No entanto, o gracejo pode permitir-se, quando nĂŁo Ă© acompanhado de malĂcia, e quando fazemos participar nele as prĂłprias pessoas de quem falamos.
É difĂcil ter um espirito sarcástico sem fingir alegria ou sem se ser trocista; Ă© necessário muito acerto para se ser irĂłnico sem cair num destes extremos. A ironia Ă© uma lufada de alegria que enche a imaginação e lhe faz ver em caricatura os objectos Ă sua volta; o humor adiciona-lhe mais ou menos doçura ou azedume; há uma forma de ironia delicada e lisonjeira que apenas aflora os defeitos que as pessoas estĂŁo dispostas a confessar, que sabe disfarçar os elogios sob a aparĂŞncia de crĂticas e revela o que eles tĂŞm de favorável simulando pretender escondĂŞ-lo.
Um espĂrito fino e um espĂrito finĂłrio sĂŁo muito diferentes. O primeiro agrada sempre; Ă© penetrante, tem pensamentos delicados e apercebe-se das coisas mais subtis. Um espĂrito finĂłrio nunca funciona a direito, serve-se de rodeios e desvios para atingir os seus objectivos; esta conduta cedo se descobre, Ă© sempre temĂvel e quase nunca leva Ă s coisas grandes.Há alguma diferença entre um espĂrito fogoso e um espĂrito brilhante. Um espirito fogoso vai mais longe e com maior rapidez; um espirito brilhante possui vivacidade, encanto e acerto.
A doçura de espĂrito tem algo de fácil e acomodatĂcio, que agrada sempre, quando nĂŁo Ă© insĂpida.
Um espĂrito minucioso aplica-se com ordem e regra a todas as particulariedades dos assuntos que se lhe apresentam. Esta aplicação limita-o vulgarmente a pequenas coisas; nĂŁo Ă©, no entanto, incompatĂvel com vistas mais largas, e quando estas qualidades coincidem num mesmo espĂrito, elevam-no infinitamente acima dos outros.
Abusou-se da expressĂŁo «belo espĂrito», e embora tudo o que ficou dito sobre as diferentes qualidades do espĂrito se possa aplicar a um belo espirito, como esta designação foi entretanto aplicada a um sem nĂşmero de maus poetas e autores enfadonhos, servimo-nos mais vezes dela para ridicularizar do que para louvar.
Apesar de existirem vários epĂtetos para qualificar o espĂrito que parecem semelhantes, o tom e a maneira de os pronunciar fazem toda a diferença; mas como os tons e as maneiras nĂŁo podem escrever-se, nĂŁo entrarei em pormenores que seria impossĂvel explicar bem. A maneira como nos exprimimos vulgarmente Ă© bastante esclarecedora e ao dizermos que um homem tem espĂrito, que tem bastante espĂrito, que tem muito espĂrito e que tem bom espĂrito, sĂł os tons e as maneiras podem estabelecer a diferença entre estas expressões aparentemente semelhantes no papel o que, no entanto, exprimem estados de espĂrito muito diferentes.
Diz-se ainda que um homem sĂł tem uma espĂ©cie de espĂrito, que tem muitas espĂ©cies de espĂrito e que tem todas as espĂ©cies de espĂrito. Pode ser-se tolo com muito espĂrito e nĂŁo ser tolo com pouco.
Ter muito espĂrito Ă© uma expressĂŁo equĂvoca: pode compreender todas as espĂ©cies de espĂrito de que acabamos de falar, mas pode tambĂ©m nĂŁo se referir a nenhuma em particular. Podemos, Ă s vezes, parecer ter espĂrito naquilo que dizemos sem o termos no nosso comportamento; podemos ter um espĂrito limitado; um espĂrito pode ser adequado a certas coisas e nĂŁo o ser a outras; podemos ter muito espĂrito e nĂŁo servir para nada, e com muito espĂrito somos Ă s vezes muito incĂłmodos. Parece, no entanto, que o maior mĂ©rito desta espĂ©cie de espĂrito Ă© o de agradar na conversação.
Embora os produtos do espĂrito sejam infinitos, podemos, a meu ver, distingui-los da seguinte forma: há coisas tĂŁo belas que toda a gente Ă© capaz de ver e de lhes sentir a beleza, há outras que sĂŁo belas e aborrecem, outras ainda que sĂŁo belas, que toda a gente sente e admira, embora nem todos saibam muito bem porquĂŞ; há outras que sĂŁo tĂŁo finas e delicadas que poucas pessoas sĂŁo capazes de lhes distinguir todas as belezas, outras há que nĂŁo sendo perfeitas sĂŁo ditas com tanta arte, defendidas e conduzidas com tanta razĂŁo e tanta graça, que merecem ser admiradas.