Textos sobre Situação

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Textos de situação escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

A Honra e a Vergonha

A raiz e a origem dos sentimentos de honra e vergonha, inerentes a todo o homem que não é totalmente corrompido, e o supremo valor atribuído ao primeiro reside no que vem a seguir. O homem, por si só, consegue muito pouco e é um Robinson abandonado: apenas em comunidade com os outros ele é e consegue muito. Ele dá-se conta de tal situação a partir do momento em que a sua consciência começa, de algum modo, a desenvolver-se, e logo que nasce nele a aspiração por ser considerado um membro útil da sociedade, portanto, alguém capaz de cooperar como homem pleno e, por conseguinte, tendo o direito de participar das vantagens da comunidade humana. Ele consegue-o realizando, em primeiro lugar, aquilo que se exige e espera em geral de cada um, depois, realizando aquilo que se exige e espera dele na posição especial que ocupa. Mas logo ele reconhece que, nesse caso, o importante não é o que ele representa na sua própria opinião, mas na opinião dos outros.
Por conseguinte, tal é a origem da sua aspiração zelosa pela opinião favorável de outrem, e assim também surge o valor supremo nela depositado. Esses dois elementos aparecem na espontaneidade de um sentimento inato,

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A Diferença entre Ficção e Crença

Não há nada mais livre do que a imaginação humana; embora não possa ultrapassar o stock primitivo de ideias fornecidas pelos sentidos externos e internos, ela tem poder ilimitado para misturar, combinar, separar e dividir estas ideias em todas as variedades da ficção e da fantasia imaginativa e novelesca. Ela pode inventar uma série de eventos com toda a aparência de realidade, pode atribuir-lhes um tempo e um lugar particulares, concebê-los como existentes e des­crevê-los com todos os pormenores que correspondem a um facto histórico, no qual ela acredita com a máxima certeza. Em que consiste, pois, a diferença entre tal ficção e a crença?
Ela não se localiza sim­plesmente numa ideia particular anexada a uma concepção que obtém o nosso assentimento, e que não se encontra em nenhuma ficção conhecida. Pois, como o espírito tem autoridade sobre todas as suas ideias, poderia voluntariamente anexar esta ideia particular a uma ficção e, por conseguinte, seria capaz de acreditar no que lhe agradasse, embora se opondo a tudo que encontramos na experiência diária. Po­demos, quando pensamos, juntar a cabeça de um homem ao corpo de um cavalo, mas não está em nosso poder acreditar que semelhante animal tenha alguma vez existido.

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O Homem não Deseja a Paz

Que estranho bicho o homem. O que ele mais deseja no convívio inter-humano não é afinal a paz, a concórdia, o sossego colectivo. O que ele deseja realmente é a guerra, o risco ao menos disso, e no fundo o desastre, o infortúnio. Ele não foi feito para a conquista de seja o que for, mas só para o conquistar seja o que for. Poucos homens afirmaram que a guerra é um bem (Hegel, por exemplo), mas é isso que no fundo desejam. A guerra é o perigo, o desafio ao destino, a possibilidade de triunfo, mas sobretudo a inquietação em acção. Da paz se diz que é «podre», porque é o estarmos recaídos sobre nós, a inactividade, a derrota que sobrevém não apenas ao que ficou derrotado, mas ainda ou sobretudo ao que venceu. O que ficou derrotado é o mais feliz pela necessidade iniludível de tentar de novo a sorte. Mas o que venceu não tem paz senão por algum tempo no seu coração alvoroçado. A guerra é o estado natural do bicho humano, ele não pode suportar a felicidade a que aspirou. Como o grupo de futebol, qualquer vitória alcançada é o estímulo insuportável para vencer outra vez.

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Felicidade Simplificada

Se quisermos avaliar a situação de uma pessoa pela sua felicidade, deve-se perguntar não por aquilo que a diverte, mas pelo que a aflige. Quanto mais insignificante for aquilo que, tomado em si mesmo, a aflige, tanto mais ela é feliz, pois é preciso um estado de bem-estar para impressionar-se com bagatelas: na infelicidade, nunca as sentimos.

Guardemo-nos de erguer a felicidade da nossa vida sobre um amplo fundamento, exigindo muito dessa felicidade: pois, estando apoiada sobre tal base, ela desaba mais facilmente, já que oferece muito mais oportunidades para acidentes, que não tardam em faltar. Portanto, a esse respeito, ocorre com o edifício da nossa felicidade o oposto do que ocorre com todos os demais, que se apoiam mais firmemente sobre um amplo fundamento.
Reduzir ao máximo as expectativas em relação aos nossos meios, sejam eles quais forem, é, pois, o caminho mais seguro para escaparmos de uma grande infelicidade.

