Serenidade da Alma
Não examinar o que se passa na alma dos outros dificilmente fará o infortúnio de alguém; mas os que não seguem com atenção os movimentos das suas próprias almas são fatalmente desditosos.
(…) Ser semelhante ao promontório contra o qual vêm quebrar as vagas e que permanece firme enquanto, à sua volta, espumeja o furor das ondas.
– Que desgraça ter-me acontecido isto!
Não, não é assim que se deve falar, mas desta maneira:
– Que felicidade, apesar do que me aconteceu, eu não me mortificar, não me deixar abater pelo presente nem me assustar pelo futuro!
Na verdade, coisa idêntica poderia suceder a toda a gente, mas bem poucos a suportariam sem se mortificarem. Por que razão considerar este acontecimento infortunado e aquele outro feliz?
Em resumo, chamas de infortúnio para o ser humano aquilo que não é um obstáculo à sua natureza? E consideras um obstáculo à natureza do ser humano aquilo que não vai contra a vontade da sua natureza? Que queres, então? Conheces bem essa vontade; aquilo que te sucede impede-te, por acaso, de ser justo, magnânimo, sóbrio, reflectido, prudente, sincero, modesto, livre, e de possuir as outras virtudes cuja posse assegura à natureza do ser humano a felicidade que lhe é própria?
Textos sobre Verdade
672 resultadosComo Lidar com a Adulação
Não quero deixar de abordar uma questão que reputo de importante e um erro do qual os principes com dificuldade se guardam, se não são prudentes ou se não têm cuidado nas escolhas que fazem. Trata-se dos aduladores, espécie de que as cortes se encontram cheias. É que os homens comprazem-se de tal modo com as coisas que lhes dizem respeito e de um modo tão ilusório, que só muito dificilmente se precavem contra esta peste. E querendo precaver-se, corre o risco de se tornar desprezível. Porque não tendes outro modo de vos protegerdes da adulação a não ser logrando convencer os outros homens de que vos não ofendem dizendo a verdade. Todavia, quando alguém vos diz a verdade, sentis a falta da reverência.
Consequentemente, um príncipe prudente deve dispor de uma terceira via, escolhendo no seu estado homens sábios, devendo só a esses conceder livre arbítrio para lhe falarem verdade. E, apenas, sobre as coisas que lhes perguntardes, não de outras. Mas deve fazer perguntas sobre todas as coisas, ouvir as suas opiniões e, depois, decidir por si próprio, a seu modo. E com estes conselhos e com cada um dos conselheiros, portar-se de maneira que cada um deles perceba que,
Os Amantes não Contam Nada de Novo uns aos Outros
A alma só acolhe o que lhe pertence; de certo modo, ela já sabe de antemão tudo aquilo por que vai passar. Os amantes não contam nada de novo uns aos outros, e para eles também não existe reconhecimento. De facto, o amante não reconhece no ser que ama nada a não ser que é transportado por ele, de modo indescritível, para um estado de dinamismo interior. E reconhecer uma pessoa que não ama significa para ele trazer o outro ao amor como uma parede cega sobre a qual cai a luz do Sol. E reconhecer uma coisa inerte não significa identificar os seus atributos uns a seguir aos outros, mas sim que um véu cai ou uma fronteira se abre, e nenhum deles pertence ao mundo da percepção. Também o inanimado, desconhecido como é, mas cheio de confiança, entra no espaço fraterno dos amantes. A natureza e o singular espírito dos amantes olham-se nos olhos, e são as duas direcções de um mesmo agir, um rio que corre em dois sentidos, um fogo que arde em dois extremos.
E então é impossível reconhecer uma pessoa ou uma coisa sem relação connosco próprios, pois o acto de tomar conhecimento toma das coisas qualquer coisa;
Tudo é Divino
Há uma elasticidade cósmica, se assim lhe posso chamar, que é extremamente enganadora. Dá ao homem a ilusão temporária de que é capaz de mudar as coisas. Mas o homem acaba sempre por tornar a cair em si. É aí, na sua própria natureza, que pode e deve praticar-se a transmutação, e em nenhum outro lugar. E quando um homem percebe a que ponto é isto verdade, reconciliando-se com todas as aparências do mal, da fealdade, da mentira e da frustração; a partir de então, deixa de aplicar ao mundo a sua imagem pessoal de tristeza e dor, de pecado e corrupção.