Só Sente Ansiedade pelo Futuro aquele cujo Presente é Vazio

O principal defeito da vida é ela estar sempre por completar, haver sempre algo a prolongar. Quem, todavia, quotidianamente der à própria vida “os últimos retoques” nunca se queixará de falta de tempo; em contrapartida, é da falta de tempo que provém o temor e o desejo do futuro, o que só serve para corroer a alma. Não há mais miserável situação do que vir a esta vida sem se saber qual o rumo a seguir nela; o espírito inquieto debate-se com o inelutável receio de saber quanto e como ainda nos resta para viver. Qual o modo de escapar a uma tal ansiedade? Há um apenas: que a nossa vida não se projecte para o futuro, mas se concentre em si mesma. Só sente ansiedade pelo futuro aquele cujo presente é vazio. Quando eu tiver pago tudo quanto devo a mim mesmo, quando o meu espírito, em perfeito equilíbrio, souber que me é indiferente viver um dia ou viver um século, então poderei olhar sobranceiramente todos os dias, todos os acontecimentos que me sobrevierem e pensar sorridentemente na longa passagem do tempo! Que espécie de perturbação nos poderá causar a variedade e instabilidade da vida humana se nós estivermos firmes perante a instabilidade?

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Regras de Conduta para Viver sem Sobressaltos

Vou indicar-te quais as regras de conduta a seguir para viveres sem sobressaltos. (…) Passa em revista quais as maneiras que podem incitar um homem a fazer o mal a outro homem: encontrarás a esperança, a inveja, o ódio, o medo, o desprezo. De todas elas a mais inofen­siva é o desprezo, tanto que muitas pessoas se têm sujeitado a ele como forma de passarem despercebidas. Quem despreza o outro calca-o aos pés, é evidente, mas passa adiante; ninguém se afadiga teimosamente a fazer mal a alguém que despreza. É como na guerra: ninguém liga ao soldado caído, combate-se, sim, quem se ergue a fazer frente.
Quanto às esperanças dos desonestos, bastar-te-á, para evitá-las, nada possuíres que possa suscitar a pérfida cobiça dos outros, nada teres, em suma, que atraia as atenções, porquanto qualquer objecto, ainda que pouco valioso, suscita desejos se for pouco usual, se for uma raridade. Para escapares à inveja deverás não dar nas vistas, não gabares as tuas propriedades, saberes gozar discretamente aquilo que tens. Quanto ao ódio, ou derivará de alguma ofensa que tenhas feito (e, neste caso, bastar-te-á não lesares ninguém para o evitares), ou será puramente gratuito, e então será o senso comum quem te poderá proteger.

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Visitar e Ser Visitado

Parece-me quase natural o facto de vermos muitos defeitos nas nossas visitas e de fazermos juízos pouco agradáveis mal elas saem. Porque temos, digamos assim, o direito de as avaliar segundo os nossos padrões e, em tais situações, mesmo as pessoas compreensivas e moderadas dificilmente se abstêm de fazer uma crítica rigorosa.
Pelo contrário, quando se foi a casa de alguém e se viu essa pessoa no seu ambiente, no meio daquilo que lhe é habitual, numa situação que não pode ser outra, quando se viu como essas circunstâncias influem na pessoa ou como ela se lhes adapta, só por má vontade ou por manifesta incompreensão se pode ridicularizar aquilo que, enquanto lá estávamos, não pôde deixar de nos parecer, por mais que uma razão, digno de ser respeitado.

A Única Alegria Neste Mundo é a de Começar

A única alegria neste mundo é a de começar. É belo viver, porque viver é começar, sempre, a cada instante. Quando esta sensação desapaece – prisão, doença, hábito, estupidez – deseja-se morrer.
É por isso que quando uma situação dolorosa se reproduz de modo idêntico – parece idêntica – nada apaga o horror que tal coisa nos provoca.
O princípio acima enunciado não é, portanto, próprio de um viveur. Porque há mais hábito na experiência a todo o custo (cfr, o antipático «viajar a todo o custo») do que na charneira normal aceite com o sentido do dever e vivida com entusiasmo e inteligência. Estou convencido de que há mais hábito nas aventuras de do que num bom casamento.
Porque o próprio da aventura é conservar uma reserva mental de defesa; é por isso que não existem boas aventuras. Só é boa aventura aquela em que nos abandonamos: o matrimónio, em suma, talvez até aqueles que são feitos no céu.
Quem não sente o perene recomeçar que vivifica a existência normal de um casal é, no fundo, um parvo que, por mais que diga, não sente, sequer, um verdadeiro recomeçar em cada aventura.
A lição é sempre a mesma: atirarmo-nos para a frente e saber suportar o castigo.