Eu poderia, é certo, formular tudo isto de modo muito mais simples, dizendo que, aos olhos de Deus, tudo é divino. E quando digo tudo, é mesmo tudo o que quero dizer. Quando olhamos as coisas a tal luz, a palavra «transmutação» adquire um sentido ainda maior: pressupõe que o nosso bem-estar depende do nosso entendimento espiritual, do modo como nos servimos da visão divina que possuímos.
Forças Constantes e Imutáveis Através da História
O uso da história não traz surpresas. Ele (o historiador) já viu tudo. Sabe que forças constantes e imutáveis irão resistir à verdade e ao propósito superior. Qual a fraqueza, divisão, excesso que irá prejudicar a causa superior. A esplêndida plausibilidade do erro, o inebriante poder de atracção do pecado. E por força de que adaptação a motivações inferiores as boas causas são bem sucedidas […] A história não é uma teia tecida por mãos inocentes. Entre todas as causas que degradam e desmoralizam os homens, o poder é o mais constante e activo.
Viver Com os Contemporâneos Ou Ser Eterno
Se quisermos ganhar a gratidão da nossa própria era, temos de nos manter a par dela. Mas, se o fizermos, nada de grande produziremos. Quem tiver algo importante em vista deverá dirigir-se à posteridade: mas assim, na verdade, ficar-se-á provavelmente desconhecido dos contemporãneos: ser-se-á como alguém forçado a passar a vida numa ilha deserta e aí se esforçando por erguer um monumento, de modo que os futuros navegantes fiquem a saber que ele existiu.
Abrir o Entendimento, Pela Amizade
O fruto da amizade é saudável e excelente para o entendimento, pois a amizade converte as tormentas e as tempestades dos sentimentos em dia límpido, e ilumina com luz solar as trevas e a confusão dos pensamentos. Não se deve entender com isso apenas os conselhos fiéis que se recebem de um amigo. Antes deles, é fora de dúvida que quem tenha a mente borbulhante de pensamentos logrará clarificar e ordenar o entendimento comunicando as suas ideias a outrem. Trará à tona mais facilmente os pensamentos; ordená-los-á de maneira mais eficaz; julgará como parecem quando convertidos em palavras; em suma, far-se-à mais sábio do que é, alcançando numa hora de palestra mais do que num dia inteiro de meditação.
Disse bem Temístocles ao Rei da Pérsia, que o falar é como pano de Arras, desenfardado e posto à venda: nele, as imagens são exibidas, enquanto que, no pensamento, permanecem enfardadas. Este fruto da amizade, o de abrir o entendimento, não se restringe apenas aos amigos capazes de nos dar conselho (estes são, na verdade, os melhores); mesmo sem isso, aprendemos acerca de nós mesmos, trazemos os nossos pensamentos à luz e afiamos a agudeza do nosso engenho como se contra uma pedra de amolar,
A Importância da Arrogância
A arrogância não é nenhum meio adequado para se chegar a qualquer forma de entendimento com as pessoas que nos rodeiam e que menosprezamos, pelo que nos são insuportáveis. Mas, se não tivéssemos a arrogância, estaríamos perdidos, pois ela não é senão um meio de impormos a nossa vontade contra um mundo que de outro modo e, portanto, sem essa arrogância, nos devoraria por completo. Ele não teria por nós o mínimo respeito. Nós temos de a ele nos antecipar com a nossa própria arrogância, disse eu para comigo, empregá-la onde ela nos salva de sermos devorados. Pois não nos iludamos, pensei eu, os chamados parvos, os que por assim dizer menos apreciamos são os que menos consideração têm por nós, não lhes importa o que nós sentimos, desde que nos possam incomodar e destruir e por último aniquilar.