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Portugal Vive em Total Dependência

Um país como Portugal, e não é o único nesta situação, que não tem uma ideia própria de futuro para toda a colectividade, vive numa situação de total dependência. Não temos mais ideias do que aquelas que nos dizem que devemos ter. A União Europeia dita-nos o que devemos fazer em todos os campos da vida. Encaminhamo-nos para a pior das mortes: a morte por falta de vontade, por abdicação. Esta renúncia é também a morte da cultura. Por isso creio que um país morto, como Portugal, não pode fazer uma cultura viva.

A Falácia da Comparação

Os homens não se conhecem uns aos outros com facilidade, ainda que ponham nisso o melhor da sua vontade e das suas intenções. Porque há que contar sempre com a má vontade que tudo distorce.
Conhecer-nos-íamos melhor uns aos outros se não estivéssemos sempre a querer comparar-nos uns com os outros. Decorre daí que as pessoas fora do vulgar ficam em pior situação, porque, como as outras não chegam a poder comparar-se com elas, tornam-se alvo de demasiada atenção.

Fragmento do Homem

Que tempo é o nosso? Há quem diga que é um tempo a que falta amor. Convenhamos que é, pelo menos, um tempo em que tudo o que era nobre foi degradado, convertido em mercadoria. A obsessão do lucro foi transformando o homem num objecto com preço marcado. Estrangeiro a si próprio, surdo ao apelo do sangue, asfixiando a alma por todos os meios ao seu alcance, o que vem à tona é o mais abominável dos simulacros. Toda a arte moderna nos dá conta dessa catástrofe: o desencontro do homem com o homem. A sua grandeza reside nessa denúncia; a sua dignidade, em não pactuar com a mentira; a sua coragem, em arrancar máscaras e máscaras.
E poderia ser de outro modo? Num tempo em que todo o pensamento dogmático é mais do que suspeito, em que todas as morais se esbarrondam por alheias à «sabedoria» do corpo, em que o privilégio de uns poucos é utilizado implacavelmente para transformar o indivíduo em «cadáver adiado que procria», como poderia a arte deixar de reflectir uma tal situação, se cada palavra, cada ritmo, cada cor, onde espírito e sangue ardem no mesmo fogo, estão arraigados no próprio cerne da vida?

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A Necessidade de Juízos de Valor

Qualquer que seja a sua situação, um homem tem necessidade de juízos de valor, mercê dos quais justifica – aos seus próprios olhos, e sobretudo aos dos que o cercam – os seus actos, as suas intenções e os seus estados; melhor dizendo: a maneira de se glorificar a si próprio.
Toda a moral natural exprime a satisfação que uma certa espécie de homens experimenta. Mas, tendo nós necessidade de elogios, também a temos de uma tábua concordante de valores, na qual os nossos actos mais fáceis figurem como os que exprimem a nossa verdadeira força e sejam os de mais elevada estima. É naquilo em que somos mais fortes que queremos ser vistos e honrados.

Contra a Ansiedade

Sempre que te aconteça alguma coisa contrária à tua expectativa diz a ti mesmo que os deuses tomaram uma decisão superior! Com semelhante disposição de espírito, nada terás a temer. Esta disposição de espírito consegue-se pensando na instabilidade da vida humana antes de a experimentarmos em nós, olhando para os filhos, a mulher, os bens como algo que não possuiremos para sempre, e evitando imaginarmo-nos mais infelizes um dia que deixemos de os possuir. Será a ruína do espírito andarmos ansiosos pelo futuro, desgraçados antes da desgraça, sempre na angústia de não saber se tudo o que nos dá satisfação nos acompanhará até ao último dia; assim, nunca conseguiremos repouso e, na expectativa do que há-de vir, deixaremos de aproveitar o presente. Situam-se, de facto, ao mesmo nível a dor por algo perdido e o receio de o perder. Isto não quer dizer que te esteja incitando à apatia! Pelo contrário, procura evitar as situações perigosas; procura prever tudo quanto seja previsível; procura conjecturar tudo o que pode ser-te nocivo muito antes de que te suceda, para assim o evitares. Para tanto, ser-te-á da maior utilidade a autoconfiança, a firmeza de ânimo apta a tudo enfrentar. Quem tem ânimo para suportar a fortuna é capaz de precaver-se contra ela;