A arrogância é um meio absolutamente adequado para conseguirmos impor-nos no mundo que nos rodeia e que está orientado contra nós, essa arrogância teme-a ele e respeita-a, mesmo que seja só simulada como a minha, como eu pensei. Nós escudamo-nos com a arrogância para nos podermos afirmar, esta é que é a verdade, eu sou arrogante para sobreviver, isto dito assim de modo consequente.
A Verdade e a Mentira
Gosto da verdade. Acredito que a humanidade precisa dela; mas precisa ainda mais da mentira que a lisonjeia, a consola, lhe dá esperanças infinitas. Sem a mentira, a humanidade pereceria de desespero e de tédio.
Construir a Realidade
A pura verdade é que no mundo acontece a todo instante, e, portanto, agora, infinidade de coisas. A pretensão de dizer o que é que acontece agora no mundo deve ser entendida, pois, como ironizando-se a si mesma. Mas assim como é impossível conhecer directamente a plenitude do real, não temos outro remédio senão construir arbitrariamente uma realidade, supor que as coisas são de certa maneira. Isto proporciona-nos um esquema, quer dizer, um conceito ou entretecido de conceitos. Com ele, como através de uma quadrícula, olhamos depois a efectiva realidade, e então, só então, conseguimos uma visão aproximada dela. Nisto consiste o método científico. Mais ainda: nisto consiste todo uso do intelecto. Quando ao ver chegar o nosso amigo pela vereda do jardim dizemos: «Este é o Pedro», cometemos deliberadamente, ironicamente, um erro. Porque Pedro significa para nós um esquemático repertório de modos de se comportar física e moralmente – o que chamamos «carácter» –, e a pura verdade é que o nosso amigo Pedro não se parece, em certos momentos, em quase nada à ideia «o nosso amigo Pedro».
Todo o conceito, o mais vulgar como o mais técnico, vai incluso na ironia de si mesmo, nos entredentes de um sorriso tranquilo,
Compreender e Unir
Já são em número demasiado os que vieram ao mundo para combater e separar; o progresso e valor de cada seita e de cada grupo dependeram talvez desta atitude descriminadora e intransigente; aceitemos como o melhor que foi possível tudo o que nos apresenta o passado; mas procuremos que seja outra a atitude que tomarmos; lancemos sobre a terra uma semente de renovação e de íntimo aperfeiçoamento.
Reservemos para nós a tarefa de compreender e unir; busquemos em cada homem e em cada povo e em cada crença não o que nela existe de adverso, para que se levantem as barreiras, mas o que existe de comum e de abordável, para que se lancem as estradas da paz; empreguemos toda a nossa energia em estabelecer um mútuo entendimento; ponhamos de lado todo o instinto de particularismo e de luta, alarguemos a todos a nossa simpatia.
Reflitamos em que são diferentes os caminhos que toma cada um para seguir em busca da verdade, em que muitas vezes só um antagonismo de nomes esconde um acordo real. Surja à luz a íntima corrente tanta vez soterrada e nela nos banhemos. Aprendamos a chamar irmão ao nosso irmão e façamos apelo ao nosso maior esforço para que se não quebre a atitude fraternal,
Todo o Conhecimento Degenera em Probabilidade
A nossa razão deve ser considerada como uma espécie de causa cujo efeito natural é a verdade; mas um efeito tal que pode ser facilmente evitado pela intrusão de outras causas e pela inconstância das nossas faculdades mentais. Dessa maneira, todo o conhecimento degenera em probabilidade; essa probabilidade é maior ou menor segundo a nossa experiência da veracidade ou da falsidade do nosso entendimento e segundo a simplicidade ou a complexidade da questão.
Censura Amiga
A amizade penetra nos menores detalhes da nossa vida, o que torna frequentes as ocasiões de ofensas e melindres: o sábio deve evitá-las, destruí-las ou suportá-las quando necessário for. A única ocasião em que não devemos deixar de ofender um amigo, é quando se trata de lhe dizer a verdade e de lhe provar assim a nossa fidelidade. Porque não devemos deixar de sobreavisar os nossos amigos, ainda quando se trate de os repreender. E nós mesmos devemos levar isto em boa vontade, quando tais repreensões são ditadas pelo bem querer.