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A Vida Acontece Agora

Identificar-se com a mente é ser aprisionado no tempo: a compulsão de viver quase exclusivamente das recordações e por antecipação. Esta situação gera uma preocupação interminável com o passado e com o futuro e uma falta de vontade de dignificar e reconhecer o momento presente e permitir que este seja. A compulsão nasce porque o passado lhe dá uma identidade e o futuro contém a promessa de salvação, de realização sob qualquer forma. Ambos são ilusões.

Quanto mais a pessoa se concentra no tempo (passado e futuro), mais sente falta do Agora, a coisa mais preciosa que existe. Porque é o Agora a coisa mais preciosa que existe? Primeiro, porque é a única. É tudo o que existe. O presente eterno é o espaço no âmbito do qual a sua vida se desenrola, o único fator que permanece constante. A vida acontece agora. Nunca houve uma altura em que a sua vida não fosse no agora, nem nunca haverá.
Em segundo lugar, o Agora é o único ponto que pode levar o leitor além dos limites circunscritos da mente. É o seu único ponto de acesso ao mundo eterno e sem forma do Ser.

Alguma vez o leitor experienciou,

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O Que Devemos Sentir

Todas as pessoas devem ter experimentado a sensação desagradável que se tem nas estações de caminho de ferro. Vamos despedir-nos de alguém. A pessoa já entrou no comboio, mas ele demora a partir. Ali ficam as duas pessoas, uma na plataforma e a outra à janela, esforçando-se por conversar, mas de repente não têm nada para dizer.
Isto, evidentemente, resulta de não podermos sentir o que queremos. A situação impõe-nos um determinado sentimento. E quem não experimentou aquele tremendo alívio quando o comboio finalmente parte?
Ou nos funerais. Quando alguém morre ou adoece, quando surgem as desilusões, espera-se sempre que sintamos determinadas coisas.
Em todas as situações, excepto as mais quotidianas, as mais neutras, há uma pressão que se exerce sobre nós, que nos dita a forma como devemos conduzir-nos, aquilo que devemos sentir, E se examinarmos bem o fenómeno, verificamos, não raras vezes, que esses papéis nos são atribuídos por romances, filmes ou peças de teatro que vimos há muito tempo.
Quando somos realmente confrontados com situações invulgares (por exemplo, rivalidades que prevíamos e não se verificam, e em vez disso se transformam num amor que nos deixa sós), a primeira coisa a que nos agarramos são esses padrões sentimentais livrescos.

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A Felicidade não Tem Medida

Não duvidas de que a vida feliz seja o supremo bem; logo, se a vida possui o supremo bem, então é sumamente feliz. E tal como o supremo bem não pode receber qualquer acréscimo (o que haveria acima do supremo?!), também a vida feliz o não pode, pois a felicidade não existe sem o supremo bem. Repara: se disseres que alguém é “mais” feliz, tornarás possível que se diga também “muito mais”; e assim irás fazendo inúmeras gradações no supremo bem, quando por “sumo bem” eu entendo tudo o que não tem valor algum acima de si. Se alguém é menos feliz do que um outro, segue-se que preferirá a vida desse outro (por ser mais feliz) à sua própria; ora, um homem feliz não considera nada preferível à sua vida.
Qualquer destas duas situações é inaceitável: existir algo que o homem feliz preferiria ter em lugar daquilo que tem, ou não preferir ter algo que seja melhor do que aquilo que tem. De facto, quanto mais um homem é avisado, tanto mais se procurará chegar ao que há de melhor, e ambicionará alcançá-lo seja de que modo for. Ora, como pode ser feliz alguém que pode, que deve mesmo,

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Todas as Nossas Paixões se Justificam a Si Próprias