Todavia, sou forçado a confessá-lo, como disse o nosso Terêncio no seu Adriana: «A benevolência gera a amizade; a verdade, o ódio». Sem dúvida a verdade é molesta se produz o ódio, este veneno da amizade. Mas a magnanimidade é-o ainda mais, porque para a indulgência culpável, pelas faltas de um amigo, ela deixa-o precipitar-se nas suas ruínas. Mas a falta mais grave é a que despreza a verdade e se deixa conduzir ao mal pela adulação. Este ponto reclama toda a nossa vigilância e atenção. Afastemos o ácido das nossas advertências, a injúria dos nossos reproches; que a nossa complacência (sirvo-me voluntário da expressão de Terêncio) seja farta de urbanidade;
As Vantagens de se Ser um Pobre-Diabo
Para aquele que não é nobre, mas dotado de algum talento, ser um pobre-diabo é uma verdadeira vantagem e uma recomendação. Pois o que cada um mais procura e aprecia, não apenas na simples conversação, mas sobretudo no serviço público, é a inferioridade do outro. Ora, só um pobre-diabo está convencido e compenetrado em grau suficiente da sua completa, profunda, decisiva, total inferioridade e da sua plena insignificância e ausência de valor, tal como exige o caso. Apenas ele, portanto, inclina-se amiúde e por bastante tempo, e apenas a sua reverência atinge plenos noventa graus; apenas ele suporta tudo e ainda sorri; apenas ele conhece como obras-primas, em público, em voz alta ou em grandes caracteres, as inépcias literárias dos seus superiores ou dos homens influentes em geral; apenas ele sabe como mendigar; por conseguinte, apenas ele se pode tornar um iniciado, a tempo, portanto, na juventude, naquela verdade oculta que Goethe nos revelou nos seguintes termos:
Sobre a baixeza
Que ninguém se lamente:
Pois ela é a potência,
Não importa o que te digam.
Em contrapartida, quem já nasceu com uma fortuna que lhe garanta a existência irá posicionar-se, na maioria das vezes,
Tremo Sempre Diante do Amor
Nadia, deves ter visto a falta de jeito com que no último momento te pedi o número do telefone e este endereço de correio eletrónico para onde te escrevo, e deves ter-te apercebido também da peregrina desculpa: os dois sabemos que podes conseguir de mil outras maneiras diferentes 05 livros que fiquei de te emprestar. Há-os em muitos lados. Toda a gente os tem. Pode até acontecer que já façam parte da tua biblioteca há anos e que neste momento estejas a olhar as suas lombadas da cadeira onde estás sentada enquanto me lês; e também pode acontecer, na realidade não me admiraria nada, que seja eu quem não os tem nem os teve nunca. Durante o jantar não conseguia tirar os olhos de ti, mas isso já tu sabes. Perante isso, apenas posso esperar que o resto dos comensais, especialmente os teus amigos, não se tenham apercebido de até que ponto me eram indiferentes as restantes pessoas e conversas. Como viste, tenho já um longo caminho percorrido. Sou um homem com passado, como se costuma dizer, embora isso não faça com que seja mais fácil para mim escrever uma carta como esta. Porque isto é uma carta, não é verdade?
Ninguém Se Conhece a Si Mesmo
Julga que se conhece, se não se construir de algum modo? E julga que eu posso conhecê-lo, se não o construir à minha maneira? E julga que me pode conhecer, se não me construir à sua maneira? Só podemos conhecer aquilo a que conseguimos dar forma. Mas que conhecimento pode ser esse? Não será essa forma a própria coisa? Sim, tanto para mim como para si; mas não da mesma maneira para mim e para si: isso é tão verdade que eu não me reconheço na forma que você me dá, nem você se reconhece na forma que eu lhe dou; e a mesma coisa não é igual para todos e mesmo para cada um de nós pode mudar constantemente. E, contudo, não há outra realidade fora desta, a não ser na forma momentânea que conseguimos dar a nós mesmos, aos outros e às coisas. A realidade que eu tenho para si está na forma que você me dá; mas é realidade para si, não é para mim. E, para mim mesmo, eu não tenho outra realidade senão na forma que consigo dar a mim próprio. Como? Construindo-me, precisamente.
O Dom de Deixar Ir
É preciso aprender a viver. A qualidade da nossa existência depende de um equilíbrio fundamental na nossa relação com o mundo: apego e desapego. Nesta vida, a ponderação, a proporção e a subtileza são sempre melhores que qualquer arrebatamento. Mas o essencial é aprender que a existência é feita de dádivas e perdas.
Eis porque quem reza deve pedir e agradecer: tudo é, na verdade, um dom. Tudo passa… importa pois prepararmo-nos para a perda, ainda que tantas vezes não seja senão temporária… Alegrias e dores. Só há felicidade num coração onde habita a sabedoria e paciência dos tempos e dos momentos, a paz de quem sabe que são muitos os porquês e para quês que ultrapassam a capacidade humana de compreender.
Na vida, tudo se recebe e tudo se perde.
Amar é um apego natural mas também obriga a que deixemos o outro ser quem é, abrindo mão e permitindo-lhe que parta, ou que fique, sem desejar outra coisa senão que seja radicalmente livre. Aprendendo que há muito mais valor no ato de quem decide ficar do que naquele de quem só está por não poder partir.Nada verdadeiramente nos pertence. O sublime do amor está aí,
O Mal Saltitante
A morte é apenas uma consequência da nossa maneira de viver. Vivemos de pensamento em pensamento, de sensação em sensação. Os nossos pensamentos e as nossas sensações não correm tranquilamente como um rio, «ocorrem-nos», caem em nós como pedras. Se te observares bem, sentirás que a alma não é algo que vai mudando de cor em gradações progressivas, mas que os pensamentos saltam dela como algarismos saindo de um buraco negro. Neste momento tens um pensamento ou uma sensação, e no seguinte aparece outro, diferente, como que saído do nada. Se deres atenção, até podes sentir o instante entre dois pensamentos, quando tudo se torna negro. Esse instante, uma vez apreendido, é para nós o mesmo que a morte.
Pois a nossa vida resume-se a definir marcos e a saltar de um para o outro, diariamente, passando por milhares de instantes de morte. De certo modo, vivemos apenas nos pontos de repouso. É por isso que temos esse medo ridículo da morte irreversível, porque ela é, em absoluto, o lugar sem marcos, o abismo insondável em que caímos. Na verdade, ela é a negação absoluta daquela maneira de viver.
Mas isto só é assim quando visto da perspectiva desta vida,
A verdade fica de pé, a mentira cai. A mentira é comum, a verdade incomum.
Carta
(digo dos que se ditam:
a minha defesa
são os vossos punhais)Quando me disseram «não se vem à vida para sonhar» passei a odiar-vos. Para vos matar escolhi materiais inacessíveis ao meu ódio. Em mim fizestes despertar a irreparável urgência de ferir.
Descobri a vossa intenção: decepar as minhas raízes mais profundas, obrigar-me à cerimónia das palavras mortas. Preferi reiniciar-me: na solidão me apaguei. Estava só para me encher de gente, para me povoar de ternura. Eu queria simplesmente olhar de frente a verdade das pequenas coisas: esta água vem de onde, quem teceu este linho, que mãos fizeram este pão?
Desloquei-me para tudo ver de um outro lado: levei o meu olhar, o desejo de um princípio infinitamente retomado. Ganhei sonoridade nas vozes que me habitavam silenciosamente. Entre mar e terra eu preferia ser espuma, ter raiz e poente entre oceano e continente.
O tempo, por vezes, morria de o não semear. Terras que golpeava com ternura eram feridas que em mim se abriam para me curar. Eram terras suspeitas, acusadas de futuro. Outras vezes eram mãos de um corpo que ainda me não nascera. Surgiam da obscuridade para afastar a água e nela me deixar tombar.