Existem duas ocasiões distintas em que examinamos a nossa própria conduta e buscamos vê-la sob a luz em que o espectador imparcial a veria: primeiro, quando estamos prestes a agir; e, segundo, depois que agimos. Em ambos os casos os nossos juízos tendem a ser bastante parciais, mas eles tendem a tornar-se ainda mais parciais quando seria da maior importância que não fossem. Quando estamos prestes a agir, a veemência da paixão raramente nos permitirá considerá-la com a isenção de uma pessoa neutra. As violentas emoções que nesse momento nos agitam distorcem os nossos juízos sobre as coisas, mesmo quando buscamos colocar-nos na situação de outra pessoa. (…) Por essa razão, como diz Malebranche, todas as nossas paixões se justificam a si próprias, e parecem razoáveis e proporcionais aos seus objectos enquanto nós estivermos a senti-las. (… ) A opinião que cultivamos do nosso próprio carácter depende inteiramente dos nossos juízos acerca da nossa conduta passada. Mas é tão desagradável pensarmos mal de nós mesmos que amiúde afastamos propositadamente o nosso olhar das circunstâncias que poderiam tornar o julgamento desfavorável. (…) Esse auto-engano, essa fraqueza fatal dos homens, é a fonte de metade das desordens da vida humana. Se pudéssemos ver-nos como os outros nos vêem,

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Fazer Cumprir quem não Cumpre

Sistemáticamente usados, o adiamento, a prorrogação, a isenção, a dispensa dos preceitos legais têm a tal ponto deseducado o espírito público que a maior parte da gente não acredita que a lei venha a ser cumprida ao menos «tão inteiramente como nela se contém». Do uso e abuso de tais processos resulta que no nosso País quem se apressa a cumprir a lei, a cumpri-la rigorosamente, lisamente, a fazer uma declaração exacta e em devido tempo, fica sempre em condições inferiores a todos os outros que não fizeram o mesmo. Pois é absolutamente preciso, «por uma questão de educação e de ordem», que comecemos de vez a praticar o sistema inverso e a fazer com que quem não cumpre — por mais razoável que seja o motivo da falta —- fique em situação pior que os que cumprem.

O Que é a Religião ?

De início, portanto, em vez de perguntar o que é religião, eu preferiria indagar o que caracteriza as aspirações de uma pessoa que me dá a impressão de ser religiosa: uma pessoa religiosamente esclarecida parece-me ser aquela que, tanto quanto lhe foi possível, libertou-se dos grilhões, dos seus desejos egoístas e está preocupada com pensamentos, sentimentos e aspirações a que se apega em razão do seu valor suprapessoal. Parece-me que o que importa é a força desse conteúdo suprapessoal, e a profundidade da convicção na superioridade do seu significado, quer se faça ou não alguma tentativa de unir esse conteúdo com um Ser divino, pois, de outro modo, não poderíamos considerar Buda e Espinoza como personalidades religiosas. Assim, uma pessoa religiosa é devota no sentido de não ter nenhuma dúvida quanto ao valor e eminência dos objectivos e metas suprapessoais que não exigem nem admitem fundamentação racional. Eles existem, tão necessária e corriqueiramente quanto ela própria.

Nesse sentido, a religião é o antiquíssimo esforço da humanidade para atingir uma clara e completa consciência desses valores e metas e reforçar e ampliar incessantemente o seu efeito. Quando concebemos a religião e a ciência segundo estas definições, um conflito entre elas parece impossível.

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O Egoísmo da Espécie

Os amantes querem pertencer um ao outro, e para toda a eternidade. Exprimem-se de maneira assaz curiosa quando se abraçam num instante de profunda intimidade para gozarem assim do máximo prazer e da mais alta felicidade que o amor lhes pode dar. Mas o prazer é egoísta. Não há dúvida que do prazer dos amantes não se pode dizer que seja egoísta, porque é recíproco; mas o prazer que ambos sentem na união é absolutamente egoísta, se for verdade que nesse abraço já se confundem num só e mesmo ser. Mas estão enganados; porque, no mesmo instante, a espécie triunfa sobre os indivíduos; domina-os, rebaixa-os, ao seu serviço.

Julgo isto muito mais ridículo do que a situação considerada cómica por Aristófanes. Porque o cómico desta bipartição reside em ser contraditória, o que Aristófanes não salientou suficientemente. Quem vê um homem, crê ver um ser inteiro e independente, um indivíduo, o que toda a gente admite até que observe que, apoderado pelo amor, ele não passa de uma metade que corre à procura da outra metade.
Nada há que seja cómico na metade de uma maçã; cómico seria tomar por maçã inteira a metade de uma maçã; não há contradição no primeiro caso,

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